Rosário do Papa

O caso do papa e seu rosário e das ousadias de Francisco

Além de luta política pelo controle do Vaticano, há profundidade histórica nos conflitos em torno da postura ousada do pontífice. A nós, leigos do campo das esquerdas, cabe torcer por e lutar com Francisco

CC 2.0 Gabriel Escobedo

Jogo de força entre o compromisso libertário do Papa Francisco e o conservadorismo de uma parcela dos católicos

Há uma anedota fictícia sobre um papa, também fictício, que deve receber uma visita, digamos, não ortodoxa, e que deve permanecer secreta. Não vou contá-la aqui, apenas citar uma de suas passagens. A certa altura, diz o papa a seu secretário que deve fazer os arranjos para a visita: “Ela (a visita) deve vir com as orelhas tampadas”. “Por quê?”, pergunta o secretário. “Porque”, responde o Papa, “todas as paredes do mundo têm ouvidos, mas as do Vaticano também têm boca, e sussurram segredos”.

Saindo da anedota e entrando na vida real, estamos vivendo sob o impacto do “Caso do Rosário do Papa”, em que se misturam o compromisso libertário de Francisco, a má vontade dos conservadores católicos contra ele, que por vezes chega ao ódio, a fúria da mídia conservadora e seus acólitos no Brasil contra Lula, e também contra a mídia alternativa e independente, e a conduta obtusa e despudorada dos golpistas que querem isolar e se possível triturar seu preso político nº 1, o ex-presidente.

A proibição em Curitiba de que o consultor e enviado do papa Francisco visitasse Lula somou-se aos episódios que vêm envergonhando o Brasil internacionalmente, levado à condição não só de República de Banana mas também a de República dos Bananas, isto é, aqueles que ainda acreditam no que aquela mídia golpista diz acerca de Lula.

Disputa no Vaticano

O significado do episódio expõe também a luta surda que se trava nos intestinos do Vaticano em torno desta figura papal, festejada pelos progressistas e amaldiçoada pelos conservadores.

Há aspectos históricos de longo curso que cercam o episódio, cujo alcance nas entranhas da Santa Sé só o tempo revelará. Francisco é o primeiro papa jesuíta nos mais de 2 mil anos da Igreja Católica Apostólica Romana. A relação do Vaticano com a Companhia de Jesus nunca foi tranquila.

Esta se integrou à política europeia de expansão na América e alhures, como seu braço mais intelectualizado. Porém, se desenvolveram uma série de tensões, das quais talvez a mais dramática tenha sido a chamada Guerra dos Sete Povos das Missões, quando os acertos entre Portugal e Espanha levaram à expulsão dos guaranis de parte do território que hoje pertence ao Rio Grande do Sul e ao Brasil, em 1756.

A questão foi das poucas que fraturou a própria Ordem. Esta resolveu se dobrar aos interesses das Coroas Ibéricas, levada pelo temor (depois confirmado) de que algum ato de rebeldia a levasse ao confronto com estas e também ao confronto com o Vaticano. Mas parte (minoritária) dos jesuítas ficou ao lado dos guaranis, o que levantou a fúria dos pombalinos contra eles, personificada, por exemplo, no poema O Uraguai, de Basílio da Gama.

Depois da expulsão da Ordem dos Jesuítas de Portugal e do Brasil(1759) e da Espanha (1767), o Vaticano simplesmente suprimiu-a entre 1773 e 1814. Esta supressão só não foi aceita na Prússia e na Rússia, onde a atuação do Vaticano era bastante contestada.

Durante muito tempo o Superior da Companhia de Jesus era chamado de “O Papa Negro”, menção ao poder da Ordem dentro da Igreja e ao contraste de que o papa em Roma era o único prelado autorizado a usar vestes completamente brancas enquanto aquele usava a tradicional batina na cor preta. O nome chegou a ser usado para caracterizar Francisco em alguns artigos na mídia.

Na literatura, por exemplo, Alexandre Dumas Pai, na sua série em torno dos Três Mosqueteiros (que na verdade eram quatro, com D’Artagnan incluído), fez de Aramis Superior secreto da Ordem e envolveu-o na trama para substituir o Rei da França por seu irmão gêmeo no episódio conhecido como “O Máscara de Ferro”.

Historicamente, os jesuítas estiveram envolvidos em polêmicas acerbas sobre os rumos da Igreja, como a que se travou sobre a conveniência e pertinência dos trabalhos de conversão dos chamados “gentios” do continente americano. Ardorosos defensores da catequese, com todos os problemas e males que isso trouxe aos primeiros habitantes do continente, por vezes os jesuítas foram levados a confrontos com os colonizadores em torno da escravização dos nativos, embora defendessem em geral (ainda que condenassem os maus tratos) a escravização dos africanos como necessária à sua conversão. 

Santa Inquisição, braço jurídico do Vaticano sobre a fé católica na Idade Média, de cuja estrutura o Judiciário do Brasil continua herdeiro, inclusive no ato de juiz que instrui o processo contra um acusado ser o mesmo que  o julga

A Inquisição e seus herdeiros

Por estas e por outras os jesuítas tiveram não poucas desavenças com a Santa Inquisição, o braço jurídico do Vaticano sobre a fé católica – de cuja estrutura o Poder Judiciário do Brasil continua herdeiro, inclusive na tradição de que em primeira instância o juiz que instrui o processo contra um acusado vem a ser o mesmo que o julga – um dos motivos alegados pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para levar seu caso à consideração do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em Genebra, pois internacionalmente esta prática, já abolida na Europa, é considerada uma aberração.

Individualmente jesuítas se envolveram tanto com causas extremamente conservadoras da Igreja Católica, quanto com causas progressistas – estas últimas em particular no século 20, com a aproximação de setores da Igreja dos movimentos operários e a fundação da chamada Teologia da Libertação, em que eles, ao lado de religiosos provenientes de outras ordens, tiveram papel importante.

Apesar destas lutas que muitas vezes saíram das disputas de interpretação para chegar às vias de fato das condenações e fogueiras, há quem diga que, se não fossem a Companhia de Jesus e sua férrea disciplina interna, a Igreja Católica teria se desintegrado, acossada pela Reforma e pelas Igrejas Ortodoxas, além de outras religiões.

Deste modo, pode-se ver que, além de uma luta política strictu sensu sobre o controle do Vaticano hoje em dia, há uma profundidade histórica nos conflitos que ora presenciamos em torno do “rosário do Papa”.

Penso que a nós, leigos e leigas do campo das esquerdas, cabe torcer por e lutar com Francisco, sem dúvida.

Encerro com mais uma anedota, esta verdadeira e contada na íntegra. O que me leva a ela é a consideração, sugerida por vidas como a de Bergoglio e que se transfigurou em Francisco, de que nos meandros da Igreja Católica é natural que alguém leve 70 anos para finalmente dizer a que veio a este mundo.

Quem me contou o episódio foi meu querido amigo e saudoso Eder Sader. Assistia ele a um encontro promovido nos anos 80 do século passado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) em torno da Teologia da Libertação. A certa altura, segundo disse ele, um dos presentes afirmou que o que acontecia em torno da Teologia da Libertação na América Latina era o que de mais importante havia para definir os rumos da Igreja Católica no próximo milênio (olhando-se Bergoglio/Francisco é possível pensar que esta pessoa tinha lá sua dose de razão…). “Flávio”, me disse Eder, arregalando os olhos e sorrindo como costumava fazer nestas horas solenes, “nós mal conseguimos pensar no dia de amanhã; eles pensam em milênios”…