Somos todos iguais

Geraldo Vandré, reencontro e desencontro com a arte e seu país

Ao cantar na Paraíba, sua terra natal, artista escolhe canções praticamente desconhecidas do público, mas surpreende e emociona ao interpretar 'Caminhando', o que não acontecia desde 1968

Secom/PB

Todo de branco, Vandré se apresentou ao lado da cantora, pianista e parceira Beatriz Malnic

Nasci de cabelos brancos
E pelos flancos diversos
De um forte, um contraforte
E uma lagoa
Sem tamanho de águas nem de peixes
Quando se abriram meus olhos 
Eu trazia pelo palatino
O “agridulce” campo-mar dos teus quintais 
Além, sempre que preciso,
Estou sentado diante de teu mar

João Pessoa – O escritor José Lins do Rego, autor de Menino de Engenho, dá nome ao amplo espaço cultural instalado em 1983 no bairro Tambauzinho, em João Pessoa. Lá dentro, uma sala de concertos (José Siqueira, maestro, perseguido por ser comunista) com capacidade para 570 pessoas lotou em duas noites seguidas, com gente do lado de fora se queixando da falta de ingressos para ver um artista da terra. No palco escolhido por ele, esse artista brasileiro se reencontrou com seu público, depois de tantos desencontros com seu país.

Lá fora, na lanchonete do outro lado da rua, Afonso, um catarinense de Chapecó de mão boa para doces, reconheceu o cliente, um senhor, que ainda pela manhã entrou pedindo um café e bolo. Tiraram uma foto juntos, em uma das mesas, com olhares admirados de Edjane, a fazedora de tapioca, e Jucilia.

“Fizemos historia”

No mesmo lugar, uma hora antes do início do recital, o secretário da Cultura da Paraíba, Lau Siqueira, conversava com amigos. Estava prestes a concretizar um projeto de anos, que várias vezes esteve ameaçado de não acontecer. “Fizemos história”, diria depois. Na segunda noite, o próprio secretário assistiu sentado no chão, como muitos.

Vários não conseguiram, nem no chão e nem em pé. O taxista João Alberto, por exemplo, conta que não tinha como ir retirar os ingressos. Comenta que sua esposa, professora, nascida justamente em 1968, gostaria de assistir ao recital, intitulado Música e Poesia da Capitania de Wanmar. Com a repercussão da primeira apresentação, muita gente ainda foi ao teatro na segunda noite na esperança de conseguir entradas. A organização colocou cadeiras ao lado das poltronas, para acomodar mais pessoas, e muitos ficaram pelo chão.

Festivais

Morando nas proximidades, Tito, nascido em Santo André, no ABC paulista, há 14 anos na capital paraibana, pôde chegar cedo para conseguir os disputados ingressos gratuitos, que se esgotaram rapidamente. Na noite da segunda apresentação, Tito apareceu de novo, mais informal, de bermuda e camiseta. Desta vez, pretendia ver o recital pelo telão instalado na área externa, outra alternativa encontrada pelo governo para que mais gente pudesse ver.

“Ele é muito inteligente”, disse, comparando Vandré ao compositor Chico Buarque, um contemporâneo e “adversário” de festivais de música. “Mas a pessoa tem de gostar”, acrescenta, falando de uma possível “dificuldade” para acompanhar o andamento de certas composições, como as peças para piano, compostas em meados dos anos 1980.

A distribuição de ingressos levou não mais do que meia hora. Muitos queriam que a apresentação fosse no Teatro Pedra do Reino, que tem capacidade para 3 mil pessoas, mas o local foi uma escolha do artista: o paraibano Geraldo Vandré, que cantou profissionalmente no Brasil pela última vez em 13 de dezembro de 1968, no ginásio de esportes do Clube Recreativo Anapolino, em Anápolis (GO).

Foi no mesmo dia do AI-5, que marcou o início do período mais violento da ditadura. Vandré e seu grupo na época, o Quarteto Livre (Franklin da Flauta, Geraldo Azevedo, Naná Vasconcelos e Nelson Ângelo), tinham ainda uma apresentação marcada para Brasília, no dia 14, que obviamente não aconteceu, Desde então, Geraldo Vandré subiu em alguns palcos, mas sem cantar, o que só aconteceu no Paraguai, também na década de 1980.

Às 20h47 da quinta-feira (22), 17 minutos depois do horário previsto, inteiramente de branco e aplaudido de pé, Vandré surge ao lado da cantora e pianista paulista Beatriz Malnic, que desde 1986 mora nos Estados Unidos e é parceira do compositor nas cantilenas interpretadas ao piano. Veio especialmente para o recital. Beatriz está toda de vermelho. O músico Alquimides Daera, violonista, outro parceiro, veste preto. Branco, vermelho e preto são as cores da bandeira paraibana.

Vandré agradece Beatriz pelas composições. “Suas mãos, seu coração e seu sentimento tornaram possível que eu pudesse assim expressar-me”, diz ao público. A mesma pianista, na época com o pseudônimo de Ismaela, dado por Vandré, havia tocado essas mesmas peças na Biblioteca Municipal de São Paulo, em 1987, na presença do compositor.

Mas a primeira da noite é Canta Maotina, uma parceria com Di Melo, gravada pelo pernambucano no álbum Imorrível, de 2015. Uma letra com palavras inventadas, com sonoridade latina, cantada por Vandré e Beatriz.

Vandré, 82 anos, cantou esta e mais três por ele nunca gravadas, em sua voz de timbre preservado, com arranjos de Jorge Ribbas: Fabiana, Mensageira (para a bandeira da Paraíba) e À Minha Pátria, novo nome da canção originalmente conhecida como Pátria Amada, Idolatrada, Salve, Salve, composta por Vandré e Manduka e vencedora do Festival de Água Dulce, no Peru, em fevereiro de 1972, cantada por Manduka e pela venezuelana Soledad Bravo.

Se é pra dizer adeus
Pra não te ver jamais
Eu, que dos filhos teus,
Fui te querer demais
No verso que hoje chora
Pra te fazer capaz
Da dor que me devora
Quero dizer-te mais
Que além de adeus agora
Eu te prometo em paz
Levar comigo agora
O amor demais
 

Com a exclusão da emblemática Disparada, apenas uma canção é realmente conhecida do grande público. Mais do que um canção, já chamada de Marselhesa brasileira por Millôr Fernandes e de hino nacional por Mário Pedrosa, atravessou gerações, mentes e corações, com versos imortalizados desde 1968, quando, depois da cantada para uma multidão no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, ganhou as escolas, ruas, campos e construções.

Pra não dizer que não falei de flores (Caminhando) é interpretada pela Orquestra Sinfônica e pelo Coro Sinfônico da Paraíba, regidos pelo maestro Luiz Carlos Durier, que tinha 8 anos quando a canção foi composta por Vandré. No púlpito, ressalta a força da composição, que o tornou uma pessoa “mais politizada”. A surpresa e a maior emoção da noite virão em seguida, quando o próprio autor começa a cantar sua obra, acompanhado pelo público. É o primeiro registro de Vandré cantando Caminhando, no Brasil, desde 1968.

Acompanhe:

O produtor Darlan Ferreira, outro responsável pela empreitada, traz uma bandeira brasileira, que Vandré segura, levanta e exibe ao público, sob aplausos. À distância, nem todos podem ver, mas o pavilhão nacional não traz os dizeres Ordem e Progresso, mas o verso Somos Todos Iguais. Logo depois, surge o inevitável grito “Fora, Temer”, presente em todos os shows da atual temporada de Chico Buarque.

Entre os admiradores ou curiosos, contemporâneos de Vandré, familiares – como uma tia de 100 anos – e vários jovens, principalmente na segunda noite. Um grupo deles fica sentado no chão, à beira do palco, tomando vinho em garrafa plástica. Um deles confessa seu espanto com a extensão da obra do compositor. “Conforme eu fui vendo, eu falava ‘ah, a música é dele’, tá ligado?”, diz aos colegas, enquanto a apresentação não começa. Desta vez, o espetáculo vai se iniciar às 20h50. E o público tem muitas músicas para pedir, se pudesse. Uma rápida consulta revela preferências por Canção Nordestina, Réquiem para Matraga, Porta-Estandarte, Ladainha, Pequeno Concerto que Ficou Canção… O repertório é grande para quem pensa que Vandré fez apenas uma ou duas canções. E tem inéditas.

Na primeira noite, na segunda fileira, está o governador Ricardo Coutinho (PSB), que Vandré levará ao palco para agradecer pelo convite feito há quase três anos. Foi em 2015 que a ideia do recital começou a criar forma. Naquele ano, o artista voltou à Paraíba, depois de duas décadas, para ser homenageado no Fest Aruanda, tradicional festival do audiovisual organizado no estado. Ali ele começou a cogitar um retorno definitivo à terra natal – Geraldo Pedrosa de Araújo Dias nasceu em João Pessoa em 12 de setembro de 1935. Saiu de lá aos 17 anos, em 1952. Estudou em Nazaré da Mata (PE), Juiz de Fora (MG), formou-se em Direito no Rio de Janeiro e foi fazer arte.

Canções de protesto

Enquanto Beatriz Malnic toca as peças para piano, Vandré se afasta, olha as páginas do roteiro, senta-se, levanta, posiciona-se à esquerda da intérprete, em pé (gesto que não repetirá na segunda noite), sai durante quase 10 minutos. Na volta, agradece ao secretário Lau Siqueira e sua equipe, “que me cercaram de atenções e amizade”. No recital de sexta (24), acrescentará às citações o maestro Durier, o arranjador Ribas, a Sinfônica, o Coro, o produtor Darlan e o violinista Daera.

Na noite de estreia, Vandré fará um agradecimento especial a uma pessoa por quem diz ter amizade extrema: o capitão de mar e guerra Claudio José da Matta, reformado, que viajou de Salvador para prestigiá-lo. Uma pessoa ligada à produção conta que o militar foi consultado informalmente sobre os dizeres da bandeira, que veio de Campina Grande. A saudação a um oficial da Marinha, os versos de Fabiana (em homenagem à Força Aérea) e de Marina Marinheira (para a Marinha) certamente causará mais espanto a quem vê Vandré como um opositor das Forças Armadas. Durante anos, ele tentou várias vezes explicar que sua música mais célebre não era um libelo contra os militares. Definiu-a como uma “crônica da realidade”.

Foi um evento cercado de cuidados, para satisfazer as exigências do artista. Na véspera, um apagão que atingiu grande parte da região Nordeste levou os organizadores a arrumar dois geradores para evitar surpresas de última hora. Durante os ensaios dos últimos três meses, por motivos diversos, não foram poucas as vezes em que se temeu pelo cancelamento.

Mas aconteceu, e Vandré voltou a cantar no Brasil, com sorrisos e um pouco de humor. Logo no começo da segunda noite, o microfone falhou e, em seguida, ele acusou a falta do roteiro, sem deixar de ir em frente. “Ninguém tem pressa aqui. Quem tem pressa não pode voar. É desastre na certa.”

Na véspera das apresentações, ele até participou de uma entrevista coletiva – disse ter reservas à expressão “canção de protesto”, carimbo posto pela mídia e que marcou profundamente a sua trajetória profissional, finda em 1968. Criticou o que considera falta de espaço para a música popular nos meios de comunicação de massa. Em outras conversas, usou expressões mais duras para referir-se à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento de 2015, de liberar as chamadas biografias não autorizadas.

No final da segunda apresentação, ainda mais concorrida que a primeira, houve um incidente, justamente na interpretação de Caminhando. Vandré acaba de agradecer ao secretário da Cultura, ao governador, à família, “que emprestou-me, como sempre, o seu apoio”, e a todos os profissionais responsáveis pelo evento, revelando “orgulho e felicidade deste instante único”. De repente, um grupo abre faixa de apoio à vereadora carioca Marielle Franco, assassinada no último dia 14 – antes da apresentação, um manifesto havia sido distribuído à plateia. O ato inesperado surpreende a produção e irrita o artista, que retira os manifestantes e se despede. Sai do palco às 22h25, acenando.

A polêmica, um tanto comum quando se fala em Vandré, chega rapidamente às redes sociais, com manifestações favoráveis, na maioria, e algumas críticas. O episódio impede o que seria o provável auge da noite: a apresentação de Disparada, outro sucesso imortal, de 1966, em parceria com Theo de Barros.

Na entrevista coletiva, uma das perguntas foi sobre sua tendência política. A resposta veio no seu estilo enigmático. “Na mão esquerda trago uma certeza. Na mão direita, uma garantia. Atenção: às vezes eu troco de mão.”

Ele parece feliz, jovial. Há muitos anos, disse que aqueles que cuidam da beleza têm função secundária na sociedade, dentro de padrões de “utilidade social”, mas observou que sem a beleza não existe “o homem feliz”.

Depois das apresentações, recebe fãs e amigos no camarim, tira fotos e dá autógrafos. Em sua João Pessoa, gosta de passar boa parte do tempo olhando para o oceano, sentado diante de teu mar, como diz no poema Isso não muda. Ele em breve deverá participar do relançamento de Cantos Intermediários de Benvirá, livro de poesias publicado no Chile em julho de 1973, um mês antes de seu retorno ao Brasil, depois de quatro anos e meio de ausência forçada, período durante o qual andou pela América do Sul, África e Europa, com moradia, principalmente, no Chile e na França.

E agora? Choveram convites para levar o “show” pelo país afora. Os companheiros de projeto se animam. Daera tem expectativa de preparar um CD. “Uma honra e uma alegria muito grande poder contribuir e interagir musicalmente com o filósofo Geraldo Vandré, cuja obra de rara beleza representa um grande amor pela arte musical, pela vida e pela pátria! Que este retorno seja estímulo para que as muitas belas canções, ainda desconhecidas, sejam produzidas e que encantem as novas gerações. Arte sincera em importante momento no nosso país”, escreveu Jorge Ribbas.

O maestro Durier saiu com sensação de dever cumprido, lembrando que a Sinfônica tem “atenção forte” com a chamada MPB. “Senti que poderíamos ter feito muito mais. Mas valeu a pena  reviver Geraldo Vandré, principalmente motivados com a nossa triste situação política atual. O concerto nos levou a grandes reflexões.”

O artista avisou que sua volta é “circunscrita à Paraíba”. Transmitido ao vivo pela Rádio Tabajara, o recital deve virar DVD.

E aos muitos amigos que aqui vão chegar
Procurando abrigo pra continuar,
Digam, sem temores, depois de ajudar
Que um pouco adiante, em qualquer lugar,
Tem calor da gente e amor a esperar
Que eu levei bastante pra sempre plantar.