Viaje na viagem

Enfim, quer ir à Índia? Vá, e prepare-se: ela vai devorar você

O turista apressado jamais chegará a ser um viajante, dono daquele olhar que se transforma com a convivência mais íntima ou ao menos mais próxima, despida de pré-conceitos, com a cultura e a paisagem

Flávio Aguiar

Vou começar pelo trânsito nas grandes e médias cidades: um caos que funciona. Um coro ensurdecedor de buzinas, sobretudo dos tuco-tucos, os riquixás motorizados. São verdadeiras lambretas de três rodas que fazem de tudo: são táxis para dois ou três passageiros, mas levam até dez dependendo do caso. Não nos enganemos: a buzinação é total, mas não é agressiva. Ao contrário, serve mesmo de advertência para pedestres e outros veículos. E funciona.

Num trânsito que faz o de São Paulo parecer uma ordem unida ou um desfile de colegiais, o número de acidentes, sobretudo os graves, é muito menor do que o da capital paulista. Motivo: os motoristas são ao mesmo tempo apressados e pacientes. E o trânsito passa, entre as vacas e bois que perambulam à solta, pois são sagrados, os búfalos e camelos que fazem o trabalho pesado, os cachorros que dormem como se o barulho não fosse com eles e gente, gente, gente que não acaba mais.

A Índia tem 1 bilhão e 350 milhões de habitantes, ainda quarenta milhões a menos do que a China, que deve ser superada nesta contagem em breve. São mais de seis vezes a população do Brasil, massa comprimida num território que é menos da metade do brasileiro.

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Kalbelia, a dança tipica do Rajastao, região fronteira com o Paquistão

Para o turista apressado, é fácil ser preconceituoso na Índia. Ver apenas o lado negativo das coisas. Os contrastes frequentemente gritantes entre pobreza e opulência. O cheiro, este sim agressivo por vezes, de uma mistura de bosta e urina de bovinos com gasolina e óleo diesel, mais os condimentos e as frituras da comida preparada, vendida e consumida nas ruas. A poeira que toma conta de tudo nas estações secas ao longo do país. A mendicância que corre atrás dos estrangeiros, vistos sempre como sinônimos de dinheiro abundante. O mau estado de muitos prédios históricos. As estradas precárias que fazem de qualquer viagem um tempo que não termina. E assim por diante.

Mas se ficar nisto, o turista apressado jamais chegará a ser um viajante, dono daquele olhar que se transforma com a convivência mais íntima ou pelo menos mais próxima, despida de pré-conceitos, com a cultura e a paisagem, inclusive a humana, visitadas. No máximo, terá uma consciência dos contrastes: a Índia tem uma das maiores pobrezas do mundo, e é país membro do seleto clube das armas nucleares, junto com os vizinhos Paquistão e China. É um país densamente militarizado. Numa das cidades pelas quais passamos, os muros de um quartel ostentavam cartazes de 50 em 50 metros: No trespassing. Trespassers will be shot. Ou seja: “Não invadir. Invasores serão recebidos a bala”.

A Índia dispõe de um programa espacial. Recentemente, seu primeiro-ministro, Narendra Modi, anunciou orgulhoso que um satélite do país, que se tornara obsoleto, fora abatido por um míssil. O movimento deixou cientistas de cabelos em pé e adrenalina a postos, pois espalhou 400 fragmentos pelo espaço, ameaçando até estações espaciais eventualmente frequentadas por astro e cosmonautas. Terra de contrastes!, como diria Euclides da Cunha… 

A Índia é, antes de mais nada, quando se começa a penetrar no seu universo, um festival inusitado de cores. É necessário deixar-se invadir por sua extrema riqueza, manifesta em tudo: nas roupas, nos prédios, nos quadros, nos templos das infinitas religiões e seus milhares, milhões de deuses e espíritos. Eles despontam em cada esquina, em cada dobra do caminho, em cada casa vislumbrada, em ruínas velhas (em geral as mais interessantes) ou rutilantemente novas, por vezes com um estilo pós-moderno e envidraçado que fatalmente envereda pelo mau gosto (pelo menos para mim) do fake-cosmopolita. 

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As cores, mesmo desbotadas nas imagens que recobrem as paredes, são estapafúrdias. E o seu desbotado tem uma menagem filosófica: não adiantaria querer repintá-las, renová-las, num país em que quase todas as religiões pregam que o destino humano é a sua origem: o Nada, o nadificar-se no todo do cosmo, o Nirvana absoluto. Para eles, seremos sempre imperfeitos, prisioneiros da passagem pelo Ser, que deveria ser uma ponte entre o Nada e o Nada… E agora, José?

Mas falemos da passagem. Conversei muito com nosso guia de viagem, Neeraj Sharma. Com 45 anos, casado, dois filhos adolescentes, tem 20 anos na profissão. Provindo de família brâmane (falarei disto logo adiante), formou-se em Física e Ciências, e viu-se… sem emprego. Por sugestão de um tio, foi trabalhar no turismo, sinal dos tempos. Aprendeu alemão, obteve uma licença oficial e hoje diz-se orgulhoso de sua profissão: “consigo explicar nossa cultura para os estrangeiros”.

Diz que a Índia é um quebra-cabeças e que cada viajante tem de decifrá-lo por si mesmo. Mas pensa ter sucesso no que faz: cita como argumento o fato de que, segundo sabe, entre 70% e 80% dos turistas que viajam com ele voltam ao país. Diz ainda que é necessário fazer pelo menos três viagens à Índia: ao Noroeste (a que fizemos), incluindo a capital, Delhi; ao Nordeste, beirando e entrando no Himalaia; e ao Sul, incluindo o centro financeiro (Mumbai, antiga Bombaim dos portugueses e Bombay dos ingleses, onde estive em 2004, cobrindo o Fórum Social Mundial).

Para ele, o fenômeno social mais recente na Índia é o da emergência de uma nova classe média, da qual faz e se sente parte. “Meu avô e meu pai”, diz, “preocuparam-se em poupar economias para garantir o nosso futuro, dos então jovens. Agora a minha geração quer gastar essa poupança”. Sinal disto: “Quinze ou 20 anos atrás, turista era sinônimo de estrangeiro. Agora não. O turismo interno aumentou muito. Em certas épocas do ano não se encontra vaga em hotel a não ser com muita antecedência”. 

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Pude testemunhar isso: muitos dos lugares turísticos que visitamos eram o paraíso (ou o inferno…) das selfies, nas mãos de jovens [email protected] ávidos por captar suas próprias imagens. Um clique-clique alegre e medonho…

Continuando com Neeraj: o país logrou construir uma identidade nacional (um feito, dada a sua diversidade numérica, linguística e regional), tem uma tecnologia de ponta, por exemplo, com seu programa espacial, e tem um ponto muito positivo, qual seja, a melhoria da situação das mulheres.

Elas hoje desfrutam de posições que antes lhe eram vedadas ou muito difíceis de obter. Segundo ele, o governo está desenvolvendo um esforço concentrado para facilitar o acesso à educação. Meninas estudantes não pagam taxas no ensino público. Aliás, todas as escolas de ensino fundamental ou médio, públicas, particulares, estrangeiras ou nacionais, são obrigadas a fornecer pelo menos uma refeição por dia aos alunos, medida destinada a favorecer o acesso por parte de crianças oriundas de famílias pobres ou miseráveis.

Numa outra frente, diz Neeraj, o governo se esforça por promover um programa de “limpeza nacional”. E há casos como o da província de Sikkim, no Nordeste do país e na fímbria no Himalaia, que, como Ruanda e outros países africanos, simplesmente proibiu o uso de sacolas de plástico. A julgar pelo que se vê por onde passamos, o programa é valioso, mas de efeito ainda muito relativo.

Legalmente as castas foram abolidas. Mas… ainda consta nas certidões de nascimento a casta a que o nascituro pertence. São quatro. Brâmane, a superior, intelectualizada e que se transformou no nicho da classe dominante tradicional, embora pertencer a uma casta não tenha a ver necessariamente com riqueza material ou financeira. Duas intermediárias, originalmente afeitas ao meio militar, ou do comércio, indústria, ou agricultura. E a mais baixa, “feita” para os serviços em favor das outras, que os ingleses denominaram erroneamente como “párias” e que é conhecida como dalit, “oprimidos”, tidos como “impuros” e “intocáveis”. No passado, os dalits só podiam executar seus serviços à noite, pois mesmo sua sombra era considerada “impura”. Mahatma Ghandi os valorizou, declarando-os filhos de Deus e sagrados.

As novas gerações têm dificuldade em conviver com esse sistema de castas que para os mais velhos ainda subsiste. O cinema de Bollywood, um dos mais produtivos e prolíficos do mundo, tem tratado do assunto. Veja-se Gully Boy, apresentado na Berlinale deste ano: Garoto de rua, que desafia, com seu protagonista, os preconceitos de casta e religião.

Conhecemos uma pequena parte da Índia. Em 14 dias percorremos algumas cidades (Delhi, Bikaner, Udaipur, Jodhpur, Jaipur, Agra) na fímbria e no meio do deserto de Thar, que faz a fronteira belicosa com o Paquistão, nas províncias de Rajasthan, Uttar Pradesh e Haryana. Em Agra se encontra o majestoso Taj Mahal, um túmulo muçulmano que um sultão erigiu para sua esposa preferida, e onde suas cinzas também estão guardadas.

Enfim, quer ir á Índia? Vá. E prepare-se. Ela vai devorar você, e [email protected] à vida, mais [email protected] do que foi.

 
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