História

Cidadão do mundo

Seringueiro, visionário, Chico Mendes via na defesa da floresta a melhor forma de proteger também a vida das pessoas, da Amazônia e fora dela

Percorrer a selva, extrair látex e produzir borracha era a rotina de Francisco Alves Mendes Filho, que faria 68 anos neste 15 de dezembro. Nascido no Acre, aos 9 anos Chico já seguia os passos do pai. E não tardaria para que a exploração predatória, sobre trabalhadores e a floresta, o conduzisse à trajetória que o tornaria mundialmente respeitado. Na década de 70, o governo militar estimulou a criação de gado na Amazônia. Para garantir o pasto, seringais e castanheiras eram destruídos, minando uma importante atividade dos moradores. Alfabetizado aos 18 anos por Euclides Távora, um ex-integrante da Coluna Prestes, o jovem seringueiro aprendeu também a ler o que ocorria a sua volta. Ajudou a criar o primeiro sindicato rural do Acre, em Brasiléia, fundado por Wilson Pinheiro em 1976. Após o assassinato de Pinheiro, em 21 de julho de 1980, Chico Mendes, então vereador em Xapuri, exigiu Justiça pela morte do companheiro num contundente discurso. O então líder metalúrgico Luiz Inácio da Silva estava presente. O episódio deu subsídios para que a ditadura enquadrasse a ambos na Lei de Segurança Nacional.

Àquela altura, Chico combinava o movimento social com a disputa política institucional. Não se elegeu deputado estadual devido ao baixo coeficiente eleitoral do PT no Acre (hoje o partido tem sete dos 24 deputados e 12 dos 22 prefeitos no estado).

Nos embates políticos, predominava o discurso contra o desmatamento; na atuação social, isso se dava na prática, sobretudo empregando a estratégia do “empate”. O advogado Gomercindo Rodrigues, que atuava ao lado dos trabalhadores rurais, conta como era: “Algumas dezenas de trabalhadores, muitos com suas esposas e filhos, formavam um contingente considerável de seringueiros. Ao chegar ao desmatamento, conversavam com os homens que estavam fazendo a ‘broca’ (preparando o desmate)”. A descrição está em seu livro Caminhando na Floresta. Os manifestantes mostravam aos cortadores, em geral pessoas simples e muitos ex-seringueiros, o quanto aquilo era prejudicial e poderia comprometer o futuro de todos. Na maioria das vezes, surtia efeito.

Proposta inovadora

Em 1985, o 1o Encontro Nacional dos Seringueiros, em Brasília, teve Chico Mendes como um de seus idealizadores e resultou na criação do Conselho Nacional dos Seringueiros, oposição ao patronal Conselho da Borracha, que representava 300 empresários da área. Ali, se consolidou uma das principais bandeiras do movimento: a instituição das reservas extrativistas.

“Até 1984, a gente realizava os empates, mas não tínhamos muita clareza do que queríamos. (…) As pessoas falavam: ‘Vocês querem impedir o desmatamento e transformar a Amazônia em santuário? Intocável?’ Estava aí o impasse. A resposta veio por meio da reserva extrativista. Vamos utilizar a selva de forma racional, sem destruí-la”, contou Chico em sua última entrevista, ao jornalista Edilson Martins, em 9 de dezembro de 1988, publicada no Jornal do Brasil apenas após sua morte. O ativista dizia que os povos da floresta – seringueiros, índios, ribeirinhos – sempre desenvolveram atividades econômicas e de subsistência sem destruí-la. Eram os mais indicados para cuidar de sua preservação.

O contexto era favorável. O Brasil vivia o lançamento de seu primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária e a criação das reservas extrativistas era um jeito de fazer a reforma agrária combinada com preservação ambiental. Foi assim que, por meio da portaria no 627, de 30 de julho de 1987, o Incra lançou o Projeto de Assentamento Extrativista (PAE), “destinado à exploração de áreas dotadas de seringais extrativos através de atividades economicamente viáveis e ecologicamente sustentáveis, a serem executadas pelas populações que ocupam ou venham a ocupar as mencionadas áreas”. A primeira grande vitória.

Em 1987 a maior ameaça à preservação da floresta era a BR-364. O desmatamento provocado pela construção da rodovia entre Rondônia e Acre colocava em xeque a sobrevivência de seringueiros e índios, como já havia ocorrido com os povos do trecho rondonense. Chico Mendes conseguiu trazer alguns membros da Organização das Nações Unidas (ONU) para Xapuri e mostrou os efeitos da devastação. Dois meses depois, estava nos Estados Unidos. Em Miami, acompanhou a conferência anual do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Denunciou que trabalhadores rurais e índios não tiveram suas propostas ouvidas, o que contrariava o contrato de financiamento da obra firmado entre o BID e o governo federal. Depois, em Washington, conversou com o senador republicano Robert Kasten, envolvido com questões ambientais e influente na Comissão de Finanças do Congresso americano.

Um mês depois foi anunciada a suspensão do financiamento da obra. Políticos locais, fazendeiros e especuladores imobiliários acusaram o seringueiro de prejudicar o progresso da região. Reconhecido no exterior, Chico também começava a ser visto com ódio por políticos, fazendeiros, especuladores e empresários, que enxergavam nele uma ameaça a seus interesses.

Darly Alves era novo na região. Batizou sua fazenda com o nome de seu estado de origem, o Paraná, e nunca escondeu suas diferenças com Chico Mendes, que conquistou a demarcação da área da primeira reserva extrativista do país. A idéia de reserva lhe causava ódio, mas também o fato de que a boa porção da área demarcada fazia parte de sua fazenda. O que Chico ainda não tinha certeza era de que aquele fazendeiro também exercia outra atividade – a de matador. Conversou com o advogado Genésio Nazareno, de Curitiba, que trabalhava para o movimento dos seringueiros. “Fui até a Vara de Execução Criminal e vi que tinha uma ordem de prisão contra o Darly e o irmão dele, Alvarino”, lembra o advogado.

Eles conseguiram que o juíz paranaense expedisse uma Carta Precatória (ordem judicial preparada para ser cumprida em outra comarca) para ser levada ao Acre. O advogado levou a carta à capital Rio Branco, ali chegando em 26 de setembro. Somente depois de mais de um mês a carta chegaria a Xapuri. Provavelmente, após algum vazamento de informação, os Alves fugiram para a Bolívia, onde alimentaram sua ira e teriam mantido contato com outros fazendeiros da região, que se articulavam na União Democrática Ruralista (UDR) local.

O fim do ano se aproximava e sabia-se que a cidade ficaria mais abandonada. Chico fazia questão de passar seu aniversário e o Natal com a família, em Xapuri, apesar das ameaças. Já tinha sobrevivido a outros tempos críticos.

Quando parecia que até os pistoleiros, que circulavam sem-cerimônia por Xapuri, tinham entrado em recesso, o amigo Gomercindo Rodrigues ficou apreensivo. Na tarde de 22 de dezembro, chegava à casa de Chico Mendes dizendo: “Estou preocupado com o que eu te disse ontem”, referindo-se ao sumiço dos pistoleiros. O anfitrião, porém, estava mais preocupado com um jogo de dominó com seus dois seguranças. Ao terminar a partida, resolveu tomar um banho. O filho pequeno, Sandino, fez manha para ir junto ao banheiro, que era fora da casa. Foi até a porta e, ao ver que já estava escuro, recuou. “Os caras podem estar me atocaiando”, disse. Deixou Sandino com a irmã Elenira, foi ao quarto e pegou uma lanterna. Ao abrir a porta novamente um tiro, vindo de fora, atingiu em cheio o peito de Chico Mendes.

Vocês não vão fazer nada?

Os seguranças pessoais de Chico Mendes correram na direção da rua – quando o assassino estava na parte de trás da casa e certamente por ali fugia, cercado por um rio que poderia deixá-lo encurralado numa perseguição. Gomercindo, que havia saído para dar uma volta, com vergonha de jantar onde se conseguia comida com tanta dificuldade, voltava depois de Chico ter sido socorrido. A 50 metros da casa, na delegacia, dois policiais olhavam o cair da tarde. “Vocês não vão fazer nada, seus filhos da puta?”, gritou o advogado.

No dia, nenhum suspeito foi apontado. Depois de toda a comoção internacional, o poder público se viu pressionado a buscar os culpados. Menos de uma semana depois, o filho de Darly Alves, Darci, assumiu a autoria do crime. Ele e o pai foram condenados a 19 anos de prisão, além de terem sido levantados oficialmente outros crimes em que a família se envolveu no Acre.

Para Elenira Mendes, a garota que viu o pai morrer em meio a uma poça de sangue, há mais envolvidos: “Nunca acreditei que só os dois pudessem ter matado meu pai. Pelo que se sabe hoje, mais pessoas fizeram parte desse complô, mas não podemos provar”. Ela, que até os 18 anos não se envolvia em questões políticas e que hoje preside o Instituto Chico Mendes, não mostra ressentimentos, e sim esperança. “Quando li a carta que ele havia escrito para o jovem do futuro, senti como um chamado para participar. Era isso que ele queria, que a sua luta não morresse e continuasse. Esse foi seu grande legado.