religião

Opção pelo véu

O islamismo cresce no mundo e no Brasil. O sincretismo religioso brasileiro facilita a adaptação dos fiéis locais, mas não livra os devotos do estranhamento e da curiosidade alheios

João Correia Filho

Magda Aref cursou Ciências Sociais na USP: “As teorias da sociologia iam contra quase tudo o que acredito, mas nunca pensei em largar. Ao final, foi mais uma prova da minha fé”

Está escrito: “Diga às mulheres de fé que devem manter baixos os olhos e não revelar seus adornos… e que devem cobrir seus seios com véu” (Alcorão, Surata 24:31). Magda Aref sabe disso. Tem 30 anos e desde os 15 só sai de casa vestida dos pés à cabeça. Da porta para fora está sempre de braços cobertos e cabelos escondidos sob tecido. Assim cursou quase todo o colégio e Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. Assim vai ao banco, ao supermercado, leva as filhas à escola, visita amigos. Pouco importa se desperta atenções. O que quer é estar próxima de Deus.

Magda faz parte da comunidade islâmica, em alta no Brasil e no mundo, com 1,5 bilhão de praticantes. Embora o último censo do IBGE tenha apontado a existência de 30 mil muçulmanos no início da década, líderes religiosos estimam que por aqui já sejam mais de 1 milhão. Para Magda, se comportar e andar com recato e assistir às cerimônias religiosas em ambiente separado dos homens não são sinais de desigualdade, mas de respeito. “Fazem confusão, como se todos desrespeitassem as mulheres e estivessem envolvidos com terrorismo. É uma minoria, e gente assim infelizmente existe em toda parte, independentemente da crença.”

O rigor no vestir das mulheres chama atenção, mas a religião criada pelo profeta Mohammad, ou Maomé, no século 7, tem outros fortes pilares que todo fiel deve seguir. Saber sempre a direção da sagrada cidade de Meca é fundamental. É para lá que o fiel deve se voltar de joelhos cinco vezes ao dia e realizar a Salat, como chamam as orações. Todo muçulmano que puder deve peregrinar para Meca ao menos uma vez na vida, cumprindo o ritual do Hajj. Outros pilares importantes são o Zakat, doação feita anualmente aos necessitados, e o jejum ao longo do mês do Ramadã, do amanhecer ao pôr-do-sol. “As pessoas estranham a gente ficar sem comer e beber de dia durante um mês, na primeira semana tenho de explicar no trabalho por que não vou almoçar; depois se acostumam”, conta Anderson Cunha, 18 anos, que pratica o jejum desde os 14.

João Correia FilhoSamara Abdouni
Samara Abdouni, (à esq.): “Sei que todo mundo olha pra mim, embora a intenção seja o contrário, não chamar atenção”

Fidelidade

O primeiro pilar do Islã é o fiel declarar que não existe outra divindade além de Deus e que Mohammad é seu profeta mensageiro. Assim, com essa frase dita em poucos segundos, a conversão está efetuada. Para um cristão que deseja se converter ao Islã será preciso, a partir desse instante, ver Cristo como um bom homem, mas não mais como filho de Deus. “Dizem que se converter ao Islã é fácil, pois basta falar uma frase. Mas, na verdade, a declaração é apenas algo que só deve ocorrer quando a pessoa realmente sente que está pronta para seguir o que diz. O Islã pede uma nova vida”, afirma Nasereddin Al-Khazraji, dirigente do Centro Islâmico do Brasil.

O português perfeito de Naser não deixa transparecer, de imediato, seu elo com a terra natal. Ele veio do Irã aos 7 anos com o pai, o xeque Taleb Hussein Al-Khazraji, que há 19 anos atua numa mesquita no bairro paulistano do Brás. Em qualquer mesquita, em qualquer lugar do mundo, a cerimônia oficial deve ser feita em árabe, a língua sagrada para o Islã. Por isso a maior parte dos centros religiosos muçulmanos ministra cursos do idioma. Naser mantém a proximidade com sua origem não só falando em persa com o pai. A mãe e cinco de suas seis irmãs ficaram por lá. A noiva também. Com apenas 26 anos, ele vive em função do Islã. Durante o Ramadã, nono mês do calendário lunar islâmico, sem data fixa, é responsável por coordenar a oferta do jantar de desjejum diariamente para pelo menos 200 pessoas.

Naser atua ainda na certificação da comida halal, produzida de acordo com os ritos islâmicos. Muçulmanos não comem carne de porco e a carne de vaca ou de aves pede um abate especial. O animal deve ficar em direção a Meca, ser abatido por um religioso e ter o sangue escorrido, pois a crença também veta ingestão de sangue. A empresa de Naser analisa procedimentos dos fornecedores e os libera para vender para a comunidade islâmica local e para exportar. Isso não é novidade para a indústria alimentícia brasileira. A Sadia, por exemplo, exporta carne halal para países árabes muçulmanos há mais de 30 anos.

Os muçulmanos vieram para o Brasil junto com a onda de imigrações do século passado, a maioria descendente de sírios e libaneses, mas nas cerimônias também podem ser observados grupos de países africanos que imigraram mais recentemente. A maior população de muçulmanos no Brasil vive na Grande São Paulo. Foz do Iguaçu (PR) e outras cidades do Sul também são focos expressivos da cultura.
 

João Correia FilhoMesquita em São Paulo
Mesquita em São Paulo: estima-se que a comunidade islâmica no Brasil chegue a 1 milhão de seguidores. A maioria descende de sírios e libaneses

Um mundo diferente

Desde que decidiu seguir à risca as palavras do Alcorão, o livro sagrado dos islâmicos, Samara Abdouni passou a se habituar a ouvir frases como “Olha aí, a filha do Bin Laden” ou “E aí, sobrinha do Saddam?” Usa véu e exibe olhos maquiados com um delineador marcante e nega convites de garotos para dar um passeio. “Sei que todo mundo olha pra mim, embora a intenção em se vestir seja o contrário, não chamar atenção. Aqui todo mundo acha legal mulher pelada e estranho mulher vestida, mas faço o que o profeta Mohammad – que a paz esteja com ele – recomenda”, desabafa. Samara explica o namoro à moda árabe é à moda antiga. Nada de ficar sozinha com meninos, a aprovação da família é fundamental e sexo só após o casamento.

O preconceito e a perseguição são muito presentes nos países em que os muçulmanos são minoria. Magda, Naser e Samara falam que aqui são apenas vítimas de curiosidades e de pequenas confusões, mas temem pelo que ocorre no resto do mundo. O palestino Saker Makhif, que chegou ao Brasil nos anos 1960, abandonou em 2001 a idéia de encontrar amigos e se mudar para os Estados Unidos: “Estava tudo certo, mas teve o 11 de setembro… Com essa barba e essa cara não passo nem na porta do consulado. Resolvi ficar no Brasil, onde todos gostam de mim e respeitam a minha fé”. A França, onde vivem 5 milhões de muçulmanos, proíbe símbolos religiosos nas escolas, numa tentativa de dar adeus aos véus, quipás e grandes crucifixos. No Reino Unido, a Câmara Inglesa pediu às mulheres islâmicas que deixassem o véu em casa, alegando que o hijab interfere no relacionamento humano.

Nunca ninguém sugeriu a Magda Aref que deixasse de usar véu, assim como ela não se importa se nos lugares que freqüenta há crucifixos na parede, e não a lua crescente, símbolo do Islã. Mas os quatro anos que passou cursando Ciências Sociais na Universidade de São Paulo foram doses diárias de prazer e sofrimento. “As teorias da sociologia iam contra quase tudo o que acredito, mas nunca pensei em largar. Ao final foi mais uma prova da minha fé”, recorda.

Magda não tem crise de identidade com sua feminilidade e faz um contraponto com a típica mulher ocidental moderna, independente e capaz de fazer tudo o que um homem faz – buscar isonomia salarial, desfrutar de liberdade sexual –, mas sempre cheia de dúvidas. “Muitas delas buscam nas revistas femininas, em terapias ou seriados de TV dicas de como agir, se comportar e o que fazer com essa vida moderna.”

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