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A nova Guerra Fria

Uma nova face da Guerra Fria é mais que fria: é gelada. Ela tem como alvo um dos mais difíceis e disputados atalhos do mundo: a Passagem do Noroeste, possível caminho entre América do Norte e Ásia

SLIM ALLAGUI/AFP

Pequeno barco navega entre o gelo na região oeste da Groenlândia

Esse caminho foi primeiro percorrido, a partir da Europa e apenas em parte, pelos vikings, durante a Idade Média. Há um consenso, entre cientistas de diversos campos do conhecimento, de que houve um período de aquecimento no hemisfério norte entre os anos de 800 e 1300 da era cristã. A princípio acreditava-se que esse aquecimento tivesse sido global. Hoje já há dúvidas. Em todo caso, foi nesse período que os vikings navegaram até a Islândia, depois até a Groenlândia e dali chegaram, ao norte, à ilha de Ellesmere – hoje parte do Canadá –, e, ao sul, ao estado da Carolina do Sul, nos Estados Unidos. Até Ellesmere, eles passaram pelo portal leste do caminho, entre a Groenlândia e o território canadense. Estabeleceram na região postos de comércio, que praticavam com os inuit (mais conhecidos como esquimós, nome que eles rejeitam, como preconceituoso, pois seria sinônimo de “canibais”).

A partir de 1250 há sinais de que as geleiras começaram a avançar em direção ao sul, em um resfriamento progressivo, dificultando aquele caminho. Em 1500 o resfriamento se intensifica, causando o que se chama de “Pequena Idade do Gelo”, que dura até 1850. Esse fenômeno é documentado na pintura, com quadros mostrando invernos muito rigorosos, cheios de neve e gelo, até o século 18, o que não mais acontece.

Mas foi justamente a partir do final do século 15, coincidindo com a nova chegada dos europeus à América, desta vez sob o signo da ocupação e da conquista, que se intensificou a busca daquele caminho que ligaria a Europa à Ásia pelo norte. O motivo dessa busca foi a bula papal, de 1493, que dividiu o mundo a oeste da Europa em duas partes, uma portuguesa e outra espanhola, no conhecido Tratado de Tordesilhas. Britânicos, russos, dinamarqueses e outras nações ao norte ficaram sem uma passagem marítima para a Ásia, pelo sul.

Várias expedições tentaram franquear a passagem nos quatro séculos seguintes, mas sem sucesso. A navegação era muito difícil, fosse pelas correntes revoltas na região, fosse pela presença das imensas geleiras, às vezes móveis, fosse pelo contrário: em alguns lugares, entre as ilhas, a água era muito rasa. John Cabot (1497), James Cook (1776) e George Vancouver (1791/1795) destacam-se como capitães dessas expedições que ficaram famosas nas navegações. Há referências de que um navio britânico, o Octavius, teria conseguido atravessar a passagem em 1762, do Oeste para o Leste. Mas ele foi encontrado à deriva 13 anos depois, perto da Groenlândia, com toda a sua tripulação morta. Os corpos estavam congelados debaixo do convés, onde provavelmente tentaram se proteger.

A partir de 1850, um aquecimento na região fez recuar as geleiras. Entre 1850 e 1950, discute-se sobre o motivo dessa elevação da temperatura. De 1950 em diante, sobretudo na década de 1980, existe uma certeza quase generalizada de que o aquecimento, que se intensificou, é resultado da atividade humana e do decorrente acúmulo maior de CO2, o gás dióxido de carbono, na atmosfera. Atingindo proporções cada vez mais dramáticas, o fenômeno recebeu o nome de “aquecimento global”, porque desta vez se dá na Terra inteira, incluindo os pólos.

A partir da segunda metade do século 19, a busca da Passagem do Noroeste recrudesceu, movida também pela série de explorações que chegaram aos pólos. O feito coube ao explorador norueguês Roald Amundsen, o mesmo que em 1911 alcançaria pela primeira vez o Pólo Sul.

Ciranda no topo do mundo

Amundsen levou quase três anos para realizar a viagem, do verão (no hemisfério norte) de 1903 ao inverno de 1905-1906, tendo chegado ao Alasca, ainda no continente americano, em 5 de dezembro de 1905. A partir daí várias expedições tentaram repetir a façanha, algumas com sucesso. Havia a certeza, no entanto, de que a passagem era impraticável do ponto de vista comercial. Ainda assim, em 1984 um navio de passageiros, o MS Explorer, conseguiu atravessá-la. Uma das dificuldades do caminho era que a passagem nunca se apresentava completamente livre de gelo.

Isso mudou a partir de setembro de 2007. O aquecimento no Oceano Ártico ganhou ritmo mais rápido do que os cientistas imaginavam. Fotos de satélite registraram, afinal, que a passagem estava, provavelmente pela primeira vez em muitos séculos, completamente livre de gelo.

Agora, neste começo do século 21, há uma mudança radical na paisagem das navegações. Modernos navios podem chegar aonde os mais antigos nem sonhavam. Por exemplo, a partir de Murmansk, porto russo que teve grande importância militar aos tempos da União Soviética, organizam-se expedições turísticas até o Pólo Norte. Lá, os turistas entregam-se a uma atividade peculiar. Dão-se as mãos, sobre o gelo, em torno do ponto (uma vez que não há paralelo) de 90o de latitude norte. Ao contrário do personagem de Júlio Verne, que deu “a volta ao mundo em 80 dias”, no famoso romance, eles o fazem em 80 segundos, na ciranda mais fantástica que talvez jamais tenha havido na face da Terra.

A perspectiva de que o aquecimento global e local mantenha a passagem aberta por períodos mais longos do ano avivou as ambições comerciais na região. Ela poderia representar uma abreviação do longo caminho marítimo, que ainda se deve percorrer, da Europa à Ásia, e vice-versa, através do Canal do Panamá.

Também reavivou velhos interesses geopolíticos e militares. Ao contrário do que se pensa vulgarmente, a Guerra Fria não acabou. Na sua versão ideológica, que opunha o capitalismo ao comunismo, os Estados Unidos venceram e a União Soviética desagregou-se, em 1991.

Tempo é dinheiro

De lá para cá, a Rússia, a principal república da ex-URSS, recupera-se econômica e militarmente. O objetivo de cercá-la não desapareceu da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos Estados Unidos, como demonstram recentes tratados propostos à Polônia e à República Tcheca, ex-integrantes do bloco comunista, que levariam ao estabelecimento de bases da Otan em seu território. O da República Tcheca foi confirmado e só depende da aprovação dos respectivos parlamentos, o seu e o dos EUA. O da Polônia aguarda provavelmente o resultado das eleições americanas. O objetivo anunciado dessas bases é deter possíveis mísseis do Irã sobre a Europa. Mas ocorre que o Irã não tem ainda mísseis com esse alcance. A reação russa foi imediata: anunciou que haverá retaliações “técnicas e militares”, caso os tratados sejam confirmados.

Nesse quadro de tensões novas e antigas em ascensão, as ambições de comércio e os radares e olhares militares voltaram-se para a região ártica e sua nova passagem aberta, ainda que de modo precário e por ora incerto. Os russos, provocativamente, fincaram sua bandeira sob o gelo flutuante do Pólo Norte, a 4.200 metros de profundidade. O Canadá reclama soberania, mesmo que parcial, sobre a passagem, já que a maior parte dela está entre ilhas e arquipélagos que lhe pertencem. Os EUA reivindicam livre acesso à passagem. E a Dinamarca se moveu, pois um dos lados da navegação se dá, em parte, bordejando a Groenlândia, território seu.

Do outro lado, o asiático, a China já se mexe, como nova potência comercial e imperialista em escala mundial. A Noruega, também terra dos antigos vikings, tem interesse na área: sua ilha de Svalbard confronta de um lado a Groenlândia, do outro ilhas russas e ao norte a placa gelada do pólo. A Suécia, antiga e pouco conhecida potência da região, não ficará indiferente a essa disputa. Idem a União Européia, caso se confirme o valor comercial (por ora mais turístico do que outro) e militar da nova passagem. Para os Estados Unidos, reconhecida potência naval desde os tempos da Segunda Guerra Mundial, em disputa ainda permanente com uma potência terrestre, a Rússia, o acesso ou mesmo o controle sobre a passagem e a região é vital.

Passagem para Pelucidar

Na literatura, as águas congeladas do Pólo Norte sempre exerceram fascínio. Sucessivas expedições para alcançá-lo foram motivo de inúmeros escritos, tanto quanto as do Pólo Sul. Segundo antigas lendas, no Pólo Norte haveria uma passagem para o estranho mundo de Pelucidar, o mundo que existiria por debaixo da crosta terrestre. Esse mundo foi tema de um dos mais famosos livros de Julio Verne (Viagem ao Centro da Terra). Numa de suas aventuras (Tarzan no Centro da Terra), o herói de Edgar Rice Burroughs visita esse mundo, numa expedição que, por meio de um balão, consegue “descer” por essa entrada polar até Pelucidar. O que encontram lá? Um daqueles mundos perdidos, cheios de animais estranhos e homens e mulheres da idade da pedra.

Agora um estranho mundo, que não sabemos qual seja, pode estar sendo vislumbrado através do surgimento, ou ressurgimento, dos incríveis caminhos gelados dessa Passagem do Noroeste. Pode ser o mundo de um aquecimento catastrófico cujas conseqüências não sabemos precisamente quais serão. Mas sabemos que, caso ele se confirme com a dramaticidade que o degelo na passagem anuncia, elas serão terríveis. Como já se disse, os mais velhos deste começo do século 21 talvez não vejam a futura catástrofe. Mas seguramente já estão olhando nos olhos dos que poderão vê-la – ou sua neutralização por políticas ambientais mais consistentes e sustentáveis.

Pode ser também o mundo que suceda ao eventual confronto entre as maiores potências militares e nucleares que a humanidade já conheceu. Nesse caso, poderemos ter a confirmação do pensamento de Einstein, que certa vez disse não sabermos como será a Terceira Guerra Mundial, mas termos certeza de como seria a Quarta: com paus e pedras, como na Idade da Pedra ou na fantasia de Pelucidar. Nesses termos, a Passagem do Noroeste é um caminho possível, mas é também uma advertência.