entrevista

Uma TV do tamanho do Brasil

A jornalista Tereza Cruvinel conta por que aceitou o desafio de presidir a nova TV pública, uma iniciativa que pode mudar o panorama da comunicação brasileira

Augusto Coelho

No último dia 2 de dezembro, os brasileiros acompanharam o lançamento do que vem sendo apresentado como a maior revolução da TV nas últimas décadas, o padrão digital de transmissão. Um dia depois, estreou o telejornal Repórter Brasil, primeiro produto da TV Brasil, canal público criado pela fusão de duas instituições federais, Radiobrás e TVE. A idéia é que a TV Brasil funcione como articuladora de uma grande rede de canais públicos. Hoje é transmitida diretamente no Rio, Brasília, Maranhão (canal 2) e São Paulo (UHF – canal 68). Em breve, será transmitida em São Paulo por meio digital. Pelo menos 18 outras emissoras educativas, universitárias, comunitárias já retransmitem total ou parcialmente sua programação, em ao menos oito estados. TVs a cabo também retransmitem. Novos programas devem ser lançados nos próximos meses. O Repórter Brasil vai ao ar às 8h e às 21h. A nova Empresa Brasil de Comunicação incluirá uma rede de rádios e de canais na internet – já controla as rádios Nacional e MEC e o site www.agenciabrasil.gov.br, uma das maiores agências de notícias do país, atualmente. A iniciativa pode, afinal, fazer valer o preceito constitucional de que o país deve ter três esferas de comunicação: privada, estatal e pública. Desde 1988, a criação da EBC é a medida mais importante no sentido de desenvolver o terceiro elemento dessa trindade.

Para comandar um orçamento de, inicialmente, R$ 350 milhões, foi indicada a jornalista Tereza Cruvinel, de 51 anos. Como presidente da EBC, ela tem mandato de quatro anos e responderá a um conselho curador formado por 15 representantes da sociedade e quatro ministros de Estado. Mineira de Coromandel – cidade do “sertão que foi ambiência de Guimarães Rosa”, como ela define –, divorciada, mãe de um filho, Tereza migrou nos anos 70 para Brasília. Militou no movimento estudantil, foi perseguida pela ditadura, viveu na clandestinidade. Voltou para a universidade, formou-se e, em pouco tempo, tornou-se uma das mais respeitáveis colunistas políticas do país. Ao aceitar o desafio de dirigir a EBC, Tereza abdicou de uma bem-sucedida carreira de mais de 20 anos na maior empresa privada de comunicação do país. A decisão tem relação profunda com uma trajetória pessoal sintonizada com momentos importantes da história política do país nas últimas décadas. E também reflete a decepção com o ambiente “envenenado” no jornalismo brasileiro. “O jornalismo não pode ser chapa-branca, submisso, oficialesco. Mas, quando passa a ter a obrigação de fazer oposição, também isso não é liberdade de imprensa”, diz.

No período de reascensão do movimento sindical, fim dos anos 1970, você teve a experiência de trabalhar como operária, enquanto vivia na clandestinidade. Como é trabalhar no governo de um presidente cuja carreira emergiu naquela época?

Para mim, ajudar a construir a TV Brasil e a rede pública de comunicação no governo Lula é um reencontro com minha trajetória. Essa mudança de rumo, que desconcertou e surpreendeu muita gente, é coerente com minha história de vida. Conheci o presidente nessa fase em que muitos militantes de classe média, dos movimentos estudantil, sociais e políticos foram surpreendidos pela ressurreição do movimento sindical. Houve uma corrida ao ABC para participar das discussões da criação do novo partido.

Qual o balanço que você faz da imprensa nesse período?
Depois da Anistia voltei à Universidade de Brasília para concluir o curso de Jornalismo. Por opção profissional e por acreditar que a imprensa jogaria um papel muito construtivo na democratização. E jogou. Ter ocupado um espaço privilegiado, nesse período tão importante, foi uma experiência profissional gratificante e politicamente importante. Havia um sentido de militância no jornalismo. Na noite em que a Emenda das Diretas foi derrotada no Congresso – fotografias registram isso –, jornalistas também choraram com a derrota popular. E ninguém disse que aquilo era falta de isenção ou deslize profissional. Hoje, para ser politicamente correto, um jornalista tem de praticamente se despojar da própria cidadania.

Hoje parece haver outro entendimento em parte da sociedade, há quase uma oposição entre jornalismo e “política”.
O jornalismo brasileiro entrou numa fase de grande profissionalização, passou a experimentar a plena liberdade de imprensa, o que não acontecia havia muitos anos. Antes do golpe de 64, a imprensa brasileira era ainda muito partidarizada. Não só da esquerda, os grandes jornais também. Você tinha empresas jornalísticas com alinhamento partidário explícito: jornais pró-Getúlio, jornais udenistas. Ao longo da ditadura, o jornalismo – e a imprensa alternativa, particularmente – confundiu-se muito com a luta pela democratização. A ditadura, sua brutalidade, a censura, a falta de liberdade, tudo contribuiu para que todos estivessem do mesmo lado. A imprensa empresarial, a “imprensa burguesa”, como dizia a esquerda então, também participou dessa resistência, adotando comportamentos ora mais, ora menos edificantes.

Quais as conseqüências das recentes mudanças?
O padrão profissional que se impôs na imprensa teve seu lado positivo, mas houve também um despojamento do sentido missionário do jornalista, com a chegada ao mercado de jovens jornalistas, que não viveram aquele tempo. Essa nova geração tem atributos excelentes, como a sintonia maior com as tecnologias, mas vê outro sentido na profissão. Sou de uma geração que via no jornalismo, mais que uma profissão, um serviço público e também uma forma de participar das lutas por um país mais democrático e mais justo. Essas diferenças afloraram muito e creio que estejam na raiz de algumas condutas. Por exemplo, o comportamento patrulheiro que se estabeleceu, no sentido de exigir dos jornalistas absoluta hostilidade ao governo Lula. O mero acesso ao presidente ou a outras fontes do governo, que sempre foi visto como bom atributo de jornalistas, passou a ser visto como deslize. Eu, por exemplo, promovi em 2004 um jantar entre o presidente e um grupo de jornalistas, na crença de que contribuía para melhorar o relacionamento, e o fato foi apontado como delito profissional. Em outros governos, seria considerado normal.

Houve até a publicação de “listas” de jornalistas que seriam apoiadores do governo.
Essa coisa de “denunciar” as pessoas como lulistas ou não-lulistas, como se jornalistas tivessem obrigação de ser anti-lulistas, esse comportamento macarthista (referência ao senador americano Joseph MacCarthy, que nos tempos da Guerra Fria capitaneou a perseguição a jornalistas e artistas tidos como de esquerda) me surpreendeu, sim. Sempre fiz uma coluna com muita liberdade – e nunca deixo de reconhecer que as Organizações Globo me proporcionaram condições excelentes para realizar meu trabalho de analista política –, mas fui ficando cada vez mais chocada e decepcionada com o ambiente envenenado. Certa vez o presidente disse: “Houve momentos no Brasil em que era proibido falar mal de governos. Hoje é proibido falar bem”. O jornalismo não pode ser chapa-branca, submisso, oficialesco. Mas passar a ter a obrigação de fazer oposição também não é liberdade de imprensa. Apesar dos prognósticos de que a TV Brasil seria chapa-branca, estamos fazendo jornalismo pluralista e equilibrado, ampliando a oferta de informação.

Em que medida isso tem a ver com sua decisão de deixar O Globo e assumir o desafio da TV pública?
Eu tinha uma situação profissional muito satisfatória, a coluna mais antiga da imprensa brasileira, uma página prestigiada no jornal, era comentarista da Globo News, tinha blog etc. Sempre desfrutei de certa unanimidade, do reconhecimento de que fazia um jornalismo correto, pluralista, com acesso a todas as forças políticas, que realizava um trabalho pautado pela correção. E, quando vira o governo, passei a ser alvo de ataques. Eu fiquei muito chocada, e certamente isso foi contribuindo. Mas a decisão foi determinada sobretudo pela minha fé no projeto da TV pública e no desafio.

Na Constituinte, acompanhei muito a atuação da Cristina Tavares (PMDB-PE, morta em 1992) e outros constituintes em defesa do artigo 223, que prevê a complementaridade entre os sistemas privado, estatal e público de comunicação. Foi um embate forte do campo progressista contra o Centrão (agrupamento que reunia conservadores, de vários partidos). Sempre estive sintonizada com essa questão e achei que havia chegado um momento para a implantação dos canais públicos, que cumprissem um papel diferenciado dos canais estatais e das TVs comerciais. Temos aí TV Câmara, TV Senado, TV Justiça, o Canal do Executivo, NBr. São canais estatais, governamentais. Mas sempre achei que havia necessidade de termos canais públicos, nem se expressando como estatais, nem subordinados à lógica comercial. Ainda se confunde muito o espaço público com o Estado, e por isso também a TV pública enfrenta incompreensões. A TV Brasil deve ser vista como conquista da sociedade. Na TV privada, o controle é do dono; na TV estatal, do governo. A TV pública, sob o controle da sociedade, deve garantir a possibilidade de expressão do todo.

Mas o país está avançado para ter um canal nem submetido ao poder político, nem ao econômico?
Hoje há mais condições para construirmos um sistema público de comunicação. No pós-guerra, na Europa, foi a cidadania que passou a exigir que a sociedade participasse da gestão daqueles canais de TV que haviam nascido pelas mãos dos Estados nacionais, assim os canais estatais se tornaram públicos. Desfrutamos de condições que não tínhamos nos anos 70, 80, 90, no sentido da maturidade da nossa democracia, uma cidadania muito mais fortalecida. Ela passará a olhar a TV Brasil, tenho certeza, como um serviço dela. Não toleraria que se tornasse chapa-branca. O momento de salto tecnológico também favorece, porque cria uma oferta maior de canais – TV a cabo, padrão digital. Até alguns anos atrás falava-se: onde vamos criar essa rede se está tudo ocupado? E há o fator político. É o primeiro governo que, entendendo que não se trata de um aparelho de comunicação para si, mas de um direito da sociedade, dispõe-se a patrocinar sua implantação – mas com o sentido de que devemos nos emancipar financeiramente, também.

A consolidação passa pela maior autonomia, reduzir a dependência. Agora, hoje, entre os modelos que há no mundo, afora o inglês, que tem aquela cobrança de taxa do cidadão para a manutenção da rede BBC, todos contam com recursos do Estado. Estamos trabalhando para que a EBC possa ganhar cada vez mais autonomia financeira, com publicidade institucional – vedada a publicidade comercial – e prestação de serviços diversos, através do seu parque tecnológico, ao governo federal, a entes públicos e privados mediante contrato, remuneração, ou na busca de patrocínios culturais, doações – criar mecanismos para que a sociedade se apodere dessa idéia e contribua para sua manutenção –, como também de fontes fixas de recursos públicos que não dependam do governo de plantão.

Parlamentares da oposição citam a TV Brasil como exemplo de falta de controle dos gastos públicos.
Com a entrada do nosso telejornal no ar, o Repórter Brasil, esse argumento dos adversários da TV pública perdeu força. O jornal está aí, mostrando-se correto, pluralista, a própria oposição sempre desfruta de espaço. Agora o argumento foi substituído pelo de que, diante da necessidade de cortar gastos, a TV pública é um projeto candidato ao sacrifício. Esperamos demonstrar, na retomada das conversas com as bancadas, que, assim como ninguém vai cortar na saúde, achamos que cortar na comunicação pública também seria cortar serviço público. E também que não se está criando um gasto adicional de R$ 350 milhões, pois mais da metade já existe.

Uma das medidas de eficiência no jornalismo feito pela imprensa privada é a audiência. No caso do jornalismo público, como lidar com essa questão?
A TV pública não pode ter a audiência como obsessão. Ela é importante, mas não pode ser o objetivo final. Se for escrava da audiência, nunca vai cumprir suas finalidades – nós não vamos fazer telenovela, por exemplo, até porque a TV privada já faz muito bem. Não é função da TV pública disputar audiência com a TV privada. Se a TV pública fizer um debate sobre o aborto, por exemplo, há uma camada da população que vai querer acompanhar, mas o programa certamente não será campeão de audiência. Agora, é preciso lembrar que a audiência baixa das TVs públicas não resulta necessariamente de sua programação. A TVE do Rio e a TV Nacional de Brasília, por exemplo, que são nossas TVs hoje, têm problemas gravíssimos de cobertura de suas regiões. Têm sinal deficiente, por falta de investimento em infra-estrutura de transmissão.

Quantas emissoras vão se agregar à rede pública?
Acreditamos que 22 emissoras estaduais acabarão compondo a Rede Brasil. Muitas já estão contribuindo para o novo telejornal, reproduzindo e gerando reportagens. Outras querem fazer isso, mas não têm capacidade de gerar material para Brasília. A dificuldade é a infra-estrutura sucateada. Disposição para participar, há muita. Esperamos ainda que a rede se amplie com as comunitárias e universitárias.

Como está a relação com o Conselho Curador, formado para garantir o caráter público da empresa?
Estou satisfeita. O conselho já fez duas reuniões. Uma das decisões da última reunião foi que os quatro ministros que têm assento ali não poderão votar em moções de censura à diretoria. A gente percebe que estão todos acompanhando a programação, mesmo com dificuldades – há alguns de estados aonde o sinal só chega pela internet. O presidente do conselho, Luiz Gonzaga Belluzzo, está muito empenhado em criar condições de atuação efetiva. O conselho nos cobra muito para que apresentemos os planos futuros de investimento e de programação.

Há quem critique a forma de escolha dos conselheiros, que são personalidades, e não representantes de entidades e de forças organizadas da sociedade.
Optou-se pela representação da pluralidade da sociedade brasileira através de personalidades de alta respeitabilidade. A representação dos setores organizados acabaria expressando grupos da sociedade, e não sua diversidade. Mas a MP está no Congresso, pode ser aprimorada antes de ser votada. O relator está propondo a criação de mais duas vagas, para conselheiros que seriam indicados pelo Congresso. Nada impede que as entidades, os setores organizados, se articulem politicamente para o preenchimento dessas vagas.

Uma histórica reclamação dos movimentos sociais é a pequena cobertura da imprensa e a maneira depreciativa como são muitas vezes retratados. Na TV pública poderá ser diferente?
O bom jornalismo deve estar atento a todas as formas de manifestação da sociedade. O jornalismo de Brasília cobre muito governo, o Estado, mas isso é um serviço à população também: mostrar ao resto do Brasil o que acontece na capital. Nossa orientação tem sido procurar levar ao cidadão o impacto dessa notícia que sai de Brasília sobre a vida real das pessoas, das que estão em São Paulo às que estão no Acre ou no Amapá. Mas também temos procurado o pluralismo: estar atentos ao que acontece fora de Brasília, e para isso vamos contar com a rede, as televisões associadas. Os movimentos sociais não podem ser vistos apenas quando vêm aqui na Esplanada; têm de ser vistos em seus estados de origem também. Queremos o pluralismo como marca de nosso jornalismo. Claro que ainda nos faltam recursos tecnológicos e humanos. Vamos ter correspondentes na América Latina, na Ásia, queremos ser a primeira TV brasileira a ter correspondente na África.

Vai haver fôlego para fazer isso?
Vamos fazer isso por meio da produção independente, muitas vezes. É mais barato e revela pluralidade de olhares, diversidade cultural e regional, porque os produtores estão espalhados pelo Brasil. Por exemplo, está sendo lançado um programa muito importante para estimular a produção independente, o Imagens do Brasil, concebido pelo Ministério da Cultura, a Ancine e a TV Brasil. Vamos criar um fundo de financiamento da produção independente para exibição na TV pública. O fundo será composto por destinações de empresas estatais e privadas através da Lei Rouanet. Uma parcela daquilo que hoje ela dá ao produtor A ou B, por meio de renúncia fiscal, irá para esse fundo. Estimamos atingir R$ 50 milhões. A TV Brasil, que não vai receber nem gerir esse fundo, lançará editais públicos: quero um programa, um documentário sobre tal questão. O financiamento será pelo fundo. Os produtores apresentam as propostas, haverá uma banca examinadora, para, com transparência, escolher a melhor proposta, segundo o preço e a qualidade do projeto.