teatro

A farsa dos costumes

A irreverência dos grupos Ornitorrinco e Pod Minoga renovou a linguagem teatral brasileira

divulgação

Sofisticado para os anos 70, o teatro do Pod Minoga era “inclassificável”

Boas histórias recém-recontadas convidarão os amantes dos palcos a beber duas das melhores safras do teatro brasileiro. Para Você Prazer, Para Vosso Deleite e Para Vossa Diversão Teatro do Ornitorrinco 1977-2007, organizado pela atriz Christiane Tricerri, chega às livrarias em dezembro. Quase junto com Pod Minoga Studio – A Arte de Brincar no Palco sem Pedir Licença, coordenado pelo ator Carlos Moreno.

O Pod Minoga surgiu em 1972 a partir da união de estudantes do curso de Artes realizado por Naum Alves de Souza na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), casos de Carlos Moreno (mais tarde conhecido como “garoto Bombril”), Flávio de Souza e Mira Haar, entre outros. Já o Ornitorrinco apareceu em 1977, quando Cacá Rosset, Maria Alice Vergueiro e Luiz Roberto Galízia, então alunos da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, montaram Os Mais Fortes, reunião de textos do sueco August Strindberg, encenada à meia-noite no porão do Teatro Oficina.

“São dois grupos fundamentais no panorama do que viria a ser a produção independente brasileira. Num momento de repressão, trabalhavam com a possibilidade do jogo, da brincadeira e da farsa como forma de comunicação”, diz o crítico teatral Alberto Guzik. “A grande diferença é que o Ornitorrinco surgiu com ambição intelectual, trazendo para a cena textos de Strindberg e (do alemão Bertolt) Brecht, ao passo que o Pod Minoga ia para um repertório mais performático, desenhava trabalhos que hoje seriam considerados pós-modernos, e que na época ninguém sabia classificar.”

A força do Pod Minoga estava na criação coletiva, todos os integrantes se envolviam em cada uma das etapas de construção dos espetáculos, movidos a mímica, circo, ópera, teatro de revista e artes plásticas. “Tínhamos uma formação de artes plásticas e em nossos espetáculos a visibilidade era tão importante quanto tudo mais que estava no palco. Ao mesmo tempo, como outros grupos da época (caso do carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone), nos organizamos em cooperativa e escrevemos uma nova dramaturgia, próxima da nossa experiência e vivência. Era quase uma crítica de costumes”, descreve Carlos Moreno.

O grupo montou sete espetáculos até 1980 – entre eles Miscelânea (1972), Folias Bíblicas (1977) e As Margens Plácidas (1980) –, alguns num teatro mambembe montado no galpão Pod Minoga Studio, na Rua Oscar Freire, nos Jardins, região central chique da capital paulista. “Você vinha de uma situação cinzenta do país e, de repente, entrava por uma portinha e parecia que tinha tomado um ácido, tal era a overdose de informação, cor, brilho, música e alegria”, descreve Moreno.

No entanto, como outros contemporâneos, o Pod Minoga não escapou daquela parte da crítica e do público que exigia um posicionamento político claro. “O grupo enfrentou resistências porque seu repertório, para os mais velhos, não tinha compromissos visíveis, era ‘não mais’ que um projeto de jogo teatral, de brincadeira levada a sério”, lembra Guzik. “Já o Ornitorrinco teve uma fase de intensa elaboração de temas e textos brechtianos, mas tratava tudo com muita irreverência, o que fez com que o grupo fosse recebido com desconfiança por parte de artistas mais à esquerda e com fortes reservas pelo povo mais à direita”, avalia.

Inspiração

Aos 30 anos de carreira, o Ornitorrinco montou 16 espetáculos e se diferenciava das outras trupes dos anos 1970 por misturar arte circense, cabaré, music hall, programa de auditório e teatro de revista, pela liderança exercida pelo ator e diretor Cacá Rosset e por montar apenas clássicos como William Shakespeare (Sonho de Uma Noite de Verão, A Comédia dos Erros e A Megera Domada) e Molière (O Doente Imaginário e O Avarento). Entre seus integrantes, estavam Chiquinho Brandão, Ary França, Rosi Campos, Gerson de Abreu e José Rubens Chasseraux.

“O grupo parte sempre de uma boa premissa, o texto de um grande autor é escolhido e estudado. Ao mesmo tempo, é irreverente e anárquico. Cacá sempre diz que se você vai montar Shakespeare hoje, para ser fiel, tem de tirar o pó que ficou depositado historicamente. Senão fica careta e não faz jus à loucura que o cara teve em seu tempo”, avalia Christiane Tricerri. “Teatro para o Ornitorrinco é se comunicar, sendo popular e realmente se importando com o espectador. Há nos espetáculos um rigor e uma alegria que podem e devem caminhar juntos”, diz a atriz, que entrou no grupo em 1985, “ubuzete” na montagem de Ubu, Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes, de Alfred Jarry.

Para Christiane, Ubu foi uma virada. “Até então existia um tipo de espetáculo mais ligado ao musical, com menos atores e visando uma platéia também mais íntima. A partir dali, passou a ser para multidões. A gente chegou a pensar em fazê-lo no Pacaembu, como um show de rock e com o Pai Ubu discursando como político corrupto.” O crítico Alberto Guzik concorda: “Era um misto de exagerado teatralismo, números de circo e atos musicais, sempre com generosas doses de nudez”.

Sem Pod Minoga e Ornitorrinco, o teatro brasileiro teria ficado sem parte de sua graça. “Muita gente que está hoje no ramo começou nos cursos do Flávio de Souza no Pod Minoga. Outros falam que, quando viram nossas peças, descobriram o que queriam fazer. É gratificante saber que você influenciou pessoas”, finaliza Carlos Moreno. “Um grupo é como um casamento. Passa por crises e pode acabar ou reciclar. Para isso, é preciso criatividade. Em Megera Domada, por exemplo, pela primeira vez escolhi um projeto. Hoje eu e Cacá somos sócios de igual para igual no Ornitorrinco. Voltamos a fazer teatro depois de um período afastado e estamos apaixonados, instigados e inspirados”, comemora Christiane.