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Aventura nuclear

Duas décadas depois dos desastres de Goiânia e de Chernobyl, o Estado continua displicente em relação aos riscos

eletronuclear/divulgação

O reator de Angra I começou a funcionar em 1985. Sem investimentos, deverá ser desligado em 2025

O presidente Costa e Silva deu um murro na mesa: “Comprem essa merda”! Estava aprovada a compra, nos Estados Unidos, da nossa primeira usina nuclear – exigência do alto comando militar. Passados 40 anos, sai o licenciamento para a montagem da terceira usina. E, apesar de desastres como os de Chernobyl (Ucrânia, 1986) e do césio 137 (Goiânia, 1987), o mandonismo e o descaso com riscos da radiação continuam.

“Não entendo nada de usinas nucleares”, disse à Revista do Brasil Ricardo Tabet, secretário de Meio Ambiente de Angra dos Reis (RJ), que abriga as centrais Angra I e II e o maior depósito brasileiro de rejeitos nucleares. Sua preocupação é outra: exigir do ministro Carlos Minc, do Meio Ambiente, garantia aos moradores do município dos empregos da construção de Angra III. “Segurança nuclear é com o governo federal”, diz.

Se o secretário não liga, o governo federal também não. O relatório do Grupo de Trabalho de Fiscalização e Segurança Nuclear da Câmara dos Deputados, finalizado no ano passado, adverte: “O Brasil não tem fiscalização nem segurança na área nuclear”. A maioria das propostas do grupo foi detonada pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), sob alegação de que aumentariam os custos do programa. A principal delas é separar ações de fomento e produção das atividades de fiscalização – para as quais o relatório sugere a criação de um órgão autônomo com poder de impor normas de segurança e de punir infratores. Hoje a CNEN é dirigente do programa nuclear e fiscalizadora de si própria. E mal. Há apenas 160 técnicos para inspecionar mais de 2.500 instituições que manuseiam materiais nucleares ou radioativos no Brasil, incluindo hospitais e indústrias. Pior: não são reconhecidos como fiscais pela legislação e tampouco têm autoridade para punir. “Há todo um buraco na regulação brasileira da área nuclear”, diz o físico Rogério dos Santos Gomes, presidente da Associação de Fiscais de Radioproteção e Segurança Nuclear. A associação entregou propostas ao presidente Fernando Henrique ainda em 2000, mas nada aconteceu. Gomes diz que há 20 anos propostas são enterradas por sucessivos governos. Recentemente, também entregaram recomendações ao presidente Lula.

O grupo de trabalho da Câmara propõe que se crie um arcabouço legal para todas as atividades nucleares, prevendo cadastramentos, competências, processos indenizatórios para vítimas de acidentes. Defende também legislação trabalhista especial, incluindo a aplicação da Convenção 115 da OIT, que condena subcontratação e terceirizações no setor. Apesar de não adotar as propostas, o governo criou seu próprio grupo de trabalho para o acompanhamento do programa nuclear, o que traz alguma esperança aos ambientalistas.

Segurança nuclear é tarefa regional e nacional. O equívoco das autoridades de Angra, ao jogar tudo nas costas do governo federal, é grave devido aos erros cometidos no passado, a começar pela escolha da praia. Até os índios já sabiam que não era boa e a chamavam de Itaorna – praia da pedra podre. Em 1975, o presidente Ernesto Geisel rompeu com os americanos que venderam Angra I e assinou o acordo com os alemães para construir oito centrais. Angra II, a primeira delas, foi montada na mesma localidade. Durante sua construção, um tremor de terra oriundo da Serra das Araras obrigou o redimensionamento das pilastras principais. Descobriu-se que as encostas de Angra eram instáveis e que a praia tinha matacões no subsolo que dificultavam a fincagem das estacas. Angra III, gêmea da II, estará na mesma praia.

Tem sentido construí-la. As máquinas já foram compradas por Geisel. Além disso, a presença de uma terceira central e o grande porte do conjunto podem melhorar os sistemas de apoio e prevenção. Mas nenhuma forma de energia tem os perigos da energia nuclear. Os elementos radioativos artificiais produzidos pela fissão do urânio dentro do reator – como o plutônio 239, o césio 137 e o estrôncio 90 – são incompatíveis com a vida. A vida na terra só passou a ser possível depois do decaimento desses elementos, presentes na bola de fogo inicial que deu origem ao sistema solar, o que levou bilhões de anos.

Calcula-se que o lixo altamente radioativo leva mais de 30 mil anos para decair. Só para desaquecer, são 20 a 30 anos. Não há solução definitiva nem para os rejeitos de baixo ou médio poder radioativo que saem às toneladas das usinas. Todos os depósitos no mundo são provisórios. Por isso, foi mal formulada a única exigência importante do ministro do Minc para a concessão da licença de Angra III: construir um depósito “definitivo” para os rejeitos nucleares. Alguns países os lacram em pesados contêineres de cimento e chumbo e os colocam provisoriamente em cavernas profundas. De vez em quando surge proposta de lançá-los no fundo do mar ou no espaço. Loucura.

O ministro Minc cometeu ainda outros equívocos ao exigir o depósito “definitivo”. Pelas regras atuais, a exigência deve ser feita à CNEN e não à Eletronuclear, que vai construir Angra III. Só por esse caso já se vê como está furado o arcabouço legal do programa. Quem pede a licença ao Ibama é a Eletronuclear, mas quem precisa cumprir exigências impostas pela licença é a CNEN, responsável pela segurança dos rejeitos nucleares e fontes radioativas em todo o país.

O que a CNEN estuda é a construção de um novo depósito, não tão perto das usinas nem do mar, para os rejeitos de baixa radioatividade, como roupas, vassouras e utensílios usados no dia-a-dia das usinas. A CNEN alega que não podia fazer o projeto do depósito antes de saber quantas usinas seriam construídas e onde. O governo acaba de decidir – sem consulta à população ou ao Congresso – que serão mais quatro além de Angra III, formando dois outros centros, cada um com duas usinas, um no Nordeste e outro no Sudeste. A CNEN diz que precisa de 10 anos para construir o depósito para rejeitos de média e baixa radiotividade. Se começar agora, fica pronto em 2018. Angra III está planejada para operar em 2014. A equação não fecha. Para rejeitos de alta radioatividade, a CNEN promete um depósito só para 2026 – chama esse projeto de “depósito intermediário para 500 anos”. Sobre esses rejeitos, que incluem o plutônio, há mais tergiversação do que planos sérios. Um dos dirigentes da Eletronuclear, por exemplo, aventou na mídia que é até bom guardar esses rejeitos provisoriamente em piscinas, porque o plutônio pode no futuro ser usado como novo combustível nuclear. Ou seja, nos coloca na trilha do reprocessamento do plutôno, mil vezes mais perigosa do que a aventura com urânio enriquecido.

DNA militar

Além dos riscos presentes, fica um terrível passivo para o futuro. O oposto do conceito de desenvolvimento sustentado – aquele capaz de atender às necessidades básicas da população presente, sem prejudicar esse mesmo atendimento para as gerações que virão. Uma das razões para tamanha irresponsabilidade é a origem militar dos programas nucleares, apesar da atual ênfase na geração de energia. Mesmo a retomada de Angra III é vista pelo governo como necessária não apenas para aproveitar os equipamentos já comprados como também para dar economia de escala ao ciclo de produção de combustível nuclear, implantado por Geisel. Faz sentido, pois o Brasil tem grandes reservas de urânio. Mas não seria melhor deixar isso tudo para quando a tecnologia for mais segura?

Em país nenhum os militares perguntaram se o povo era a favor da energia nuclear. Nunca houve no Brasil um referendo popular a respeito. Em Angra, apenas agora ocorrem audiências públicas. A Sociedade Angrense de Proteção Ecológica até tentou, sem sucesso, criar um fórum de acompanhamento. O povo local parece conformado em apoiar a terceira usina por criar empregos. A prefeitura aproveitou para exigir da Eletronuclear o resgate do que chama de “passivo social”, como o saneamento da baía de Angra e a adoção dos parques ecológicos Bocaina e Tamoios.

O governo Lula tem a oportunidade de mudar tudo isso e levar a sério o grupo de trabalho por ele próprio criado, não deixando que a CNEN torpedeie de novo as propostas. Há tênue esperança de que o governo adote uma postura diferente dos antecessores. O primeiro passo é ampliar e dar transparência às discussões.

Tragicamente importantes
O caso de Goiânia decorreu da fragmentação de uma fonte de 19 gramas de material radioativo encontrada por sucateiros num aparelho de radiografia de um hospital demolido. Muita gente briga até hoje para reparar danos físicos, materiais e emocionais. Em Chernobyl, as nuvens oriundas do derretimento do reator contaminaram uma área de 200 mil quilômetros quadrados. Além das dezenas de mortes imediatas, 600 mil pessoas foram atingidas pela radiações – 10% delas acima dos níveis de tolerância. Os acidentes revelaram o que a indústria sempre escondeu. Muitos vazamentos de radiação foram encobertos anos a fio.