trabalho

Entre a euforia e o bem-estar

Organismos da ONU defendem trabalho decente como ponte entre crescimento econômico e qualidade de vida das pessoas

Mauricio Morais

Não é preciso ser especialista para reconhecer a relação direta entre o ritmo da economia e a geração de empregos. Quem viveu as conseqüências do não-crescimento nas décadas de 1980 e 1990 tem hoje plenas condições de comparar com o ambiente favorável dos últimos anos. O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) já superou a expectativa do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para todo o ano. E no período de 12 meses completados em agosto, o saldo positivo de vagas com carteira ultrapassou 2 milhões de novos postos de trabalho. O percentual de pessoas no trabalho formal atingiu metade da população ocupada, maior índice desde o início da série histórica do IBGE. A taxa média de pessoas à procura de trabalho caiu abaixo da casa dos 8%.

O relatório Emprego, Desenvolvimento Humano e Trabalho Decente: A Experiência Brasileira Recente – apresentado em setembro pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) – reconhece o impacto do crescimento econômico no combate à pobreza e às desigualdades sociais. Mas ainda observa limitações no que considera a “agenda do trabalho decente”: criação de emprego de qualidade para homens e mulheres; extensão da proteção social; promoção e fortalecimento do diálogo social; e respeito aos princípios e direitos fundamentais no trabalho como elos entre as condições favoráveis da economia e o desenvolvimento humano.

“É bom que haja crescimento, mas ele não pode ser selvagem. O trabalho decente busca conciliar a idéia de produtividade com justiça social”, explica Laís Abramo, do escritório da OIT no Brasil. O estudo avalia indicadores entre 1992 e 2006, identifica uma reversão da trajetória de desestruturação do mercado de trabalho (do final do século passado) e aponta algumas características problemáticas que não foram superadas ao longo do tempo.

O relatório ressalta a persistência da diferença entre homens e mulheres no mundo do trabalho e o modesto recuo na desigualdade de remuneração. Em 1992, as mulheres recebiam 61,5% dos rendimentos dos homens; e os negros ganhavam a metade da remuneração dos brancos. Em 2006, o primeiro índice chegou a 70,7% e o segundo, a 53,2%.

A técnica do Dieese Patrícia Lino Costa assinala ainda que uma parcela importante de desempregados com baixa qualificação (cerca de 20%) não tem sido requisitada e passa mais de um ano procurando emprego. “O fenômeno requer ações específicas do poder público para esse grupo.” Ela alerta também para a rotatividade. Se houve 16 milhões de contratações formais nos últimos 12 meses, outros 14 milhões de dispensas ocorreram. De cada dez desligados, quase seis foram por demissões imotivadas. Para a pesquisadora, a substituição de empregados é uma forma de redução de custos por parte das empresas que impede a qualificação mais apurada. “Os salários dos admitidos no triênio 2005-2007 foram sempre inferiores aos dos desligados”, diz o Dieese, em nota em defesa da Convenção 158 da OIT, que inibe a dispensa imotivada. “Níveis mais elevados de emprego dão segurança e recursos para que uma família possa proporcionar melhor educação a seus filhos. Ao mesmo tempo, é provável que uma população mais educada consiga melhores
olocações”, indica o relatório dos órgãos da ONU. Entretanto, estima-se que a dispensa imotivada atingirá 30% do mercado formal de trabalho em 2008.

Um exemplo de como se pode analisar separadamente crescimento econômico e qualidade no trabalho é o setor da construção civil, onde se deu o maior crescimento de vagas com carteira assinada em 12 meses: quase 20%. “O café-da-manhã dos empregados da construção agora tem queijo e frutas”, analisa Antônio de Sousa Ramalho, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção de São Paulo, filiado à Força Sindical, destacando conquistas em acordos coletivos. “Mas os avanços ainda não são do tamanho que se espera.”

As perspectivas favoráveis contrastam também com outros problemas graves. “Os operários do setor continuam sofrendo com o catastrófico primeiro lugar em número de acidentes de trabalho e com a jornada estafante e extensa, com o trabalho penoso, insalubre, perigoso e mal remunerado”, alerta em artigo Waldemar Pires de Oliveira, presidente da Confederação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores nas Indústrias da Construção e da Madeira, filiada à CUT. Ele sublinha que 70% da mão-de-obra do setor continua na informalidade.

Jornada mundial

Contrastes como esses trazem para o centro das discussões a Agenda do Trabalho Decente, que além da defesa do diálogo social – entre governos, empresários e trabalhadores – tem como pilares a geração de melhores empregos com igualdade de oportunidades e a erradicação do trabalho escravo e do trabalho infantil. O estudo da OIT, Cepal e Pnud verificou que quem começa a trabalhar antes dos 14 anos tem probabilidade muito baixa de obter rendimentos mensais superiores a R$ 1.000 ao longo da vida. Terá maior probabilidade de melhorar o rendimento ao longo da vida quem ingressou no mercado de trabalho com 19 anos do que quem começou com 15, constata o estudo.

E tão importante quanto identificar as distorções é estimular a busca de medidas para corrigi-las. Há um grande esforço nesse sentido a ser direcionado para o Congresso Nacional. Como nem tudo se consegue com consenso entre trabalhadores e empregadores, diferentes interesses demandam a pressão social. É o caso, por exemplo, de projetos de lei que propõem a redução da jornada de trabalho para um máximo de 40 horas semanais sem redução salarial, a ratificação da Convenção 158 da OIT, e também da 151, que assegura a liberdade de organização sindical no serviço público, a expropriação de terras onde for flagrado uso de trabalho escravo.

Essa agenda uniu diversos segmentos e categorias na Jornada Mundial pelo Trabalho Decente, convocada pela Confederação Sindical Internacional (CSI) e pela Confederação Sindical dos Trabalhadores das Américas (CSA). No Brasil, a Jornada contou com a adesão das centrais, que promoveram manifestações em várias cidades no início de outubro. De acordo com João Felício, secretário de Relações Internacionais da CUT, a mobilização em escala mundial, em meio ao “cenário atual de ataque aos direitos trabalhistas”, evidencia a “disputa com o capital que busca lucratividade rápida e fácil” e fortalece o movimento sindical internacionalmente, para que a agenda dos trabalhadores também esteja na mesa quando os países discutem relações comerciais.

O secretário-geral da CUT, Quintino Severo, observa, em entrevista no site da Central, que as formas de exploração do trabalho escravo e infantil são indecentes, mas não são as únicas. “O conceito de trabalho decente é muito amplo, por isso precisamos aprofundar esse debate. São fundamentais o fortalecimento do papel do Estado no combate ao trabalho indecente e precário, a fiscalização e o comprometimento de dirigentes e militantes sindicais, para que incorporem o tema em suas agendas.”

Maurício Hashizume é jornalista da ONG Repórter Brasil. Leia mais sobre o tema em www.reporterbrasil.org.br

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