cidadania

Déficit de oportunidades

Há não muito tempo, poucos acreditavam que pessoas com deficiência intelectual pudessem trabalhar e ser eficientes. Hoje, elas provam que podem. Só precisam de uma chance

Paulo Pepe

Liliane e José Edson: trabalho, casamento e sonhos para o futuro

O balcão instalado na entrada da seção pôs fim ao entra-e-sai e agilizou o atendimento. O bebedouro ali perto acabou com os deslocamentos até o pátio para matar a sede. “Idéias simples e efetivas como essas mostram o quanto esses trabalhadores são críticos e atuantes”, diz Márcio Freire Dias, chefe da seção de papelaria de uma fábrica de motores, em Santo Amaro, zona sul paulistana. Dias refere-se a iniciativas que partiram do grupo de 19 empregados com déficit intelectual ou cognitivo com quem trabalha. Entre eles, a auxiliar Liliane de Castro Coutinho do Nascimento, 24 anos: “Recebo o pedido de material e antes de entregar confiro se está preenchido corretamente”, explica. José Edson Souza do Nascimento, com quem ela se casou, é seu colega de trabalho, foi promovido a almoxarife e sonha ser professor. “Quero estudar Educação Física.”

Do outro lado do pátio, Francilene Maria Fernandes, 27 anos, faz a embalagem de componentes. Agradece a Deus pelo emprego e pelos direitos a que faz jus. “Preciso ajudar em casa.” Seu colega Marcos Pedrosa Aguiar, 29 anos, trabalha no almoxarifado e no setor de bomba d’água. “É bom porque eu aprendo mais sobre os produtos feitos aqui”, diz o auxiliar. A instrutora Neusa de Fátima Filomeno, com experiência de 15 anos na Apae (Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais) e sete na indústria, percorre todos os setores várias vezes ao dia para conversar com eles. “Minha função é acompanhar as questões pessoais, profissionais e familiares, para garantir o bom funcionamento dessa engrenagem”, diz. O gerente de programas sociais, Pedro Funcke, conta que a experiência foi surpreendente: “Eles são modelo de produtividade, participação, zelo, solidariedade e compromisso”.

Iniciativas como essa ainda são exceção no mercado de trabalho. A maioria dos empregadores, obrigados por lei a contratar, prefere pessoas com deficiência motora. Surdos e cegos vêm na seqüência. É o que mostram dados da Superintendência Regional do Trabalho de São Paulo (SRTE, antiga DRT, subordinada ao Ministério do Trabalho e Emprego). Do total de pessoas contratadas no último ano no estado, por exigência da lei, menos de 3% têm déficit cognitivo.

A Federação Brasileira dos Bancos lançou um programa destinado a preparar pessoas com deficiência para a rotina de trabalho bancário, mas não com déficit cognitivo. “Ainda temos muito a aprender sobre uma questão tão complexa”, justifica Mário Sérgio Vasconcelos, diretor de relações institucionais da entidade. A psicóloga Carmen Bueno, superintendente do Sistema Sorri-Brasil, critica: “As pessoas devem ser selecionadas pela competência, e não pela deficiência”. Ela lembra que existem instituições especializadas em identificação, seleção e desenvolvimento do trabalhador com alguma limitação intelectual para ajudar as empresas a lidar com essa dificuldade.

Segundo a procuradora Adélia Augusto Domingues, do Ministério Público do Trabalho, a maioria das empresas quer o que é mais fácil e traz resultados em curto prazo. “Interessadas apenas em cumprir a lei, instalam rampas e vão atrás de profissionais cadeirantes altamente graduados.”

“O déficit intelectual ou cognitivo se manifesta antes dos 18 anos, é caracterizado por um processo de percepção, memória, juízo e/ou raciocínio abaixo da média e está associado a limitações em duas ou mais áreas de habilidades adaptativas”, explica Maria Aparecida Soler, coordenadora de capacitação profissional da Apae de São Paulo. Existem várias causas, de oxigenação cerebral insuficiente na hora do parto a problemas nutricionais. A mais conhecida é a síndrome de Down. A deficiência afeta as pessoas de maneiras diferentes e quase sempre responde positivamente a estímulos. Assim, entre duas pessoas com o mesmo quociente de inteligência (QI), a que for mais estimulada terá desempenho melhor em várias atividades. “Não podemos prever a capacidade de cada uma delas. Por isso, o melhor é dar uma chance para mostrarem”, diz a psicóloga Isabel de Francischi, da Associação Carpe Diem.

A associação prepara profissionais e faz intermediação com empresas. Há pouco mais de três anos, encaminhou duas jovens para atuarem na biblioteca e na recepção de um grande banco. “Tivemos de fazer algumas adaptações na jornada de trabalho, na acessibilidade, além de promover palestras e imprimir cartilhas para desmistificar o senso sobre a deficiência”, lembra a superintendente de desenvolvimento humano do banco, Maria Cristina Carvalho. Segundo ela, uma pesquisa recente revelou que gestores e demais empregados se sentiram mais engajados, experimentaram um crescimento pessoal e profissional. Mariana Amato, 29 anos, chegou ao banco depois de ter trabalhado em escolas, escritório de arquitetura e lanchonete. “Organizo jornais e revistas, ligo os computadores, abro malotes de todo o país, atendo pessoas”, descreve. E ainda ajuda o Carpe Diem a preparar outros jovens para o mercado.

Obstáculos

Escolaridade insuficiente, despreparo profissional e da família pesam na baixa empregabilidade. “A dificuldade de locomoção, o transporte inadequado ou a falta de incentivo familiar ainda mantêm muitas pessoas com deficiência fora da escola”, aponta a pedagoga Luiza Russo, presidente do Instituto Paradigma. É um desafio para a inclusão derrubar a resistência de familiares que preferem garantir o benefício previdenciário – cortado se a pessoa com deficiência arruma emprego. A relação direta entre estímulo familiar e integração no trabalho, aliás, é uma das conclusões da dissertação de mestrado que a psicóloga Maria Luiza Gomes Machado defendeu na Universidade Federal de São Paulo. Ela acompanhou a vida de dois grupos de portadores de síndrome de Down. Um formado por trabalhadores e outro por aqueles fora do mercado. Além dos ganhos físicos, mentais, psicológicos, sociais, econômicos, ela descobriu que, entre os que trabalham, havia incentivo familiar em 100% dos casos. No outro grupo, 2% das famílias os estimulavam.

“Quando o jovem com déficit é estimulado para a vida profissional, vive uma transição para a vida adulta. Sem essa oportunidade será sempre como uma criança, sem noção da realidade nem autonomia para reger a própria vida. É por isso que a preparação para o trabalho deve começar cedo, como se faz com quem não tem deficiência nenhuma”, explica a psicóloga.

A paulistana Bárbara Sagula Diam, 25 anos, é auxiliar de atendimento numa rede de farmácias. Abastece e organiza prateleiras. Já foi balconista em loja de roupas e de bijuterias, trabalhou em bares, agência de correios, sacolão, emissora de rádio. Um dos maiores sonhos que já realizou foi obter uma vaga num hotel elegante. Com a ajuda de um supervisor da Associação dos Pais Banespianos de Excepcionais (Apabex), elaborou um currículo e o entregou na recepção. “Só sosseguei quando me contrataram.” O sonho foi se desfazendo devido ao relacionamento difícil com uma supervisora. A primeira ocupação de Bárbara, aos 16 anos, foi um estágio de auxiliar de escritório. Para isso, pesou muito a iniciativa de sua mãe, a artesã Mônica Sagula, 47 anos, que a ensinou a circular pela cidade de ônibus e metrô, da mesma maneira como fez com os demais filhos, que não têm síndrome de Down. Em 1985, quando era funcionária do Banespa, Mônica fundou a Apabex. “Fui muito criticada pelo jeito de tratar a Bárbara, mas hoje tenho a certeza de que fiz o melhor.”

Paulo Pepemaria
Além de trabalhar na biblioteca do banco, Maria ajuda a preparar outros jovens

Abaixo da lei

A Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, determina que empresas com 100 a 200 funcionários tenham 2% das vagas preenchidas por pessoas com algum tipo de deficiência ou reabilitadas. Até 500 empregados, sobe para 3%. Até 1.000, 4%, e daí em diante, 5%. A lei não orienta o preenchimento das vagas por tipo de deficiência – motora, visual, auditiva ou intelectual.

Ações de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego em todo o país resultaram na contratação de 11.139 portadores de vários tipos de deficiência nos primeiros seis meses de 2008. A fiscalização é atribuição das Superintendências Regionais do Trabalho (SRTE), também incumbidas de estimular acordos entre patrões e trabalhadores. Em 2006, a estipulação de cotas para pessoas com deficiência constou de acordo entre o Sindicato da Indústria Farmacêutica de SP (Sindusfarma), a Confederação Nacional dos Químicos (CNQ-CUT) e a Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas e Farmacêuticas de SP (Fequimfar, Força Sindical).

Adir Gomes Teixeira, da CNQ, faz uma avaliação positiva: “Foram contratadas cerca de mil pessoas com deficiência. Entre as 44 empresas que assinaram, 12 já cumpriram a cota, algumas ainda não contrataram nenhum trabalhador com deficiência e nove empregaram menos da metade do estabelecido”. Desde 2007, os bancários incluíram entre suas reivindicações, que têm abrangência nacional, o emprego para pessoas com deficiência. Muitos sindicatos contestam, ainda, que empregados reabilitados – ou seja, em recuperação de doenças profissionais muitas vezes adquiridas na própria empresa – sejam contados para efeito da lei de cotas. Para o dirigente metalúrgico do ABC, Luiz Soares da Cruz, o Lulinha, isso dificulta ainda mais o acesso de pessoas com deficiência.

A superintendente regional do Trabalho em São Paulo, Lucíola Rodrigues Jaime, considera que as multas aplicadas em caso de não-cumprimento das cotas devem ser o último recurso: “Defendemos os acordos porque o que interessa é empregar as pessoas. Multa é vaga não preenchida”, diz.

Segundo o médico e auditor fiscal do Trabalho José Carlos do Carmo, ocorrem muitas irregularidades: “Há contratações apenas para cumprir a cota, em que o trabalhador recebe, mas fica só em casa ou se ‘capacitando’ para sempre. E outras em que o contratado não tem deficiência nenhuma, como uma pessoa que teve uma amputação de pequena extensão, sem comprometer a função mais importante do membro, ou um pequeno desvio na coluna”, exemplifica. Isso acontece, diz Carmo, porque a lei dá margem para interpretações ou por malandragem da empresa – que busca a facilidade sem investir na acessibilidade, na capacitação nem numa mudança de postura diante de algo novo.

Outra dificuldade, explica o médico, é que o número de fiscais é insuficiente. “Ajuda muito as pessoas comunicarem ao seu sindicato irregularidades verificadas em sua empresa. Os sindicatos são fundamentais para intervir junto ao empregador ou denunciá-lo à fiscalização.”

Déficit ou deficiência
A Organização Mundial da Saúde recomenda, desde 2001, o emprego da expressão deficiência “intelectual” ou “cognitiva”. E os especialistas da área passaram a usar “déficit”, em vez de deficiência. A condição se refere ao funcionamento específico do intelecto, e não da mente como um todo. É também uma maneira de diferenciar deficiência mental de doença mental – nomenclatura, por sua vez, alterada pelos psiquiatras para “distúrbio”. Tampouco se aceita o termo “deficiente”. O correto é “pessoa com deficiência” ou “pessoa com déficit”.

Para saber mais
Apabex – (11) 5081-9000 – www.apabex.org.br
Apae São Paulo – (11) 5080-7000 – www.apaesp.org.br
Associação Carpe Diem – (11) 5093-1888 – www.carpediem.org.br
Espaço da Cidadania – (11) 3685-0915 – www.ecidadania.org.br
Instituto Paradigma – (11) 5090-0075 – www.institutoparadigma.org.br
Ministério do Trabalho – Cartilha A Inclusão das Pessoas com Deficiência no Mercado de Trabalho – www.mte.gov.br/fisca_trab/inclusao/default.asp
Sistema Sorri-Brasil – (11) 5082-3502 – www.sorri.com.br