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O retorno de João Estrella

“O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos” (Marguerite Yourcenar, escritora francesa). Parece que Johnny entendeu

Rodrigo Queiroz

“Eu era como um trem-bala. Não parava para pensar.” É assim que João Guilherme Estrella, de 46 anos, define o período alucinado em que passou de um bem-nascido garoto da zona sul do Rio de Janeiro a um dos mais requisitados traficantes de cocaína. Sem subir os morros e sem armas se tornou, praticamente sozinho, o principal provedor de drogas da alta sociedade carioca.

Filho de um executivo do extinto Banco Nacional, ele queria ser músico. Aos 14 anos começou a fumar maconha movido pela curiosidade e pela busca de aventura, como tantos outros adolescentes. Anos depois foi a vez de experimentar cocaína. Mas, aos 28 anos, levou um cano de alguns amigos na partilha de uma encomenda de 5 gramas e teve de negociar um prazo para o pagamento com o traficante. O acordo foi cumprido, e bastou para ele ingressar no submundo do tráfico.

Simpático e carismático, Estrella circulava nas boas rodas da noite carioca. Era final dos anos 80 e início dos 90, período em que havia um glamour em torno da cocaína, sempre presente nas festas badaladas. Pouco tempo depois, conquistou a fama de vender o pó mais puro da cidade. Sua clientela era formada por intelectuais, músicos, artistas, militares e médicos. Entre os fornecedores, não faltavam figuras curiosas como uma singela velhinha que vivia em Copacabana.

As quantidades foram aumentando, assim como o volume de dinheiro que circulava em suas mãos. Acabou entrando num círculo pra lá de vicioso. Quanto mais vendia a droga, mais a consumia. Chegou a receptar cocaína dentro do Fórum do Rio, no interior da 6ª Vara de Família, a fornecer para um tenente da Aeronáutica – e se tornou peça fundamental na Operação Amsterdã (exportação de cocaína).

Teve em seu domínio 15 quilos de cocaína e faturava cerca de 25 mil dólares por mês. Orgulhava-se de sua ousadia e de suas manobras “certeiras”. Sempre desafiando os riscos. Sentia-se invencível, até se tornar a bola da vez da Polícia Federal. Em 1995, aos 34 anos, foi preso num apartamento com 6 quilos da droga embalada, pronta para ser levada para a Europa. No dia seguinte, a prisão de Johnny Estrella estampava as capas dos principais jornais do Rio de Janeiro.

Cumpriu dois anos de reclusão, dos quais quatro meses atrás das grades da unidade da PF da Praça Mauá e o restante num manicômio judiciário. Isso graças à estratégia de seus advogados e do entendimento da juíza Marilena Soares Reis Franco de que não se tratava apenas de um traficante, mas de um dependente químico. Estrella ganhava muito dinheiro, mas torrava tudo com festas e drogas.

Sua história rendeu o livro Meu Nome Não É Johnny, publicado em 2004 e transformado no longa-metragem que entrou em cartaz no início de janeiro. Em liberdade desde 1997, ele vem trabalhando como produtor musical e retomando o caminho na música, com o lançamento de seu primeiro CD. Algumas das letras foram escritas no período em que cumpriu sua pena.

Estrella conta que não se considerava um bandido. Somente no momento de sua prisão se deu conta de que era caçado pela polícia. Já havia negociado sua liberdade com policiais, mas não fazia idéia de que vinha sendo investigado pela PF. Também diz que estava cansado e querendo uma saída para aquela vida sem limites, mas como consumia muitas drogas não conseguia ter discernimento.

Foi na prisão, segundo ele, trancafiado com outros cem homens em pleno verão carioca, que se livrou das drogas. Estrella dividiu espaço com gente do Comando Vermelho, com “mulas”, transportadores de drogas, africanos e ingleses e diversos outros criminosos. Afirma que, mesmo que quisesse consumir drogas, na PF elas não entravam.

Melhor dos comprimidos

Já no manicômio havia de tudo. Mas naquele momento, Estrella explica, estava mais centrado e convicto de que queria realmente dar uma guinada em sua vida. “Perder a liberdade, independentemente da circunstância, é terrível. Não existe nada igual no mundo. O tempo era um inimigo cruel. Dois anos foram uma eternidade. Procurei tirar proveito da prisão. Um baque para mudar de rumo”, analisa.

Para ele, nada pode ser desprezado na vida. Em tudo há algo a ser aproveitado. Ao contar sua história ao jornalista Guilherme Fiúza, autor do livro, acredita ter conseguido transformar tudo o que viveu em algo positivo. “Dentro de toda aquela loucura e da roubada que é ser preso, descobri que posso viver em qualquer lugar e sobreviver em quase todos. Também descobri que qualquer sonho pode ser realizado, mesmo que para isso você leve a vida toda.”

Estrella vem participando, em várias cidades do país, de bate-papos com jovens em escolas e universidades. Conversa abertamente sobre os riscos do mundo das drogas. Segundo ele, é “a invasão johnnysíaca”, na qual se coloca como uma espécie de exemplo de superação, mostrando sem falsos moralismos que dá para sair do vício, que a lucidez é o melhor dos comprimidos.

Apesar de não vislumbrar uma solução, em curto prazo, para o combate aos problemas causados pelas drogas, o compositor procura fazer sua parte: “Participar como cidadão de tudo que pode ser feito para que esse assunto seja tratado como merece: um problema social e de saúde pública”.

Ainda causando polêmicas, Estrella é a favor da legalização das drogas desde que junto com a medida venha um grande pacote social, capaz de garantir a real inclusão de jovens e crianças carentes na sociedade. Além disso, defende o uso do dinheiro arrecadado com a comercialização das drogas para tratamentos e construção de clínicas especializadas. Para ele, é uma hipocrisia a liberdade de consumo para o álcool, que também é droga com enorme potencial de degradação do ser humano.

Em seu primeiro Natal atrás das grades, Estrella recebeu um cartão enviado pela juíza que o condenou com uma mensagem da escritora francesa Marguerite Yourcenar: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos”.