perfil

Paulo e Eliana nunca desistem

Sobreviventes de surtos de poliomielite, Paulo e Eliana “moram” dentro do HC quase a vida toda e driblam com dignidade as limitações decorrentes da paralisia infantil

Gerardo Lazzari

Entre um trabalho e outro em sua workstation, Paulo lembrados amigos que perdeu em décadas de internação

Num quarto da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Instituto de Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo é que Paulo Henrique Machado e Eliana Zagui passam dias, meses e anos. Paulo, com 40 anos, chegou ao HC com pouco mais de 1. Eliana, com 34, também foi internada antes de completar 2. São sobreviventes dos surtos da paralisia infantil que ocorreram no país entre as décadas de 50 e 70. Paulo não sabe se foi vacinado ou não. Eliana ficou sabendo que a cada vez que era levada a um posto de saúde a dispensavam da vacina devido a uma febre constante. Apesar da perda de boa parte dos movimentos e da dependência de aparelhos para respirar, eles não buscam culpados. Superaram as fases de crises e revoltas e seguem lutando para viver, amar, ser amados e respeitados.

A família de Eliana é de Guariba, a 337 quilômetros de São Paulo, onde não havia tratamento adequado. Seus pais tentaram vários hospitais, e nada. Quando chegaram ao HC, a pólio já havia comprometido os movimentos de Eliana do pescoço para baixo. Sem alternativas, os pais a deixaram no hospital. Paulo conta que sua mãe morreu dois dias após seu nascimento. Ficou com a avó materna, mas não sabe muito bem como foi parar no HC. Ele movimenta, parcialmente, braços e cabeça. Seus parentes os visitam, telefonam e mandam mensagens. E alguns funcionários do HC se tornaram tão ou mais especiais que seus próprios familiares.

Basta bater na porta do primeiro quarto da unidade e ouvir o grito de Eliana – “Entraaaa!” – para perceber que não se trata de um mero leito de UTI. O ambiente, dividido em dois, tem toques pessoais de cada um. Uma cama fica de frente para a outra. Na parte dele há pôsteres de Senhor dos Anéis, Sin City e pintura do Darth Vader, de Star Wars. Na estante, DVDs de A Era do Gelo, todos os Matrix, Indiana Jones e Star Wars. Ao lado da cama fica sua “workstation”, como ele mesmo diz. É um computador todo montado por ele próprio.

Autodidata, Paulo aprendeu a mexer no computador e a falar inglês. Tudo com o propósito de realizar o sonho de trabalhar com animações para o cinema. Tema de um documentário curta-metragem ele já é. Paulo faz bicos como webdesigner, mas prefere passar as horas concentrado no programa Maya, elaborando suas criações em 3D, como um dragão e um helicóptero. “Não consigo mais me imaginar sem computador.”

Recentemente, Paulo conseguiu realizar parte de um sonho. Vem se comunicando por e-mail com o brasileiro Carlos Saldanha, que vive em Los Angeles e fez A Era do Gelo. “Ele ficou sabendo da minha história de vida e que eu queria muito conhecê-lo, escreveu para o hospital e descobriu meu e-mail. Recebi uma mensagem dele dizendo que quando estiver no Brasil virá ver meus desenhos. Já pensou?”, entusiasma-se.

O outro lado do quarto tem estampada a presença feminina. Bichinhos de pelúcia, bonequinhas, bijuterias e batons. Há ainda tintas, telas, quadros e fotos. Eliana recorda que, vencida a fase de revolta de não poder escrever como a maioria das crianças, aos 8 anos, com a ajuda de voluntários, se interessou pela pintura. Adorava canetinhas. Aprendeu a pintar com a boca. Começou colorindo desenhos em papéis, depois passou para madeira, porcelana até chegar às telas. “Na tela tenho mais liberdade de criar, não fico presa ao esboço. Parece que quando estou pintando me transporto para aquele local. É muito bom.” Eliana acredita ter pintado em torno de 100 quadros. Há sete anos faz parte da Associação dos Pintores com a Boca e os Pés, da qual recebe bolsa para investir em sua arte. Seus quadros rodam o mundo em exposições organizadas pela associação, cuja sede é na Suíça.

Os dois ainda têm televisores, DVD e telefones, usam internet, têm e-mail e estão no Orkut. Normalmente, recebem visitas de amigos. Adoram quando conseguem escapar da comida do hospital e se deliciam ao pedir pizzas e lanches entregues pelos motoboys. Para Paulo, uma das boas lembranças da infância dentro do HC eram os plantões do tio Fernando, que costumava juntar as camas de todas as sete crianças que viviam no hospital para assistir aos filmes no videocassete. Nessas ocasiões, não podiam faltar guloseimas. Ao mesmo tempo em que relembra a farra que faziam, Paulo fica nostálgico ao contar que outros cinco amigos e companheiros de quarto, também vítimas da paralisia infantil, não resistiram e morreram: “Éramos sete, as perdas, para nós, foram como mutilações. Sinto muita falta do Pedro, que era o meu irmão. Claro que amo e oro pela Eliana, mas nunca vou esquecer dele. Ficou um buraco”, lamenta.

gerardo lazzariEliana
Eliana, 34 anos: pintura com a boca motiva a luta pela vida

Além de pintar, Eliana vem escrevendo sua biografia, na qual pretende detalhar a convivência dos sete dentro do HC. Ela conta que há algum tempo não escreve, pois acaba tendo de lidar com lembranças dolorosas. “Na infância, deram dez anos de expectativa de vida para mim, e eu tô aqui. Os homens dão prazo de vida pra gente, mas quem decide é Deus, e Ele sabe que eu luto pela vida”, afirma.

Paulo também escreveu um livro, mas preferiu dar vazão à imaginação, misturando ficção científica e era medieval. Mandou para uma série de editoras, mas nenhuma se animou a publicar. “Cheguei a ficar frustrado, mas descobri que na animação também posso criar vários mundos. Procuro aprimorar meu trabalho com o objetivo claro de exibir nas telas tudo aquilo que está na minha mente. Eu não vou desistir!”