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Nas ondas de Brasil Novo

Enquanto os grandes canais de televisão, os jornalões e a internet não chegam a muitas localidades, emissora comunitária é a solução para quem vive à margem da mídia na Transamazônica

Lucivaldo Sena

Brasil Novo fica às margens da BR-230, a Transamazônica, na região do Xingu (PA). Não tem água tratada e o esgotamento sanitário é quase zero. Um clube é a única opção de lazer coletivo. Há quatro escolas e quase 20 mil habitantes – a maioria espalhada na zona rural, onde estão concentradas as famílias que trabalham nas colônias agrícolas da rodovia.

O nome da cidade, antes distrito de Altamira, está ligado ao futuro próspero que o governo militar prometia aos “homens sem terra” que foram colonizar a “terra sem homens” da Amazônia, no início da década de 1970. Coberta de poeira, sob o sol forte de julho, ela não parece o retrato do futuro sonhado pelos homens que a foram habitar. Seis quilômetros adentro, porém, em uma das propriedades da vicinal 15, o agricultor Argemiro Cardoso Pereira, 72 anos, sorri diante da colheita próspera. “Não fiquei rico porque não me dediquei a isso, mas tenho uma vida confortável para oferecer aos meus filhos e netos”, diz.

Argemiro é chefe de uma das famílias mais antigas da região. Cultiva, em pouco mais de 90 hectares, cacau, milho, feijão e arroz. E cria algumas cabeças de gado. Também é conselheiro do Planejamento Territorial Participativo (PTP), um sistema de consulta popular elaborado pelo governo do Pará que o ajudou a eleger duas prioridades para seu município: a compra de maquinário agrícola e a melhora de trafegabilidade das vicinais.

A noção de cidadania de Argemiro, que está na Transamazônica desde sua inauguração, passa pela informação que ele detém sobre seu município e por programas educacionais como o da escola onde os filhos mais velhos estudaram e um deles dá aula – os alunos ficam 15 dias em regime de internato, aprendendo técnicas agrícolas, e retornam por mais 15 dias para empregar nas terras dos pais o que aprenderam.

Antes isolado, hoje Argemiro tem boa comunicação com o mundo externo. Tem celular e antena parabólica, mas a televisão só recebe sinais abertos de programações nacionais. Assuntos locais são difíceis. A única fonte de informação instantânea sobre os fatos do cotidiano do seu município é o rádio, que recebe a transmissão de uma única emissora, a comunitária Popular FM. “É o único meio de saber das nossas coisas daqui.”

Lucivaldo SenaAna Lúcia
Nas ondas médias, Ana Lúcia consegue sintonizar a Rádio Nacional, mas prefere a Popular na janela, enquanto trabalha

Ana Lúcia de Souza, 43 anos, vizinha de Argemiro, até capta a Rádio Nacional no aparelho de ondas médias, mas prefere ouvir pelas ondas da Popular FM. “Costumo deixar o rádio na janela enquanto a gente trabalha na secagem do cacau na frente de casa”, explica.

Nos estúdios da Popular FM, no centro de Brasil Novo, um grande cesto cheio de bilhetes e cartas lidas a cada dia por seus locutores confirma a popularidade. “Outro dia um agricultor disse para uma de nossas locutoras que ela tinha ‘caído’ do cacaueiro, porque eles penduram o rádio no pé de cacau durante a colheita”, conta Rosemeyre Acácio, 33 anos, da Associação de Mulheres e diretora da rádio.

A Popular nasceu há dez anos, da articulação dos movimentos sociais que atuam na Transamazônica. Amarildo Mardegan, o Arildo, como é chamado o ex-diretor da rádio que hoje se dedica a capacitar as emissoras dos municípios da região, conta que, se não fosse a transmissão toda sexta-feira da sessão da Câmara Municipal, os vereadores dificilmente trabalhariam nesse dia. “A gente percebe que eles passaram a tomar mais cuidado com o que falam e a querer mostrar serviço.”

No primeiro mandato do prefeito, o Tribunal de Contas do Município devolveu suas contas à Câmara de Brasil Novo com um parecer negativo, recomendando que os vereadores as rejeitassem também. “Foi um deus-nos-acuda. Mandaram vir uma empresa de contabilidade de São Paulo para refazer as contas, e todas as irregularidades viraram ‘erro de cálculo’. Tudo foi transmitido pela rádio”, conta Arildo.

Mas não é só na política que a emissora atua. Informes solidários e até conversas de família se dão através das ondas da freqüência 95,1. “Tem uma família que mora na Suécia e o único meio que eles tinham de falar com os parentes daqui era através da rádio. Uma vez ligaram e nós os colocamos no ar para eles mandarem o recado aos parentes”, conta Rosemeyre.

No cesto plástico, os bilhetes escritos com capricho mostram a importância da rádio. Gente pedindo música, mandando recado para os amigos, informando perda ou achado de documentos. Tudo o que é urgente. Entusiasmado, Altair divide seu tempo entre o trabalho como supervisor escolar e a locução na emissora. Mineiro, chegou à região em 1976 procurando terra e lugar para morar. Encontrou-se entre os movimentos sociais da região. Há poucos meses assumiu um dos programas mais populares na zona rural de Brasil Novo, o Alvorada Sertaneja. “Eu trabalhava mais na organização e produção, agora estou me atrevendo mais na locução”, diz. Altair complementa a renda de professor com R$ 4 por hora de locução. O dinheiro é arrecadado pela direção da rádio por meio dos apoios culturais, permitidos pela legislação da radiodifusão comunitária.

Atuar na legalidade, aliás, é um desafio em uma região onde o Estado se fez ausente durante tanto tempo. A própria Popular começou a sair da ilegalidade a partir de atos de desobediência civil. Quando, há sete anos, foi possível entrar com os papéis de legalização na Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a perseguição às rádios comunitárias era grande. Depois que os movimentos sociais, por intermédio da Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP), contrataram um advogado para acompanhar os processos em Brasília, os papéis começaram a sair. “Ainda não recebemos a licença oficialmente, mas já estamos no Diário Oficial”, comemora Mardegan.

A rádio ainda opera parcialmente irregular. O decreto do então presidente Fernando Henrique Cardoso que regulamentou temporariamente a operação de rádios comunitárias, e vale até hoje, prevê que elas devem alcançar um raio máximo de um quilômetro. Isso tornaria a Rádio Popular, e praticamente todas as 14 comunitárias que operam na região do Xingu, inúteis para 90% da sua população, que mora na zona rural. “Quando a gente opera a um quilômetro, as pessoas fazem fila aí na porta em protesto.” Para alcançar a roça, um amplificador de freqüência precisa aumentar o raio de transmissão para 30 quilômetros.

No meio da floresta, os agricultores da Transamazônica continuam ignorados pela legislação de radiodifusão brasileira, oficialmente sem o direito fundamental à comunicação. Foi desobedecendo às leis que os movimentos sociais ajudaram Argemiro a saber de sua terra e a começar a construir um futuro novo.