Fé na moçada

Há futuro: jovens querem seguir juntos, ocupar espaços, resistir

Diante de um governo que ameaça a educação e as liberdades individuais, um misto de medo e esperança resume as expectativas dessa geração: rebeldia e resistência para virar essa maré

Joka Madruga, Lucas Duarte de Souza e Arquivos pessoais

Gabe, Rafinha, Bruna, Jane, Manu, Ygor: ninguém solta a mão de ninguém

Gabe: “Quero ser professora de Sociologia. Durante o ano pensei e repensei essa escolha com medo do que poderia acontecer após os resultados da eleição”

São Paulo – Gabriella tem 17 anos, vive em Curitiba, estuda em colégio estadual e quer prestar vestibular para Ciências Sociais.

Rafael, de Bagé (RS), vive em São Paulo. Aos 28 anos fez Enem com o objetivo de ingressar em uma faculdade de Ciências da Computação.

Bruna, 19 anos, está no segundo semestre de Relações Internacionais na PUC, em São Paulo.

Jane faz mestrado em Geografia na Unesp, campus de Presidente Prudente (SP), onde nasceu há 24 anos.

Manu, formada em Letras pela Universidade Federal de São Carlos, está desempregada aos 25 anos.

Ygor também está sem trabalho. Estuda Análise e Desenvolvimento de Sistemas na Fatec do bairro de Heliópolis, região sudeste de São Paulo, onde vive desde que nasceu, há 20 anos.

Jovens com histórias diferentes, mas que têm hoje, em comum, sentimentos estranhos a essa fase da vida: o medo do futuro, o receio de perder a liberdade, a falta de perspectiva em relação à vida acadêmica, a possibilidade distante de conseguir um bom emprego. E uma certeza: o caminho está na união e no potencial de mobilização que conheceram ainda mais a fundo nos últimos meses. São o caminho para resistência ao que pode estar por vir.

Todos eles, de uma forma ou de outra – por meio do voto ou participando de ações que tomaram as ruas do país –, se posicionaram contra a eleição de Jair Bolsonaro, justamente por receio do que suas propostas representam para a juventude.

“Estou estudando para o vestibular durante esse ano todo e junto acompanhei as eleições”, conta Gabriella Eugênio Marquetti, a Gabe, de Curitiba. “Quero ser professora de Sociologia. Durante o ano pensei e repensei essa escolha com medo do que poderia acontecer após os resultados da eleição. No fim continuei com a escolha, mas ainda muito apreensiva.”

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Rafinha: “Eu não acreditava que uma pessoa que trouxesse tanta mágoa no coração, tanto ódio na fala, pudesse se eleger presidente”

Ela diz esperar estar errada e que o futuro governo seja bom. “Mas não é o que eu acredito que vá acontecer”, avalia. “A visão que ele tem para o futuro é de um Brasil sem pensamento crítico, homofóbico, autoritário, misógino, racista.”

São adjetivos também comuns a esses jovens, ao definir o que mais os incomoda quando pensam nos dias que estão por vir. “Nos próximos anos a perspectiva é de medo do que pode acontecer, de quem ele pode atacar. Se as palavras dele são reais, quem ele pode atacar?”, questiona Rafael Roxo Rodrigues. Integrante do Levante Popular da Juventude, na Frente Territorial que trabalha nas periferias, Rafinha acha que a política do governo Bolsonaro vai acabar com algumas perspectivas importantes para o desenvolvimento dos jovens. “ProUni, Fies, ele vai diminuir esses programas e o número de vagas. Já falou contra as cotas. Acho que ele vai murchar essas políticas públicas.”

Para o rapaz, que tem origem na periferia de Porto Alegre, a eleição de Bolsonaro foi algo “bem estranho”. “Eu não acreditava que uma pessoa que trouxesse tanta mágoa no coração, tanto ódio na fala, pudesse se eleger presidente do Brasil. Os brasileiros queriam uma mudança e não optaram por qualquer mudança. Foram para alguém que é radical na sua fala, polêmico nas suas discussões políticas.”

Ygor Silva Santos classifica como cruel o resultado eleição. “Para a juventude que lutou por liberdade de fala, de sair na rua, é muito cruel ter uma pessoa com essa posição no governo. O retrocesso não vai se dar só pelas vias institucionais, com perda de bolsas nas universidades, fechamento de escolas, menor número de vagas. Mas pela liberdade individual, de ser jovem, ter acesso a cultura, educação, ter acesso à cidade. A síntese do governo Bolsonaro será o retrocesso”, acredita.

Pedaço da história que não se pode negar

Ygor enxerga como um processo essa disputa política entre pretos e pretas da periferia, LGBTs, mulheres, com pessoas que votaram, apoiaram, fizeram campanha para Bolsonaro. “É um pedaço da história muito importante que não podemos negar: como um pobre votou em alguém que é contra o pobre, como o negro votou em alguém que destila discurso racista?”

Ygor: O Canto das Três Raças (de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, celebrizada por Clara Nunes) é uma música que sintetiza o que estou vendo nas periferias”

Para ele, esse é um problema estrutural na nossa sociedade. “Nós não fizemos um processo de formação política, de contar nossa história. E isso levou a outras coisas, como a negação da política”, diz, destacando o alto número de pessoas que não votaram em ninguém – 42 milhões de pessoas, 29% do total. “Tentar entender tudo isso é algo importantíssimo.”

Ygor acha que não dá para qualificar todos que votaram em Bolsonaro como racistas ou homofóbicos. “Muitos foram pelo senso comum, pelo discurso de crise que implodiu o Brasil de 2013 para cá. Um protesto que colocou essa dor pra fora de uma forma que é pensar no passado, na volta à ditadura, até a monarquia, como se fosse um tempo melhor.”

Ele acha que são pessoas fragilizadas, crentes em um discurso de que tudo vai se resolver, que irão para o paraíso. “O Canto das Três Raças (de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, celebrizada por Clara Nunes) é uma música que sintetiza o que estou vendo nas periferias.”

E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador
Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas
Como um soluçar de dor

Luta de classes

A professora Manu Nascimento também considera a eleição de 2018 uma grande luta de classes. “A direita elitista sabia que não conseguiria se eleger, caso não trabalhassem em uma campanha de desmonte moral, baseada em notícias ilegítimas”, afirma, em relação às fake news usadas pela pela campanha de Bolsonaro contra o candidato Fernando Haddad.

A campanha, para ela, sempre frisou a ideia de um “novo” governo, o que cativou o povo, por indignação aos escândalos de corrupção. “Mas sabemos que o verdadeiro interesse de Jair Bolsonaro era somente conseguir se eleger, com campanha vazia e bem maquiada, para que suas ‘propostas’, que dificultam a vida da classe trabalhadora e dão cada vez mais poder à elite, prevaleçam.”


Manu: “Como iremos avançar sem alunos em sala de aula, sem professores e professoras para trabalhar com a individualidade, sem a interação entre alunos como sociedade e sem terem oportunidade de ter um ensino público de qualidade?”

Assim como a Gabe em Curitiba, Manu gostaria muito de estar errada a respeito de suas impressões sobre o futuro. Mas cita os 28 anos de vida parlamentar do ex-capitão do Exército para desacreditar no interesse do eleito pelo povo brasileiro. “Não sei o que esperar.”

Manu Nascimento é trans. Sente-se “cada vez mais acuada e desamparada” para atuar na área que escolheu. Nascida em Itararé, interior de São Paulo, lecionava Português em São Carlos e sofreu preconceitos.

As perspectivas, agora, são piores. “Nossa educação está para passar por um grande retrocesso, que é a homologação das diretrizes para o ensino à distância”, avalia. “E como iremos avançar sem alunos em sala de aula, sem professores e professoras para trabalhar com a individualidade, sem a interação entre alunos como sociedade e sem realmente terem oportunidade de ter um ensino público de qualidade?”

Educação mercadoria, emprego precário

A qualidade e o futuro da educação também estão entre as inquietações de Jane Rosa da Silva. “A primeira preocupação que me vem à cabeça é como estudante. O que começou no governo Temer, ano que vem deve se concretizar: o fim do financiamento da pesquisa no Brasil”, afirma.

Com licenciatura em Geografia e fazendo mestrado como bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Jane prevê o corte dos recursos para os estudantes no próximo ano. “A chance de fazer um doutorado com uma bolsa que dá condições melhores pra gente estudar são cada vez menores.”

O CNPq é responsável pelo fomento às pesquisas científicas e tecnológicas, pela formação de pesquisadores, e tem trajetória relacionada ao desenvolvimento científico brasileiro. 

“Quando Bolsonaro ameaça colocar o ensino superior no Ministério da Ciência e Tecnologia, eu, como estudante e pesquisadora sobre o tema, fico pensando qual a leitura que ele faz, qual o papel que ele entende da educação como um todo.” Para Jane, avança a mercantilização da educação.

“Isso remete ao projeto Escola sem Partido. É uma das coisas que mais tenho como ameaça a um futuro como professora”, diz referindo-se ao risco de o projeto também chamado de “Lei da Mordaça” afetar seu trabalho da universidade e também sua atividade como estudante.


Jane: “Entrei na faculdade com a perspectiva de prestar um concurso e trabalhar numa instituição pública. Tenho visto isso se reduzir depois de 2016, com o golpe. E ano que vem não creio que isso vá melhorar”

Jane menciona o iminente fim dos concursos públicos. “Entrei na faculdade com a perspectiva de prestar um concurso e trabalhar numa instituição pública. Tenho visto isso se reduzir depois de 2016, com o golpe. E ano que vem não creio que isso vá melhorar, até porque a lógica de Bolsonaro é privatizar tudo.”

E cita ainda outros riscos que ameaçam todos os trabalhadores, com graves prejuízos aos mais jovens, como a lei que autoriza a terceirização irrestrita. “A perspectiva é que não vão mais abrir concursos e vou ser contratada por uma empresa terceirizada. E terceirização significa trabalho mais precário”, critica.

“Daí fico pensando: pra mim, profissionalmente, quais serão as condições de trabalho? Será muito diferente do que eu imaginava quando entrei na faculdade em 2013. Fico bem preocupada com o que fazer.”

Os receios de Bruna Palomera Ferrarini Spinola se assemelham. Cursando o segundo semestre de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica (PUC), em São Paulo, ela afirma que já é difícil de conseguir emprego na profissão que escolheu, por diversos motivos. “E com o novo governo pode ser que fique mais ainda”, avalia.

A jovem de 19 anos quer atuar no segmento de multinacionais. “Tenho medo de que as mulheres percam ainda mais suas chances, seja em relação a salário e também a representatividade dentro da empresa.”

Os primeiros anúncios do governo Bolsonaro, causando abalos nas relações com a China, o mundo árabe e o Mercosul, também são complicadores para a vida profissional de Bruna. “Até porque nossa imagem não está muito boa. E talvez as relações com os outros países também serão afetadas.”

E ressalta outras “questões de Bolsonaro”, como querer tirar o Brasil da ONU. “Isso afetaria bastante quem estuda Relações Internacionais, porque muitos acabam seguindo para a área diplomática.”

Violência, falta de liberdade, insegurança


Bruna: “Esses caras estão se sentindo representados, com liberdade de fazer o que quiserem. Minha insegurança de andar sozinha aumenta”

Bruna vive em Santana, bairro da zona norte paulistana de renda acima da média, assim como a região da Gabe, Orleans, em Curitiba. Jane mora na Vila Geni, periferia de Presidente Prudente, interior de São Paulo. Ygor, em Heliópolis. Rafinha, no centro de São Paulo. Manu, na periferia da cidade de Itararé. Mas, independentemente da sensação de segurança que uma ou outra região possa causar, o medo por ser mulher, negro, trans, jovem e estar na rua está presente em todos esses jovens.

“Uma coisa que me marca quando penso na expectativa para o próximo ano é, como mulher, como sobreviver a esse mundo?”, questiona Jane, lembrando o período da campanha, quando foram recorrentes casos de violência contra mulheres por seu posicionamento político.

“Esses caras estão se sentindo representados, com liberdade de fazer o que quiserem. Minha insegurança de andar sozinha aumenta. Mesmo morando no interior. Pensar que ele (Bolsonaro) diz que defende a pauta da segurança pública, mas não pensando em nós, mulheres”, observa a geógrafa.

Rafinha relata que o clima nas periferias é de “pânico meio generalizado”. Diante de um governo que ainda nem começou se especula muita coisa, afirma. “O grande receio são as opressões identitárias, onde o negro vai sofrer, o gay vai sofrer. A repressão do Estado sobre essas pessoas é mais grave.”

A preservação da liberdade como jovem e mulher preocupa Bruna. “Muitas estão com esse medo. Também homossexuais, negros que já sofriam muito esse medo, mas com o governo Bolsonaro estão temendo pela vida, liberdade de expressão, liberdades individuais.” Para a estudante de Relações Internacionais da PUC-SP, o maior problema não é  Bolsonaro ter ganhado, mas o discurso de ódio que ele legitimou. 

Por ser de “classe média” e branca, Bruna reconhece estar em situação mais favorável do que diversas outras pessoas. Mesmo assim, a palavra medo é recorrente. “Essa incerteza de como vai ser o futuro.”

Ygor acha que vai ter mais dificuldade para andar na rua por ser negro. “Já está acontecendo. O discurso racista, machista, LGBTfóbico ganhou mais força”, afirma. “Dias depois da eleição já tem mais abordagem nas ruas. Tenho conhecidos que apanharam por homofobia. Será um período muito difícil, mas teremos de estar na rua para combater esse período. Não só pela força do Estado, que é a polícia, mas socialmente, porque ganharam um aparato de autoestima social”, avalia.

Ocupar espaços para resistir

“Estar nas ruas, nas universidades, ocupar os espaços será resistência”, reforça Ygor, que assim como Rafinha tem no Levante Popular da Juventude uma forma de ação. 

Jane também acredita nessa força. “Ao mesmo tempo que eu vejo esse cenário muito ruim para nós, tenho uma certa esperança”, afirma, lembrando os protestos do Ele Não que movimentou milhões de pessoas e a força que as mulheres tiveram na construção desse sentimento de unidade.

A geógrafa considera isso simbólico e faz uma projeção: “Se não vai ser fácil pra nós, pra ele também não vai. A juventude é muito importante nesse processo de resistência. Minha expectativa é que toda essa rebeldia e resistência se canalize em organização para a gente virar essa maré”.

Gabe destaca a importância do apoio mútuo dos amigos. “Estamos na mesma situação, e tentamos um ajudar o outro. Um proteger o outro, para que seja menos doloroso passar por isso.” Um grupo de WhatsApp foi criado para essas conversas e para eventuais emergências.

Jessy, da UNE: “Também não será fácil para eles. Onde se produz conhecimento, onde se confrontam as ideias, eles têm tido mais dificuldade de se desenvolver e ter hegemonia” 

Bruna aposta em “fazer tudo que der pra fazer”. “Nos manifestar para que alguns planos não sejam aceitos, em defesa de projetos de minorias, índios. Eles estarão entre os mais afetados e ficam meio de lado”, afirma. “E permanecer todo mundo junto. Não desistir. As eleições já foram. Agora precisamos continuar conversando com os eleitores do Bolsonaro para mostrar outras opiniões, para não se sintam no direito de perpetuar esse discurso de ódio do presidente eleito”, afirma a estudante da PUC.

Territórios de resistência

A União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes) e a União Nacional dos Estudantes (UNE) estão entre os polos de organização da população jovem. A primeira existe há 67 anos e representa cerca de 40 milhões de estudantes que cursam o ensino fundamental, médio, profissionalizante e pré-vestibular do país. A UNE se relaciona com mais de 6 milhões de universitários nos 26 estados e no Distrito Federal.

A diretora de comunicação da Ubes, Stefany Kovalski, 19 anos, conta quea entidade tem recebido relatos e acompanhado as preocupações de estudantes com o futuro. E de enfrentamento entre grupos que têm visões diferentes sobre o novo governo. “Principalmente por meninas, negros e negras e LGBTs, ou os estudantes dos grêmios estudantis. Fora a tendência de privatização e de expansão do ensino à distância”, explica.

A entidade reafirma, diz a estudante, a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade e da democratização do acesso. “Estaremos ao lado dos estudantes para que consigamos ter, de fato, uma escola plural, democrática, onde todas as opiniões, etnias, gêneros, orientações sexuais sejam respeitadas.”

A vice-presidenta da UNE, Jessy Dayane Silva Santos, observa que o crescimento das ideias fascistas na sociedade repercute na universidade. “Por outro lado, como foi ao longo da história, a universidade persiste como território de resistência democrática, das liberdades individuais, da diversidade, do conjunto das ideias. Espaço de debate e de diálogo. Não é à toa que educação e universidade estão entre os principais territórios atacados pela ascensão das ideias fascistas, pela figura do Bolsonaro e de quem constrói com ele esse projeto”, afirma.

Jessy reitera: também não será fácil para eles. “Onde se produz conhecimento, onde se confrontam as ideias, eles têm tido mais dificuldade de se desenvolver e ter hegemonia.”

Rafael Levante

Rafael, do Levante, é um dos articuladores do movimento Nós por Nós, que promoveu no primeiro fim de semana de dezembro atividades culturais e sociais em várias cidades do país. “A ideia do movimento Nós por Nós é justamente combater a cultura do ódio. É promover o amor, a empatia, o respeito pelo outro, por isso nossos eventos são muito culturais, abordando também educação e trabalho, que é tudo o que a juventude precisa”, diz

Clara e Tamires Heliópolis

“Estou muito preocupada com o estímulo ao uso de armas pela população: “Pode dar em mais mortes. Já dá. Imagina com mais gente armada?”, diz a secundarista Clara Cristina Vicente (esq), 17, secundarista, de Heliópolis Tamires Morais, 17 anos, moradora de Heliópolis, que se considera mais vulnerável por ser mulher, negra e pobre. “E come eles cortando em conhecimento, cortando em cultura, o que vai acontecer?”
Para Tamires Morais, 17 anos, a batalha continua: “Nós mulheres estamos correndo riscos todo dia, toda hora, ainda mais com essa propagação de ódio machista que tem acontecido recentemente. Mas, apesar de a gente ter perdido essa batalha (a eleição), a gente tem de continuar lutando”.