Crônica

Ana e sua mãe

Nos bons tempos de carona, nossas férias começavam lá pelo Maranhão, descíamos por Ceará, Pernambuco e outras paradas. Os últimos dias eram sempre em Salvador, aonde geralmente chegávamos totalmente duros. Mas sobrevivíamos bem

Mendonça

Numa dessas viagens, conhecemos a Ana, morena baiana amiga da Olga, companheira de viagem. Belíssima, sensual, Ana ainda por cima cantava e dançava muito bem. Fazíamos samba de roda direto. E ficava todo mundo babando.

A mãe da Ana era uma mulher de aparência frágil, cabelos quase todos brancos, simpática… e entendia muito bem a nossa dureza. Sempre que íamos buscar sua filha para sair, ela enchia a mesa de comidas para nós.

Estávamos hospedados numa república no bairro da Federação. Os moradores, liderados pelo Elso, um pernambucano tão receptivo que parecia baiano, nos deixaram ficar lá de graça, sem nem mesmo nos conhecer. O problema era que todo o dinheiro que nos restava para passar o tempo previsto na Bahia usamos para comprar cachaça, farinha e feijão. E a república ficou em festa durante 16 dias seguidos, com a cachaça garantida e o feijão com farinha também. Samba de manhã, de tarde e de noite. Mas cachaça com feijão e farinha não era fácil de engolir no café-da-manhã, e não tínhamos mais dinheiro nenhum.

Virou hábito de todos nós ir tomar café-da-manhã na casa da Ana. Principalmente a Olga, a Aurora, o Mário, o Norberto, o Ricardinho (que chamávamos Tripé, por gozação) e eu. A gente pegava uma esteira de praia e lascava a pé da Federação até o Campo Grande. Ao toque da campainha a mãe da Ana atendia, e era sempre a mesma coisa:

– Estamos indo para a praia. A Ana vai com a gente?

– Ela está se arrumando. Entrem para tomar um cafezinho.

– A gente entrava, a mesa estava posta com todas aquelas comidas nordestinas, um café-da-manhã digno de um hotel cinco estrelas. Comíamos o máximo possível.

Um dia, enquanto o samba comia solto na república, lá pelas 9 da manhã, chamei o Mário em tom de gozação:

– Vamos buscar a Ana para ir à praia?

E lá fomos. Tocamos a campainha da casa dela, a “mãe da Ana” abriu.

– Estamos indo à praia…

Ela olhou com ar surpreso e disse:

– A Ana já foi, com o “seu” Tripés…

Ficamos com cara de espanto, vontade de rir, porque ela não entendia o sentido da palavra tripé – três pernas – no apelido do Ricardinho, e ao mesmo tempo com vontade de chorar pelo estômago roncando de fome. Ela fez uma pausa e completou:

– Entrem e tomem um cafezinho.

Ufa! Que alívio.

Dias depois da volta para São Paulo nos encontramos num boteco e alguém tinha comprado um cartão-postal para enviarmos à mãe da Ana, com nossos agradecimentos. Só havia um problema: ninguém lembrava o nome dela. Só nos referíamos a ela como “mãe da Ana”, e não guardamos seu nome. Depois de muito pensar, o Mário deu um murro na mesa, quase virando os copos:

– Fifi! Dona Fifi!

E mandamos o cartão para a dona Fifi.

Uns meses mais tarde, alguns de nós voltamos a Salvador e fomos fazer uma visita à Ana. A mãe dela comentou:

– Até que enfim vocês apareceram. Foram embora e nem deram mais notícias.

– Nós mandamos um cartão…

– Pra mim?

– Sim… A senhora não recebeu?

– Eu não. Aqui, só quem recebeu um cartão de vocês foi a minha cachorra, a Fifi. Eu sou a Pimpinha.

Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é jornalista e geógrafo. Publicou vários livros, entre eles o Anuário do Saci, ilustrado por Ohi