justiça

Acerto de contas

Campanha pela anistia no Brasil não buscou punição a torturadores, como no Chile e na Argentina. Mas a tortura é crime contra a humanidade e imprescritível

Mauricio Morais

Aos 5 anos, Janaína, junto com o irmão Édson, 4, foi de camburão para o DOI-Codi

Anistia, segundo o Aurélio, significa “perdão geral”, ato pelo qual o poder público deixa de responsabilizar pessoas que praticaram delitos. No momento em que se discute a punição aos responsáveis por torturas, assassinatos e desaparecimentos durante a ditadura no Brasil, o sentido da palavra talvez ainda não tenha sido bem compreendido por grande parte dos brasileiros. Os objetivos da campanha pela anistia foram nobres e mobilizaram trabalhadores, políticos, autoridades, religiosos e organizações internacionais. Mas, por ganhar esse nome, teve desfecho diferente do visto em países como Argentina e Chile. Os vizinhos sul-americanos reivindicaram justiça, e não esquecimento. Torturadores e os militares que comandaram truculentos regimes ditatoriais foram levados aos tribunais. A maioria dos brasileiros nem imaginava que, ao lutar pela anistia, também defenderia o perdão a quem matou e torturou.

Isso não aconteceu à toa. A proposta de anistia no país foi arquitetada pelos militares. A intenção era colocar uma pedra no passado. “Na Argentina e no Chile, há dificuldade para entender por que o processo de acerto de contas aqui no Brasil é tão peculiar. Nesses países, a anistia não foi reivindicada. Foi imposta pela ditadura”, observa a cientista social Glenda Mezzaroba, autora do livro Um Acerto de Contas com o Futuro: Anistia e Suas Conseqüências. “No Brasil, ao contrário, a anistia foi reivindicada. Logo depois de 1964 já tinha gente pedindo anistia. Desde a Frente Ampla, criada por Carlos Lacerda, João Goulart e Juscelino Kubitschek para restaurar o regime democrático. Nos outros lutava-se pela liberdade dos presos e punição aos militares”, observa. Aqui, os exilados voltaram, direitos políticos foram recuperados e funcionários públicos demitidos reassumiram funções. A anistia, no entanto, não veio para resolver a questão da tortura, de mortes e desaparecimentos: “Não se conseguiu ampliar nada. Na Constituinte, as Forças Armadas colocaram lá um representante para impedir qualquer avanço”.

Apesar do consenso forçado e das tentativas de remeter a discussão para debaixo do tapete, o Ministério Público Federal de São Paulo quer mudar essa situação. Dois procuradores da República, Marlon Weichert e Eugênia Fávero, encaminharam ações à Justiça Federal para responsabilizar civilmente autoridades da época da ditadura por crimes cometidos no DOI-Codi paulista – centro da repressão política entre 1970 e 1976.

Prisões ilegais, torturas, homicídios e desaparecimentos forçados são considerados pelos procuradores “crimes de lesa-humanidade”, como no regime nazista de Hitler. Isso está especificado em convenções e tratados sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil. O Comitê de Direitos Humanos da ONU recomendou ao governo brasileiro que torne públicos os documentos sobre violações aos direitos e que responsabilize os autores.

Os alvos de Marlon e Eugênia foram os comandantes do DOI-Codi paulista, o hoje coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra e o tenente-coronel Audir Santos Maciel. Ustra já respondia a processos movidos pelas famílias Teles e de Luiz Eduardo Merlino, torturado e morto em 1971. Do processo de Merlino conseguiu se safar por decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 24 de setembro. “O tribunal perdeu oportunidade histórica de se pronunciar sobre a tortura e o assassinato político”, analisou Luiz Tarcísio Teixeira Ferreira, professor de Direito da PUC-São Paulo.

A defesa de Ustra argumenta que ele desconhecia os acontecimentos cotidianos do órgão. Mas não convenceu o juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo. Em sentença do dia 9 de outubro, Santini oficializou a condição de torturador de Ustra – havia “uma casa dos horrores, razão pela qual o réu não poderia ignorar o que ali se passava”, anotou, na ação foi movida pelo casal Maria Amélia e César Teles e por seus filhos Édson e Janaína – que com 4 e 5 anos foram levados de camburão como forma de pressão sobre os pais e a tia, Criméia, também torturada. Para Janaína, 41 anos, historiadora, é um passo importante contra a impunidade. “Para nós, vítimas de crimes contra a humanidade, não há esquecimento. Não é vingança, é justiça.”

E os processos continuam. Os procuradores encaminharam pedido de investigação do seqüestro e desaparecimento no Brasil dos presos ítalo-argentinos Horácio Domingo Campiglia e Lorenzo Ismael Vinas, além da argentina Suzana Pinus de Binstock. Os três eram militantes do grupo guerrilheiro argentino Montoneros e desapareceram em 1980. Na Itália, há uma investigação em andamento para apurar a responsabilidade de 13 militares e policiais brasileiros apontados como responsáveis pelos desaparecimentos de Campiglia e Vinas. E a França teve um cidadão desaparecido no Brasil na época da ditadura: Jean Henry Raya.

Em agosto último, exames de DNA comprovaram ser do espanhol Miguel Sabat Nuet os restos mortais encontrados numa vala comum no cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte da capital paulista. Informações sobre o paradeiro de Nuet, desaparecido em 1973, só foram obtidas 18 anos depois, com a abertura dos arquivos do antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Parentes de Nuet localizados na Espanha e na Venezuela querem que o governo espanhol exija explicações das autoridades brasileiras sobre o desaparecimento.

Representante de uma marca de veículos, Miguel Nuet – que tinha cidadania venezuelana – foi preso por uma equipe do Dops na estação de trem Barra Funda, em outubro de 1973. Acabou sepultado dois meses depois, como indigente, na cova 485 do cemitério Dom Bosco, ao lado dos corpos dos guerrilheiros Antonio Carlos Bicalho Lana e Sonia Maria de Moraes Angel.

Hoje, independentemente de o Judiciário brasileiro decidir ou não pela punição aos torturadores, o Brasil pode sofrer sanções internacionais. Autoridades brasileiras podem ser acionadas pela Justiça da Itália, da Espanha ou da França, a exemplo do que aconteceu com o ditador chileno Augusto Pinochet, cuja prisão foi decretada na Inglaterra, em 1998, a pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón. “A impunidade é uma questão de muita gravidade. É preciso encontrar uma maneira de se fazer justiça e eu acho que isso pode perfeitamente acontecer no Brasil”, defendeu Garzón, em visita ao país, em agosto, quando participou de um seminário organizado pela revista Carta Capital e pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Ainda que tardio, o debate em torno da punição aos torturadores ao menos teve início. Integrantes do Judiciário parecem tender pelas decisões técnicas que levem ao encerramento ou adiamento de qualquer tipo de decisão, em vez de enfrentar o problema. O ministro-presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, veio a público dizer que a abertura dos arquivos da repressão em países da América Latina “não é a melhor solução” porque teria produzido “instabilidade institucional”. A afirmação é falsa e inoportuna. Chile, Argentina e Uruguai puniram torturadores e vivem em plena estabilidade política.

Os ministros da Justiça, Tarso Genro, e dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, defendem a punição aos responsáveis pelas torturas, mortes e desaparecimentos (leia entrevista aqui). O presidente Lula tenta não se indispor com os militares. A sociedade brasileira não se envolveu na discussão. O fato é que a tortura é um crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível. E essa mancha precisa ser removida da história do país.