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S.O.S. água

Quase 2 milhões de pessoas vivem às margens das principais represas que abastecem a Região Metropolitana de São Paulo. Entidades alertam para um colapso, em 10 anos, se a situação não começar a mudar agora

Regina de Grammont

Parte da ocupação da Billings foi intermediada por associações de moradores

Em 1987 Rosenaidi Ribeiro de Araújo saiu de Olindina (BA) com destino a São Paulo. Morou de aluguel no Jabaquara até descobrir, em 1991, o Jardim Gaivotas, no extremo sul da capital, bairro em formação às margens da Represa Billings, maior reservatório de água da Região Metropolitana e um dos maiores do mundo em área urbana. Comprou de uma “imobiliária” um terreno à beira d’água por 2.500 cruzeiros, moeda de então, parcelados em três vezes. Em vez da escritura, obteve simples recibos. O que a doméstica Nadi, como é conhecida, não sabia é que nem ela nem seus vizinhos podiam morar ali, uma área de manancial protegida por lei.

Atualmente cerca de 2 milhões de pessoas moram em áreas de manancial que atingem as Represas Billings e Guarapiranga, que abastecem 30% da Região Metropolitana de São Paulo, onde estão 38 municípios, além da capital. A Billings leva água a aproximadamente 1,5 milhão de habitantes em Diadema, São Bernardo do Campo, Santo André, Ribeirão Pires, São Caetano do Sul e Rio Grande da Serra. E poderia levar a muito mais, se não tivesse 15% de sua bacia ocupada irregularmente e, na maioria das vezes, sem tratamento de esgoto.

Ao seu redor, onde deveria haver apenas Mata Atlântica, formaram-se em vários pontos verdadeiras cidades, com casas, iluminação e prédios públicos, ruas asfaltadas, comércios e indústrias. No bairro de Eldorado, em Diadema, por exemplo, a verticalização é irreversível. Há “prédios” com até seis residências, uma sobre a outra. Também há casas de luxo e clubes. E novos moradores não param de chegar.

No Jardim Gaivotas ainda funcionam fossas. Nas ruas o odor é característico: brota dos canos das casas uma água turva que corre pelo meio-fio morro abaixo, poluindo os córregos, o solo e a represa.

Apesar do crescente aumento populacional na região, o gerente do Departamento de Águas Superficiais e Efluentes Líquidos da Cetesb, Eduardo Mazzolenis de Oliveira, garante que a qualidade da água não está caindo. Mas admite que o custo do tratamento é até quatro vezes maior quando há poluição.

Organizações não-governamentais que acompanham o caso dos mananciais há anos alertam para um futuro temeroso. Para Pilar Cunha, geógrafa e pesquisadora da campanha De Olho nos Mananciais, do Instituto Socioambiental, a situação é crítica: “A Grande São Paulo já sofre com escassez de água. Temos menos por habitante que algumas cidades atingidas pela seca no Nordeste. São produzidos 66 mil litros de água por segundo, e é isso que a população consome, em média. Ou seja, não podemos perder nenhuma fonte de abastecimento e não pode ocorrer nenhum imprevisto”.

Esporte e consciência
Apesar de morarem há sete anos às margens da Billings, os irmãos Fabiano e Cristiano Jesus Souza Santos só vislumbraram nas águas turvas uma opção de lazer quando aprenderam a velejar. Eles fazem parte do Projeto Saracura, da ONG Vento em Popa, que ensina crianças e jovens da região a velejar, construir barcos e a preservar a represa. “Antes de praticar vela eu não usava a represa para nada. O esporte faz você ter mais consciência. Os moradores olham para ela como se fosse um esgoto”, diz Fabiano, que faz aula há um ano. O irmão veleja há dois e admite que no começo sentia nojo da água. “Hoje queremos recuperar para que outras pessoas possam utilizar a represa.”

Esforço inédito

Maria Luisa Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas da SOS Mata Atlântica, reitera que o sistema como está é uma “bomba-relógio, prestes a explodir”. Afirma que o atual modelo de uso, ocupação do solo e desenvolvimento econômico pressiona cada vez mais as áreas de mananciais. “As duas principais da região são as galinhas dos ovos de ouro de São Paulo. Já estamos há quatro anos com a luz vermelha acesa. Se em dez isso não mudar e as políticas públicas não forem implementadas de fato, vai ser o colapso. Mas eu não sou pessimista, acho que a sociedade civil está pressionando – e é assim que as políticas públicas vêm.”

Ricardo Araújo, coordenador do Programa de Recuperação de Mananciais da Secretaria Estadual de Saneamento e Energia, concorda que a situação é preocupante, mas diz que o risco de colapso é baixo. “Se os órgãos responsáveis continuarem investindo, a situação vai melhorar. Mas a guerra ainda não está ganha.” Repasses de R$ 1,22 bilhão para esse programa de recuperação foram assinados em maio de 2008 e contarão com verbas federal, estadual e municipais. Já foram licitados R$ 180,2 milhões e as obras começaram no final de junho. A previsão, até 2011, é que 45 mil famílias em 45 favelas e assentamentos ao redor das duas represas sejam beneficiadas com obras de urbanização, saneamento e habitação.

A Operação Defesa das Águas, da prefeitura e do governo de São Paulo, em andamento há quase um ano e meio, demoliu entre muitos protestos 1.709 construções irregulares. Consta do projeto a transferência de famílias para futuros conjuntos habitacionais. Apesar de as ações de fiscalização terem aumentado e se modernizado com a implantação desses programas, elas ainda não atuam com a rapidez e a eficiência necessárias. Para Virgílio Farias, do Movimento em Defesa da Vida, do ABC, o problema é que fiscalizar é atividade antieleitoral. “Tem político que diz que mato e árvore não votam, então preferem deixar que pessoas entrem na terra e poluam a água.”

De toda forma, é a primeira vez que políticas municipais, estadual e federal se articulam concretamente em defesa dos mananciais sem perder de vista a qualidade de vida da população ribeirinha e da água a ser consumida. Se as obras se concretizarem e a oferta de habitação popular e de educação forem adotadas como medidas preventivas, é consenso entre os ambientalistas que o colapso pode ser evitado. E de quebra, quem sabe, acabando também com a farra dos vendedores ilegais e do celeiro no entorno das represas.

A proteção pode aumentar com a votação da Lei Específica da Billings

Hábitos e promessas

A venda de terrenos é proibida por lei federal desde a década de 1970. É vedada qualquer construção a até 50 metros da água. E, depois dessa metragem, autorizada desde que atenda a uma série de regras – como não exceder a 20% da área do terreno. Mesmo assim surgiram loteamentos clandestinos, oferecendo áreas de 125 metros quadrados, acessíveis a pessoas de baixa renda. De acordo com a Cetesb, 90% dos casos de ocupação da Billings na década de 1980 foram intermediados por associações de moradores, que compravam e dividiam os lotes com a “supervisão” de políticos, que prometiam a breve regularização dos terrenos.

Para aumentar o cerco e determinar os limites das áreas de proteção, está para ser votada na Assembléia Legislativa do Estado a Lei Específica da Billings, que definirá diretrizes, normas ambientais e urbanísticas de acordo com as características particulares da represa, a exemplo da Lei Específica da Guarapiranga, já aprovada, mas ainda não implementada. Enquanto isso não acontece, “imobiliárias” e agentes ilegais ainda faturam com a ilusão alheia.

O pedreiro Antonio José Ferreira da Silva, 35 anos, mudou-se recentemente para o Jardim Gaivotas com a mulher e três filhos. Em janeiro de 2008 comprou à vista, por R$ 7.000, uma casa pronta a 20 metros da água. Ele garante que não sabia da proibição. “Depois que entrei ouvi boatos de que iam derrubar tudo. Penso em sair, mas gastei todo o meu dinheiro aqui. Agora não consigo dormir tranqüilo.” Sua vizinha, a cabeleireira Maria Ilza Ismério, afirma que os moradores mais antigos avisam quem pretende se instalar. “A gente alerta que comprar casa ou terreno aqui é investir no que não tem futuro. Mas não adianta.”

Nadi não teve quem a avisasse. Em janeiro deste ano foi condenada por crime ambiental, teve de prestar serviços comunitários e sabe que algum dia sua casa com vista para a represa será demolida. “Foi um sonho e eu acordei. Pode ser daqui a seis meses ou seis anos, mas a promotora já disse que vou ter que sair sem direito a nada.”

O impacto do Rodoanel

Rodoanel

Dos 61 quilômetros do futuro Rodoanel Mário Covas, Trecho Sul, 38 estarão em área de proteção e recuperação de mananciais. As obras consumirão cerca de R$ 3,5 milhões, começaram em setembro de 2006 e ainda geram muita polêmica entre governo e ambientalistas. A rodovia sai de Mauá, passa por Ribeirão Pires, Santo André, São Bernardo, São Paulo, Itapecerica da Serra e encontra o Trecho Oeste em Embu, ligando as Rodovias Anchieta e Imigrantes, que levam ao Porto de Santos, e a Régis Bittencourt, que liga São Paulo aos estados do Sul. Para isso, terá de cruzar a Guarapiranga com uma travessia de 90 metros e passar sobre a Billings com duas pontes. Por enquanto a evidência dos impactos está no desmatamento de 212 hectares com diversos tipos de vegetação e na construção de uma espécie de pista na água.

O Instituto Socioambiental garante que haverá outros estragos, não levados em conta pelos estudos de impacto ambiental. A entidade alerta que a área de influência direta da obra divide ao meio fragmentos de Mata Atlântica, não considera a totalidade das sub-bacias afetadas e corta áreas de ocupação urbana. A Rede das Águas adverte ainda quanto ao risco de acidentes com cargas químicas que podem interferir no abastecimento de parte da região e o aumento da ocupação urbana numa área sem estrutura de saneamento.

A geóloga Ana Cristina Costa, do Departamento de Avaliação de Impacto Ambiental da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, garante que todas as medidas preventivas e compensatórias estão sendo tomadas, como o replantio de quatro vezes a área desmatada, a criação de novos parques, caixas de contenção para os casos de acidentes com poluentes, entre outras.

De onde vem a água da Grande São Paulo
SistemaVolume por seg.População atendidaDe onde
Billings (R. Grande)4,8 m31,5 milhãoDiadema, São Bernardo do Campo, Santo André
Guarapiranga13,7 m33,8 milhõesZonas sul e oeste de São Paulo, Taboão da Serra, Embu e Cotia
Alto Tietê10,8 m33 milhõesZona leste de São Paulo, Arujá, Itaquaquecetuba, Poá, Ferraz de Vasconcelos, Suzano e Mogi das Cruzes
Cantareira30,5 m3 9 milhõesZonas norte, central, leste e oeste de São Paulo, Franco da Rocha, Francisco Morato, Caieiras, Guarulhos, Osasco, Carapicuíba, Barueri Santana do Parnaíba e São Caetano do Sul
Alto e Baixo Cotia1,87 m3700 mil Cotia, Embu, Itapecerica da Serra, Embu-Guaçu, Vargem Grande, Barueri, Jandira e Itapevi
Rio Claro 3,6 m31,1 milhão Ribeirão Pires, Mauá e Santo André