cultura

Pura magia

Defendendo um trabalho independente, O Teatro Mágico possui, como maior força, a interação com o público, que adora a idéia de brincar de pensar – e não pára de crescer

Gerardo Lazzari

O líder Fernando, em show no Auditório Ibirapuera, espaço nobre de São Paulo

Poucas apresentações atualmente reúnem tantas pessoas e possuem tamanha força quanto os shows da trupe O Teatro Mágico, que vem lotando casas de espetáculo em todo o país, com uma mistura de teatro de rua, música, circo e poesia. Com mais de dez shows agendados por mês e nome herdado do romance O Lobo da Estepe (1927), do escritor alemão Hermann Hesse, o grupo é formado por dez músicos e três artistas circenses. Eles se apresentam pintados e fantasiados, e contam ainda com a preciosa ajuda dos milhares da platéia, que se maquiam e se vestem iguais à trupe e realizam números de malabares ou balançam fitas coloridas.

“Quando o Fernando (Anitelli, vocalista, guitarrista e violonista) entra no palco com uma capa, todo mundo grita e começa a mágica”, descreve o garoto Pedro Ribeiro, de 6 anos, que adora ir aos shows vestido e pintado como o cantor, que uma vez o colocou no palco. “O show é surreal. Só estando presente para sentir algo que vai muito além do visual”, garante o pai, Geraldo Jordão, de 37 anos, professor de Geografia em Mauá (SP). “Costumo apostar com amigos que, se eles presenciarem um show do Teatro Mágico, sairão de lá contando os dias para o próximo.” “Acaba sendo viciante”, acrescenta Nicole Veto, de 23 anos, estudante de Biologia em Canoas (RS) e uma das responsáveis pela comunidade do Orkut O Teatro Mágico RS.

“Foi a vontade de fazer um espetáculo com uma bagunça anárquica, onde todo mundo pudesse participar, que me levou a criar O Teatro Mágico em 2003. Nós não gostamos de tratar o público como fã, assim como não gostamos de ser tratados como ídolos. Parafraseando Clarice Lispector, nosso propósito é fazer as pessoas brincarem de pensar”, explica Fernando Anitelli, que diz ser comum as pessoas interromperem a apresentação do grupo para declamar poesia em forma de jogral.

“No primeiro show, a gente entregou um nariz de palhaço a cada uma das pessoas presentes. Com o tempo, elas passaram a se maquiar, trazer suas coisas e ter uma relação de interação com a apresentação”, lembra o violinista e bandolinista Galdino Octopus. Esse contato com o público vai muito além dos shows. “Eles participam em comunidades do Orkut e no site, conversando, opinando, dando idéias para as apresentações e fazendo videoclipes para nós”, explica Anitelli.

Além de Nicole, muitos outros seguidores da trupe criaram comunidades no Orkut, onde se uniram a outras pessoas que hoje realizam saraus, encontros, coletas de lixo, serenatas e visitas a asilos, creches e hospitais. É o caso dos Vagalumes, nome de uma canção do grupo, que anuncia: “Pra temperar os sonhos e curar as febres/ Inserir nas preces nosso sorriso/ Brincando entre os campos das nossas idéias/ Somos vagalumes a voar perdidos”.

Iniciado em São Paulo, o projeto social ganhou frutos em outros estados, como Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. “Ele vem se espalhando pelo Brasil, executando ações sociais em diversos setores da sociedade, despertando sonhos até então desacreditados, plantando sorrisos e pintando alegria no coração de milhares de pessoas”, assegura Lucas Néiman, de 18 anos, que mora em Osasco (SP) e criou no Orkut a comunidade Teatro Mágico Lição de Vida.

“Nós nos pintamos de palhaços e bonecas para trazer novamente o lúdico para aqueles que já perderam a vontade de sorrir. O palhaço, por si só, resgata a magia esquecida dentro de cada um”, filosofa Ana Caroline Mayrhofer, de 18 anos, presidente do Projeto Social Vagalumes em Curitiba. Patrícia Torsani, de 32 anos, por sua vez, faz parte de um grupo de palhaços que visita abrigos. “A gente se reúne com pessoas que têm as mesmas idéias e vai para a praça como um dia fez O Teatro Mágico”, destaca ela, que vai aos shows da trupe na companhia do filho Raul, de 3 anos.

Gerardo Lazzaricasa
Provavelmente o palhaço mais desejado do planeta

Vida sem jabá

O Teatro Mágico também se destaca por, desde o início, realizar um trabalho independente, distante das grandes gravadoras e da mídia movida a “jabaculês”, vulgo “jabá”, o dinheiro pago a emissoras de rádio e televisão para tocarem determinada música. Mantendo-se com a venda de seus CDs a R$ 10 nos shows e levantando a bandeira do livre compartilhamento de músicas pela internet, o grupo divulga os espetáculos com a ajuda dos internautas, e já conseguiu vender mais de 85 mil exemplares de seu primeiro trabalho, O Teatro Mágico: Entrada para Raros.

“Sempre partimos do princípio de ser independentes. Não somos como alguns grupos que, por não terem gravadora, vão fazendo algo almejando chegar à indústria. Então as pessoas que vinham nos ver passaram a ser nossos mecenas, que, naturalmente, assistem ao show e fazem uma comunidade no Orkut. Se ela é bem relacionada, a comunidade cresce, o que para nós é fantástico, pois ganhamos uma divulgação boca a boca”, justifica Gaudino.

“A produção autônoma (feita sem a estrutura de uma gravadora) é atualmente a estratégia básica de atuação da maioria dos artistas, desde os iniciantes até os consagrados. A postura independente também pode ser parte da identidade do artista, da imagem que se quer passar. Para grupos como O Teatro Mágico, ligados a um mercado consumidor mais jovem, urbano e universitário, a internet é, sem sombra de dúvida, o mais importante meio de divulgação”, analisa o professor Eduardo Vicente, da Escola de Comunicação e Artes da USP (Universidade de São Paulo).

Seu colega de universidade e estudioso do mesmo tema, Davi Nakano, professor da Escola Politécnica, porém, faz uma ressalva: “Não acho que o caminho do self-made man (o artista que abre novos canais para sua arte) seja para todos, pois exige uma boa dose de espírito empreendedor, o que não é tão comum assim. Um artista empreendedor, como Fernando Anitelli, é mais raro ainda”, observa o professor. “Já tentaram transformar a gente em bonequinho, figurinha de chiclete, joguinho, todas as gravadoras vieram nos procurar, e a resposta foi não. A gente não quer virar esse tipo de coisa. Nosso sistema e trabalho são outros. Vai poder vender um CD por R$ 10 na mão do nosso público? Pode liberar todas as músicas de graça na internet? Se não pode, não nos interessa. A nossa luta prevalece”, garante Anitelli.

Gerardo LazzariSanto André
Show ao ar livre, em Santo André

Cidadão de papel

É esse tom contestador que está presente em muitas letras da trupe e que atrai boa parte do público. “Eles falam a respeito do cidadão brasileiro e do amor com rimas muito bonitas”, explica a estudante Juliana Martins, de 15 anos, de Santo André, que vai aos shows com a camiseta do grupo e com o rosto pintado do mesmo modo que os músicos. Ela cita a canção Cidadão de Papelão, que faz parte do segundo álbum, O Teatro Mágico: Segundo Ato, lançado no início do ano. A diferença entre um e outro, segundo Anitelli, é ter menos as características de um sarau e contar com arranjos mais elaborados e amadurecidos, além de temas mais politizados e densos.

No caldeirão de influências do Teatro Mágico cabe de tudo, desde Secos & Molhados, Antonio Nóbrega, Zeca Baleiro, Beatles e Rolling Stones até Os Trapalhões, Chaves e Chapolin, e filmes como Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick. “O que mais me atrai é a diversidade do grupo, que mistura DJ, violino, som pesado de guitarra com bonecos, malabares, tecidos e trapézios”, opina Daniel Rocha, de São Paulo, que criou uma banda inspirada no Teatro Mágico, chamada Vô Maltine, e integra o projeto social Doadores de Sorrisos.

Porém, foi do trabalho como ator no grupo de Oswaldo Montenegro, durante um ano, que Anitelli herdou mais elementos aplicados em sua trupe. “O método de trabalho dele com o grupo era muito interessante, porque trazia à tona o desejo de cada um. Apesar de as pessoas não serem atores e artistas consagrados e com certo dom, Oswaldo Montenegro buscava o resultado pela união do grupo. Esse espírito também colaborou para eu montar O Teatro Mágico com pessoas de talentos distintos, que, unidas, formam uma avalanche. Ele também foi um dos primeiros artistas a optar pelo caminho da independência”, avalia.

A comparação de O Teatro Mágico com o grupo pernambucano Cordel do Fogo Encantado também é bastante freqüente. “As duas bandas fazem críticas sociais, cada uma a seu modo, mas com a mesma intenção. Outra característica, não menos importante, que as une é o resgate da cultura brasileira. Ambas trazem na sua raiz elementos da cultura nordestina, principalmente”, supõe Ana Caroline. Não foi à toa que percussionistas do Cordel do Fogo Encantado foram convidados a participar do primeiro CD do Teatro Mágico.

Para quem questiona se há um certo tom messiânico ou religioso nos espetáculos da trupe, Anitelli esclarece: “Eu vejo um tom muito mais político do que religioso. A idéia sempre foi brincar dentro de uma trilogia – religião, política e ética. A gente percebe de maneira muito clara que as pessoas gostam do trabalho, mas, ao mesmo tempo, fazem esse comentário com relação a ser uma coisa sagrada, um ritual”, explica o artista.

“Dizem: ‘Ah, parece uma seita. Os únicos lugares onde eu vou e as pessoas cantam e se abraçam é na igreja e no show do Teatro Mágico’. Na verdade, essa espiritualidade que existe no trabalho se deve talvez ao fato de ele ser tratado de maneira sagrada. O palco é sagrado para nós e aquele momento, ali, não pode ser transformado em algo aleatório e disperso, como muitos fazem.” Prova disso é que, no fechamento desta reportagem, a trupe se preparava para o lançamento de seu primeiro DVD, com gravação programada para este início de outubro, no Memorial da América Latina. A idéia é comemorar, com 6.000 pessoas na platéia do Espaço das Américas, o aniversário de 4 anos de grupo.

Cidadão de papelão
(Fernando Anitelli/Maíra Viana)

O cara que catava papelão pediu
Um pingado quente, em maus lençóis, nem voz
Nem terno, nem tampouco ternura
À margem de toda rua, sem identificação, sei não
Um homem de pedra, de pó, de pé no chão
De pé na cova, sem vocação, sem convicção
À margem de toda candura
À margem de toda candura
À margem de toda candura
Um cara, um papo, um sopapo, um papelão
Cria a dor, cria e atura
Cria a dor, cria e atura
Cria a dor, cria e atura
O cara que catava papelão pediu
Um pingado quente, em maus lençóis, a sós
Nem farda, sem tampouco fartura
Sem papel, sem assinatura
Se reciclando vai, se vai
À margem de toda candura
À margem de toda candura
Homem de pedra, de pó, de pé no chão
Não habita, se habitua
Não habita, se habitua