cultura

Nova moldura do crime

Roubo de obras de arte e de bens culturais só não movimenta mais fortunas que tráfico de drogas e armas

Reprodução/Divulgação

Dalí: tela ainda desaparecida foi roubada em 2006 do Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro

A ação foi rápida e precisa. Em três minutos, homens armados saíram com um quadro de Pablo Picasso, O Retrato de Suzanne Bloch, e o Lavrador de Café, de Cândido Portinari, ícones do movimento modernista, equivalentes a R$ 100 milhões. Até aí, nenhuma novidade. No entanto, embora o furto no Masp tenha terminado com a recuperação das obras e final feliz, salta aos olhos da polícia que esse tipo ousado de crime ainda é novidade no Brasil. E teme-se que deixe de ser. A primeira grande ação desse porte ocorreu em 2006, no Museu da Chácara do Céu, Rio de Janeiro. Quatro ladrões armados renderam os guardas e roubaram obras de importância incalculável – A Dança, de Picasso; Dois Balcões, de Salvador Dalí; Marina, de Claude Monet; Jardim de Luxemburgo, de Henri Matisse; e o livro Toros, com poemas de Pablo Neruda e ilustrações de Picasso –, deixando grande lacuna em dois séculos de arte.

Segundo o delegado Jorge Pontes, coordenador no Brasil da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol), essa é uma das três vertentes do crime contra o patrimônio que vem merecendo atenção de autoridades. “Outras duas já acontecem no país há algum tempo. O saque a igrejas e mosteiros e o assalto a bibliotecas, arquivos de universidades e fundações.” Para o delegado, essa terceira vertente é um novo nicho do negócio ilegal de obras de arte, que pode crescer no Brasil com a percepção de fragilidade na segurança de nossas instituições.

De acordo com Pontes, estão por trás disso quadrilhas especializadas, que recebem a encomenda de supostos colecionadores. “Na verdade, são criminosos que têm um prazer solitário, porque vão possuir um Monet ou um Picasso, mas terão de mantê-lo escondido; um Picasso roubado não volta ao mercado, mesmo com a prescrição do crime, pois pertence ao patrimônio de um país.”

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) estima que o roubo de bens artísticos e do patrimônio histórico é o terceiro delito mais rentável do mundo, ficando atrás apenas do tráfico de drogas e de armas. “Em todo o mundo o crime organizado consegue entrar e sair com cocaína, armas, animais, por que não com uma obra de arte enrolada num tubinho de papel, que não tem cheiro, nem nada?”, questiona o coordenador da Interpol.

Dois meses antes do roubo do Masp o Iphan lançou uma campanha nacional de recuperação de bens procurados. Um banco de dados on-line do órgão relaciona mais de 900 peças subtraídas de igrejas, museus, instituições e coleções particulares. A subgerente de Bens Móveis do Iphan, Til Pestana, diz que esse tipo de informação ajuda a reverter casos de furto. “É importante também ter um inventário de tudo o que pertence ao nosso patrimônio, uma das metas para o Iphan nos próximos anos”, afirma. O programa Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados existe desde 1988, mas não avança em ritmo adequado. Foram catalogadas mais de 90 mil peças e outras 400 mil ainda precisam passar por esse processo. A Bahia é o estado com o maior número de peças inventariadas, 33 mil, seguido do Rio, com 22 mil, e Minas, com 15 mil. O monitoramento dos acervos, combinado com uma parceria que existe há dez anos entre o Iphan, a Polícia Federal e a Interpol, já rendeu bons frutos.

Em fevereiro do ano passado foram recuperados para o acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, mais de 40 livros, alguns com mais de 100 anos, e 49 gravuras apreendidas na Argentina. Três imagens religiosas furtadas há um ano da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Almofala (CE), também foram encontradas. Estavam enterradas à beira de uma estrada do município de Itarema, embaladas num plástico. Outras três talhas revestidas de ouro da capela do Engenho Bonito, em Nazaré da Mata (PE), e a imagem de Nossa Senhora das Mercês, da Igreja de São José do Ribamar, no Recife, foram identificadas pelo Iphan em 2002, em um catálogo de exposições, e apreendidas em um antiquário de São Paulo pela PF.

O retorno das obras ao Masp também é fruto dessa parceria e de uma grande mobilização do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic) de São Paulo. Til Pestana, porém, ressalta que peças menores, como castiçais e imagens sacras, na maioria das vezes não voltam para os locais de origem. Ela descreve ainda situações inusitadas – rixas entre famílias, comunidades, vinganças pessoais, entre outros atritos – como motivo de sumiço de peças, que acabam maquiadas e reinseridas no mercado sem levantar suspeitas.

Borrões na tela

O assalto despertou o fantasma da crise que atinge o Masp há alguns anos, com cortes de energia, dívidas, indícios de má gestão e outros problemas que fazem tremer as estruturas de um dos monumentos-símbolo da capital paulista. E reacendeu a questão da segurança em instituições culturais, que podem estar à mercê desse novo “investimento” de organizações criminosas. A preocupação não é recente e nem só do Brasil. Um decreto internacional criado em Roma, em 1999, sugere a constituição de comitês de luta contra o tráfico de bens culturais. O presidente do Iphan, Luiz Fernando Carvalho, já declarou que neste ano será encaminhada ao governo federal proposta de criação desse comitê, reunindo representantes de instituições, estaduais e municipais.

Outra promessa é implantar o Programa Nacional de Segurança Preventiva contra Incêndio e Intrusão, com o intuito de proteger imóveis tombados e seus acervos. Serão captados R$ 5 milhões da Petrobras, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, a ser destinados aos principais imóveis com risco de incêndio ou furto. O programa inclui capacitação de pessoal e cartilhas sobre segurança preventiva. A iniciativa pretende atingir as três vertentes criminosas descritas pelo coordenador da Interpol.

“É preciso entender que, embora o roubo de um Monet ou de um Picasso tenha repercussão mundial, o furto de imagens religiosas, documentos e peças menores também provoca grande rombo no patrimônio cultural”, ressalta Til Pestana, do Iphan. “As pessoas devem se conscientizar de que elas é que estão sendo roubadas. Só assim esse crime pode ser combatido com eficiência.”

Ajude
Denúncias anônimas podem ser feitas pelo telefone (21) 2262-1971, fax (21) 2524-0482, pelo e-mail [email protected], ou no próprio banco on-line, no site www.iphan.gov.br