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Jornais maltratam imagem das greves

Grandes grupos que controlam a produção do conhecimento e da cultura passam a borracha nos trabalhadores como protagonistas da história

Jailton Garcia

No noticiário, principalmente da TV e do rádio, a greve dos professores merece destaque apenas quando prejudica o trânsito

Você sabia que as reivindicações de trabalhadores vêm recebendo tratamento simpático da mídia, mas que a possibilidade de greve é quase sempre noticiada como uma “ameaça”? Esses são alguns dos achados do Observatório Brasileiro de Mídia (OBM) durante todo o ano passado, resultado do acompanhamento do noticiário dos cinco jornais brasileiros de referência nacional: O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e Correio Braziliense. Quase 80% das 719 reportagens sobre campanhas salariais foram consideradas pela pesquisa como favoráveis às reivindicações dos trabalhadores ou equilibradas. Mas a palavra “ameaça” foi usada em 28 dos 35 títulos sobre a possibilidade de uma greve ser decidida. Um título usou a palavra “risco”, mais amena, mas com o mesmo sentido. Em apenas seis títulos os jornais preferiram a expressão neutra “possibilidade de greve”.

A explicação para a contradição pode ser simples: “ameaça de greve” é uma expressão curta e forte, ideal para uma manchete de jornal. Mais comunicativa do que dizer: “metalúrgicos aprovam possibilidade de greve”. Mas não há dúvidas de que carrega juízo de valor negativo. Ameaçar, seja lá o que for, é entendido como violência. Tem objetivo de intimidar, “meter medo”, diz o dicionário. Portanto, condena a greve a priori.

Outra explicação para o emprego repetido da palavra “ameaça” vem do fato de as greves mais prolongadas e de maior impacto atualmente acontecerem no serviço público, enquanto no setor privado aumenta o número de acordos firmados sem necessidade de greve. O OBM constatou que a maioria das reportagens desfavoráveis às reivindicações tratava de greves com reflexo negativo direto no dia-a-dia da população: greves da Polícia Federal, nos serviços de transporte, saúde ou educação. O Observatório também constatou que enquanto as reivindicações específicas de cada categoria são bem aceitas pela mídia, as propostas de aprofundamento dos instrumentos de luta dos trabalhadores ou ampliação universal de seus direitos foram tratadas de modo desfavorável ou ideologizado. Foi o que aconteceu com cerca de 54% das reportagens sobre a demanda por uma semana de 40 horas de trabalho e o reconhecimento das centrais, por exemplo.

Borracha na história

Entra em jogo nesse caso uma visão conservadora dos jornais contra mudanças estruturais na sociedade. As bandeiras mais gerais do movimento são vistas como ameaça ao sistema e rejeitadas liminarmente, apesar do seu papel civilizatório desempenhado historicamente. Sem os sindicatos não se teria nem mesmo o próprio direito básico de negociar salários, não se teria a semana de oito horas e talvez nem a democracia. Foram greves que acabaram com as infames jornadas de 14 horas de trabalho. No Brasil, a grande greve de 1917 conquistou o direito de organização dos trabalhadores, a implantação do salário fixo – já que na maioria dos lugares só se trabalhava pela comida e moradia – e a proibição do trabalho noturno de crianças e mulheres.

E quanto à democracia? Em muitos países foram também greves que instituíram a democracia. Uma greve de tecelões exigiu e conseguiu o voto secreto e universal na Bélgica em 1893, daí se estendendo a outros países europeus. E foi o movimento sindical inglês que estruturou a modelar democracia britânica, com a famosa Carta de seis pontos de 1838, que instituía o voto secreto e universal, distritos eleitorais justos, e o pagamento de salários para deputados, para que trabalhadores também pudessem exercer mandatos. E nem é preciso ir tão longe ou recuar tanto no tempo: foram as greves de 1978 a 1980 no Brasil que derrubaram a ditadura.

Muito sangue foi derramado em greves. É preciso lembrar que até os sindicatos se tornarem organizações de massa, lá pelos anos 1920, greves e reuniões de trabalhadores eram reprimidas com violência. E mais, sempre que se busca suprimir direitos políticos e sociais, é preciso primeiro derrotar sindicatos. No Brasil, os golpistas de 1964 decretaram intervenção em 90% dos sindicatos e baixaram a Lei de Segurança Nacional proibindo greves.

Mais recentemente, para instaurar o neoliberalismo na Inglaterra, a senhora Thatcher partiu para cima dos mineiros em 1984 e, logo depois, dos trabalhadores ferroviários, conseguindo derrotar os dois setores mais tradicionais do movimento trabalhista inglês. Só depois disso conseguiu privatizar a siderurgia britânica, a indústria naval e as ferrovias.

As greves, portanto, deveriam ter na cabeça das pessoas a mesma imagem gloriosa das lutas de libertação nacional. Mas não têm. Quase nada se sabe sobre elas. Em parte, isso se deve a um problema de comunicação do próprio movimento sindical. A greve é quase sempre uma ação coletiva de fôlego curto que exige unidade de todos os trabalhadores daquela base ou daquela empresa, para obter rapidamente a vitória. Preocupados com essa urgência tática, os boletins e jornais sindicais dirigem-se aos trabalhadores de sua área, mas, salvo exceções, comunicam-se mal com o grande público.

Assim se formam lacunas na imagem das greves. E se o patrão é o Estado, e os usuários são outros trabalhadores, como é o caso das greves de ônibus ou de metrô, ou de professores, a sua imagem é mais facilmente desgastada na mídia. O pior acontece no longo prazo: a mídia conservadora e os grandes grupos que controlam a produção do conhecimento e da cultura conseguem passar a borracha nos trabalhadores como protagonistas da história.

Professores, greve por quê
A greve dos professores de São Paulo, aprovada por assembléia com 30 mil pessoas em 13 de junho, é emblemática da forma como a imprensa trata as reivindicações e a legitimidade de movimentos do setor público. Desde janeiro a Apeoesp, o sindicato da categoria, pedia audiência para tratar de questões como reajuste salarial e incorporação de gratificações. E, principalmente, abordar temas como a melhoria do processo de ensino-aprendizagem com o fim da aprovação automática; limite máximo de alunos por sala de aula; melhoria na estrutura das escolas. O governo não atendeu e ignorou a data-base, garantida por lei, no mês de março. 

Além das alterações na licença-saúde, o que detonou a aprovação da greve foi a publicação, pelo governo Serra, de um decreto que altera a forma de substituição, remoção e contratação de novos professores e prejudicava os que já estão na rede há muitos anos, porém ainda sem concurso. Raramente a imprensa tratou disso. Limita-se a abordar a greve pelo “trânsito” causado pelas assembléias. Matérias sobre à administração estadual, que há anos vê o desempenho da rede de ensino despencar nos sistemas de avaliação, são escassas.