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Na terra de Drácula

Metáfora do sistema triunfante, o vampiro das trevas foi parar na Romênia pela imaginação do irlandês Bram Stoker. E como sugar o sangue alheio não bastasse, ele acabou sendo imortalizado por outros meios

Flávio Aguiar

Bucareste é conhecida como a capital da poluição visual. As fachadas estão tomadas por propaganda ou, longe do centro, caindo aos pedaços. Nessa cidade inflacionada, os velhos são os que mais sofrem

A Transilvânia, região hoje situada quase toda em território da Romênia, fazia parte da Dácia, antiga província do Império Romano, a noroeste do Mar Negro. Os romanos ali deixaram o idioma como herança – o romeno é língua latina. Transilvânia quer dizer mais ou menos “Além da Floresta”. “Silvânia” vem de “silva”, “selva”. Evoca Silvano, deus da mitologia romana que, como Fauno e seus descendentes, habitava e protegia os bosques. A região é lembrada em narrativas do imperador Júlio César sobre suas conquistas (De Bello Gallico, ou Das Guerras da Gália) como situada “além da floresta das Hercínias”, que se estendia do rio Danúbio até quase os Cárpatos, cadeia de montanhas no coração da Transilvânia.

Ao longo dos séculos, e depois da queda do Império Romano, a região foi dividida numa série de províncias, principados e reinos. Foi cenário de disputas ferozes entre impérios (como o da Áustria e o Otomano) e religiões (como a católica, a cristã-ortodoxa, a muçulmana e depois o protestantismo). Num dos principados, a Valáquia, notabilizou-se no século 15 o príncipe Vlad, cujo pai pertencera a uma ordem político-religiosa chamada Ordem do Dragão (Dracul).

Vlad (1431-1476) tornou-se famoso pela sua luta contra os turcos e por tentar disciplinar o comércio e a aristocracia locais. Adquiriu o apelido de Vlad Tepes, ou O Empalador, por ter a fama de aplicar esse castigo aos inimigos e condenados. A empalação consiste em enfiar uma estaca pontiaguda no corpo da vítima até que ela saia pela boca. Vlad teve um governo fragmentário e conturbado, morreu num combate contra os turcos e teve sua cabeça exposta no império vizinho.

A fama de Vlad Dracul, o Filho do Dragão, e também os horrores a ele atribuídos, cresceram graças a uma invenção contemporânea: a imprensa. O futuro Conde Drácula ainda vivia e já circulavam manuscritos contando histórias tenebrosas a seu respeito, afirmando que ele mandara empalar dezenas de milhares de comerciantes germânicos que viviam na região, além de mais de 100 mil turcos. Essas histórias logo passaram para folhetos impressos no século seguinte, com ilustrações, vendidos aos milhares nas feiras dos emergentes burgos europeus, que se transformavam em fervilhantes cidades cheias de gente ávida por sensações fortes e por conhecer essa então nova maravilha, o livro impresso. Quer dizer: de origem, Drácula, o vampiro, foi um fenômeno de mídia.

castelo

E os vampiros?

A crença nos mortos que procuram se saciar com o sangue dos vivos é antiga. Já estava presente na Antiguidade. Quando Ulisses, o herói da Odisséia, vai ao Inferno para ouvir profecias a seu respeito, ele deve sacrificar um vitelo e oferecer o sangue aos mortos. Embriagados pelo sangue que não possuem, os mortos então predizem o que vai acontecer com o herói.

Muito freqüentemente os cadáveres que saíam em busca de sangue, nessas crenças, eram mulheres jovens que morriam virgens. Por isso era preciso exorcizá-las com a cruz e pregar seus corpos com uma estaca nos ataúdes. Outro poderoso exorcismo era obtido com o alho que, aliás, tinha e continua tendo suas virtudes curativas de todo o tipo apregoadas em todos os quadrantes.

A lenda ganhou força por causa da história real de uma condessa húngara, Erzsébet (Elizabeth) Báthory, que no fim do século 16 e começo do 17 foi condenada a reclusão perpétua por mandar matar jovens camponesas atraídas ao seu castelo – os serviçais que a ajudavam foram condenados à morte. A história passou a ser mais disseminada quando lhe atribuíram a fama de se banhar com o sangue de suas vítimas para se manter jovem. Algo dessa história contaminou a lenda de Vlad, até porque n’algumas gravuras que o representam divertindo-se com o suplício de suas vítimas ele é visto comendo – algo sugestivamente antropofágico.

Essas crenças foram parar na Transilvânia quando o irlandês Bram Stoker, ao escrever seu romance na conservadora Grã-Bretanha do fim do século 19, deixou-se impressionar pela história de Vlad, o Empalador, pelo seu apelido, e criou o Conde Drácula, o vampiro das trevas. Os relatos sobre uma natureza agreste, hostil – a região montanhosa dos Cárpatos, habitada até hoje por lobos e ursos selvagens – também o impressionaram. Então, ele lá sediou o castelo do conde, embora boa parte da ação do romance se passe em Londres. Cercou-o também de serviçais de um povo perfeito para a imaginação romântica: apátridas, perseguidos e misteriosos, rústicos e primitivos, falando uma língua que ninguém entendia.

Na cidade de Bran, sul da Transilvânia, há um castelo – na verdade uma fortaleza, construída no século 13 e reformada por Vlad no século 15. Ele nunca morou lá. Vivia em Bucareste, hoje capital da Romênia, onde o personagem é cultuado, e em Targoviste, antiga capital do principado da Valáquia. Mas há indícios de que ele tenha passado alguma noite ou algum tempo no castelo. Bastou para a fortaleza tornar-se o “castelo do Conde Drácula”. E uma florescente indústria turística emergiu desse enredo intrincado entre antigas lendas, histórias reais de guerras e mídias emergentes em suas diferentes épocas, como o livro impresso, o romance de terror, o teatro de efeitos especiais e o cinema.

Bucareste

Embora os personagens dos romances e filmes cheguem à “capital dos vampiros” de diferentes pontos, o caminho mais seguro para chegar lá é a partir de Bucareste, cidade devastada pelo fim do comunismo e pelo avanço do capitalismo. Demolição e construção se confundem em imagens contundentes. O comunismo terminou em 1989, logo depois da queda do muro de Berlim, com o fim do governo de Nicolau Ceausescu (1918-1989), comandante do Partido Comunista Romeno e do país com mãos de ferro durante 24 anos.

O fim do governo de Ceausescu foi dramático. Deposto num misto de revolta popular e golpe de Estado em 22 de dezembro de 1989, ele e a mulher, Elena, fugiram de Bucareste para Targoviste. Houve tiroteios nas ruas e mais de mil mortos. A fúria contra seu governo se ampliara durante os últimos anos, de grande privação para a população, devido ao plano de usar grande parte da produção romena para pagar a dívida externa. Abandonado por seus auxiliares mais próximos, até por sua guarda pessoal, Ceausescu e a mulher foram presos e, depois de passar por um tribunal de lisura duvidosa, foram fuzilados em 25 de dezembro. A Romênia tornou-se mais um território de conquista para o capitalismo triunfante na Guerra Fria. A partir de 2007, passou a integrar a União Européia, em meio a uma vertiginosa mudança de paisagem.

Bucareste é símbolo dessas contradições e cicatrizes. Do regime de Ceausescu restaram obras faraônicas, como o esqueleto da ex-futura Biblioteca Nacional, cujo destino não se sabe ainda qual será. Ou como o incrível Palácio do Povo, prédio quase do tamanho do Pentágono, hoje parcialmente aberto à visitação pública, construído com luxo apurado e até algum bom gosto, mas obra contraditória num regime que se dizia “pelo povo e para o povo”.

Em Bucareste, o viajante aventureiro se vê comprimido entre um trânsito caótico e sufocante e um patrimônio histórico belíssimo e difícil de visitar, mas que vale a pena percorrer. O Museu do Camponês guarda vivendas autênticas de três séculos. No Palácio de Mogosoaia (diz-se “mogochoaia”), museu de arte e cultura, o visitante ainda se depara com estátuas de Lênin e outros líderes comunistas jogadas ao relento.

A cidade é também a capital da poluição visual. Na falta de espaço para outdoors em seu centro compactado, o mundo do consumo distribuiu cartazes pelas fachadas dos edifícios, cobrindo até as janelas. O novo sistema espalhou na cidade a febre de preços (os aluguéis são altíssimos), a vibração monetarista, muita miséria e contradições. Os velhos estão entre os que mais sofrem. Também padece de um fenômeno curioso: com a carestia, o aumento do custo de vida e as mudanças de residência, centenas de milhares de cães foram abandonados de uma hora para outra. Mesmo depois de campanhas de extermínio (!) muitos ainda vagam pela cidade, em bandos, perigosos como lobos ou ursos.

Em meio à confusão de imagens espantosas, encontra-se a de Vlad Tepes por todo os lados: no museu municipal, em nomes de bares e restaurantes, nas vitrines que vendem suvenires do “vampiro” – espécie de herói nacional, e da cidade, tendo-a valorizado e fortificado. Ao lado dessas imagens depara-se com outra, mais perturbadora: cartazes de propaganda de uma emissora de rádio, apregoando a “ditadura do bem-estar”, ilustrados com a figura de um menino que se disfarça de Hitler, “vampiro” mais atual e mais perigoso.

vila

A rainha e as feras

As estradas em geral são bem asfaltadas, mas estreitas, sem acostamento, cheias de curvas e movimentadas. Para se chegar a Bran, a pouco mais de 100 quilômetros de Bucareste, o melhor é alugar um carro, mas viajar só durante o dia. É preciso ter carteira de habilitação internacional.

O viajante vai conhecer um cenário de tirar o fôlego, com suas montanhas nevadas, suas estações turísticas, mosteiros e castelos famosos, como o de Peles, em Sinaia, construído pela aristocracia romena. A cidade, pequena, é movimentada por turistas, sobretudo norte-americanos e ingleses, atraídos pelo cinema. O “Castelo de Drácula” impressiona. Ainda se vê que sua finalidade primeira era a de fortaleza. Os muros altos parecem colunas hieráticas que imitam as escarpas abruptas dos Cárpatos. Seu interior é cheio de passagens que dão rápida mobilidade entre as salas e os andares. E de suas torres e ameias se descortina uma paisagem deslumbrante, de matas, vilas e montanhas a perder de vista.

Dentro do castelo, nada lembra Drácula, nem Vlad Tepes. Ali há um museu dedicado à rainha Maria (1875-1938). Nascida na Grã-Bretanha e casada com o rei Ferdinando, ela se tornou célebre por duas coisas: a defesa empolgante do reconhecimento da Romênia e da ampliação de seu território quando do tratado de 1918, ao fim da Primeira Guerra; e sua vida amorosa, agitada como a de Catarina da Rússia. Dois de seus seis filhos não eram de seu marido e haveria ainda um outro, não reconhecido, que teria sido entregue a um orfanato.

Fora do castelo nada lembra a rainha Maria, e tudo lembra Vlad Tepes. Até os táxis são decorados com motivos vampirescos. Há uma feira onde se compram de máscaras a vinhos da marca Vampiro. Os tintos merlot e os brancos riesling romenos, os queijos rústicos, as salsichas grelhadas e as cervejas Silva e Ursus são dignos de nota. Os sabores das aguardentes de ameixa e de uva lembram grapa e bagaceira.

Pululam os copos com o rosto de Drácula e as camisetas estampadas com o vampiro em poses diversas. A visita a Bran comprova que Drácula, que sugou a vida e a imagem já lendárias de Vlad Tepes para a sua própria lenda, continua sendo um fenômeno de mídia no sentido mais amplo da palavra, que vai dos meios de comunicação aos corações e mentes, atravessando os séculos e as distâncias.