Cinema

Um arsenal de elite em Berlim

Mais que o Urso de Ouro, o cinema brasileiro teve presença marcante na 58ª edição da Berlinale, na capital da Alemanha

Johannes Eisele/REUTERS
Johannes Eisele/REUTERS
Padilha: ninguém considerou o capitão Nascimento um herói

Além de vencedor do Urso de Ouro como melhor filme, Tropa de Elite, o Brasil levou outros oito filmes ao Festival de Berlim, a Berlinale: Mutum, de Sandra Kogut, Cidade dos Homens, de Paulo Morelli, Maré, Nossa História de Amor, de Lúcia Murat, Mr. Bené Goes to Italy, de Manuel Lampreia, e Estômago, de Marcos Jorge, na curiosa mostra de cinema culinário; e os curtas Café com Leite, de Daniel Ribeiro, Tá, de Felipe Sholl, e Dreznica, de Anna Azevedo. O país também esteve presente no extraordinário sucesso junto ao público do filme Café de Los Maestros, documentário sobre a história de um espetáculo com veteranos do tango, do argentino Miguel Kohan, com patrocínio de Walter Salles, da Petrobras e da Agência Nacional de Cinema (Ancine), do Brasil.

Essa verdadeira tropa de elite foi bem recebida pelo público e pela crítica, com muitos elogios à técnica e às interpretações. Destaque para o menino Thiago da Silva Mariz, hoje com 12 anos, que aos 10 protagonizou Mutum, baseado no conto Campo Geral, de Guimarães Rosa. E para Wagner Moura.

Mutum foi apresentado na sessão especial para crianças, embora não seja um filme para público infantil. O ator João Miguel, que representou o rude e violento pai do menino, também está no curioso Estômago, filme que, segundo seu diretor Marcos Jorge, aborda culinária e sexo enquanto fontes de poder.

Na tradicional entrevista coletiva que a embaixada brasileira organiza com diretores e artistas do país, o menino Thiago contracenou com seu colega Douglas Silva. Douglas estreou no cinema em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. Aos 12 anos, foi o Dadinho que viraria mais tarde Zé Pequeno, de Cidade dos Homens.

Do conjunto, o filme de José Padilha contrariou as expectativas dos críticos de cinema convencionais dos grandes jornais de Berlim, que apostavam em There Will Be Blood (Sangue negro), de Paulo Thomas Anderson. Tropa de Elite ganhou o Urso de Ouro, prêmio maior do júri presidido pelo cineasta grego Costa-Gavras. O filme de Anderson ficou com o Urso de Prata de melhor direção (o festival dá apenas um Urso de Ouro, os demais são Prata ou Cristal). Café com Leite ganhou o Urso de Cristal na categoria de curtas-metragens para jovens; Mutum, menção honrosa na categoria infanto-juvenil; e Tá, de Felipe Scholl, o Teddy, prêmio especial para filmes de temática homossexual.

O capitão da tropa

Precedido pela fama, pelo grande público e pelas controvérsias no Brasil, Tropa de Elite também despertou polêmicas na imprensa alemã. A maioria dos comentários foi favorável. Crítica severa, mesmo, só a de Julian Hanich, do jornal Der Tagesspiegel, que enfatizou a rápida sucessão de cortes, os “sons bombásticos”, os pulos súbitos da câmera como um “metralhar” de movimentos que não deixava tempo para o espectador pensar. Essa mesma movimentação ganhou elogios da professora do Instituto Latino-Americano Ute Herrmanns, no Die Tageszeitung: “A forma como foi feito faz dele um filme digno de ser visto. Não se trata da glorificação de um policial, mas de sua desconstrução”.

Na avaliação do estudante e jornalista Dawid Danilo Bartelt, talvez o público alemão, longe dos problemas reais do Rio de Janeiro, pudesse ver o filme mais próximo da intenção do seu diretor. Para ele, não se trata de uma glorificação do policial nem do Bope, mas da crítica ao sistema de corrupção e de violência tanto da polícia como dos traficantes. Dawid destacou que o filme era muito mais crítico em relação a todo o aparato policial, inclusive o Bope, do que poderia parecer à primeira vista.

Esse distanciamento do público alemão foi mencionado pelo ator Wagner Moura em conversa com a reportagem. Para ele, em Berlim vive-se uma realidade muito diferente. Ele espantou-se diante das perguntas que teve de enfrentar. Queriam saber como tinha sido seu “treinamento” como policial do Bope. Moura enfatizou que a visão que o filme dá de seu personagem em nada o torna um herói. Contou que convivera por três meses com o Bope e ficou amigo de alguns policiais. “Eles acreditam no que fazem, são treinados para pensar que a violência só pode ser combatida com a violência.” Segundo o ator, o problema vivido pelo capitão Nascimento – extenuado, estressado, em crise de valores e na família – é comum na corporação, onde os policiais são recrutados muitos jovens, doutrinados para ser máquina e, lá pelos trinta e poucos anos, descobrem que nada daquilo funciona.

O diretor José Padilha defendeu o filme e também o público brasileiro. Disse que foi a dezenas de exibições em universidades e centros comunitários e em nenhum momento viu alguém aplaudir as ações violentas do filme ou considerar o capitão Nascimento um herói.

Tropa de Elite é para ser visto no cinema. Há detalhes importantes que só se destacam na tela grande. Por exemplo, na cena em que morre o amigo do traficante Baiano. No momento em que o perseguido leva o tiro fatal, pequenas gotas de sangue respingam na lente da câmera, que segue filmando, e conota a intenção de “respingar” no espectador. Outro detalhe importante está no som: só uma reprodução perfeita permite notar a ironia das auto-narrações do capitão, que quer inculcar no personagem que o substitui na corporação valores nos quais não mais acredita. Há sutilezas de voz que se perdem numa reprodução inadequada. O eixo do filme é o sentimento de culpa que em nenhum momento o capitão consegue expressar. Só consegue transferir para o recruta que forma. Ou deforma.

Cinema e valor
A Berlinale é um dos festivais de cinema mais importantes do mundo. Neste ano, mais de 200 filmes foram apresentados. O evento valoriza o cinema de diretores jovens, ao lado dos consagrados. O público vem de toda a Alemanha, da Europa e de outras partes do mundo. Não faltam os estrelismos e as passarelas de celebridades, como Madonna, cujo filme de estréia como diretora chegou a receber algumas vaias. Todas as apresentações são seguidas de debates com diretores e atores, e também são oferecidas oficinas para jovens cineastas. Tudo isso ajuda a entender como Berlim é uma cidade que não perde salas de cinema e por que elas estão sempre lotadas.

Confira outros prêmios recebidos pelo cinema brasileiro em Berlim: Sinhá Moça, de Tom Payne (prêmio especial do júri, 1954); Os Fuzis, de Ruy Guerra (Urso de Prata de melhor direção, 1964); Toda Nudez Será Castigada, de Arnaldo Jabor (Urso de Prata de melhor direção, 1969); A Queda, de Ruy Guerra e Nelson Xavier (Urso de Prata de melhor direção, 1979); Pra Frente Brasil, de Roberto Farias (dois prêmios especiais do júri, 1983); A Hora da Estrela, de Suzana Amaral (Urso de Prata de melhor atriz para Marcélia Cartaxo e dois prêmios especiais, 1986); Vera, de Sérgio Toledo (Urso de Prata de melhor atriz para Ana Beatriz Nogueira, 1987); Ilha das Flores, de Jorge Furtado (Urso de Prata e prêmio especial do júri para curtas, 1990); Central do Brasil, de Walter Salles (Urso de Ouro, Urso de Prata para Fernanda Montenegro e prêmio do júri, 1998).