Gastronomia

Restaurante em São Paulo ‘ensina’ os muitos sabores da África

Menu inclui pratos típicos de Camarões, Angola, Congo, Nigéria, Marrocos e Cabo Verde

Reprodução Facebook/Restaurante Biyou’z

O Kamba é um dos pratos de sucesso do restaurante afriacano Biyou’z

São Paulo – As máscaras e figuras penduradas na parede, com rostos de homens e mulheres de lábios grossos, ao lado de esculturas de elefantes e girafas, é um indicativo do que virá no cardápio. O observador mais atento ainda notará as paredes pintadas de verde e amarelo, com pequenas estrelas também verdes no meio, uma estética que logo se descobrirá estar relacionada com as cores da bandeira de Camarões, país africano berço da gastronomia servida no restaurante Biyou’z.

Inaugurado em 2008 por Melanito Biyouha no centro de São Paulo, o local é resultado do sonho e da coragem dessa camaronesa de 47 anos, que chegou ao Brasil em 2003 apenas para passar férias, atraída pelo convite de um parente que trabalhava na embaixada de Camarões em Brasília. O que era para ser um passeio transformou-se em imigração. Depois de viver alguns anos na capital federal, onde se dedicou a fazer penteados africanos por conta própria e em salões de beleza, Melanito desembarcou em São Paulo novamente só para passear e, assim como antes, fixou residência.

“Descobri em São Paulo a existência de inúmeros restaurantes de culinária internacional. Tinha restaurante francês, italiano, chinês, japonês, mas não tinha restaurante africano. Isso me pegou na hora e vi que era a oportunidade”, explica, num português bem articulado. Até aquele dia, a ex-caixa de banco em Iaundé, capital de Camarões, não tinha tido nenhuma relação com o universo da gastronomia. “A ideia surgiu dessa forma, não teve um projeto elaborado, foi na cara e na coragem.”

No início, a proposta de Melanito foi abrir o restaurante com pratos típicos de Camarões. Logo depois, ampliou o menu para receitas do Senegal e Congo, conforme o público das comunidades africanas presentes na cidade. Porém, não demorou muito para perceber que os pratos não eram novidade para os clientes africanos, que costumavam vir ao restaurante mais para “matar a saudade da comida caseira”. Nesse momento, ela lembra, decidiu então que deveria mesmo era atrair o público brasileiro. “A ideia foi atender o brasileiro que não sabia nada da comida africana naquela época”, afirma, voltando ao ano de 2012. Novos pratos foram incorporados ao cardápio, de países como Cabo Verde, Angola, Nigéria e Marrocos. Atualmente, em torno de 90% dos clientes do restaurante Biyou’z são brasileiros.

Transição para a gastronomia

Boa de papo e à vontade sentada à mesa do seu restaurante, Melanito Biyouha pondera que há diferenças entre as necessidades de imigrantes e refugiados. No seu caso, como imigrante, afirma ter tido um caminho mais fácil, com apoio e estrutura familiar. “Minha situação foi um pouco diferente”, recorda, se referindo ao parente que trabalhava na embaixada e que lhe deu apoio na chegada ao Brasil. “Da caixa do banco para os penteados afros não foi muito difícil porque eu morava numa casa, tinha um sustento razoável e o dinheiro que ganhava era só meu. Quando vim para São Paulo foi um pouquinho diferente, mas pelo menos não tinha problema pra sobreviver, tinha uma boa base.”

A partir daí, o perfil empreendedor aliado à consciência de suas raízes foi o impulso propulsor para o desafio do novo negócio. “Eu tinha o desejo de fazer alguma coisa diferente, que apresentasse nossa cultura que até hoje é muito mal contada. A forma que a mídia apresenta a África é um pouco pejorativa, a história é distorcida. Tem de ter algumas pessoas que digam: ‘não, dessa forma não’. Também temos instantes de alegria, de felicidade, temos uma riqueza enorme, uma beleza escondida. Então, decidi fazer essa parte com a minha gastronomia. O desejo de ensinar um pouco da África para o público brasileiro me incentivou bastante.”

Com caráter forte, Melanito se dedicou às pesquisas gastronômicas e assim nasceram pratos como o Ndjap (espinafre, camarão moído, berinjela, fufu de milho e carne), o Ndole Biwolé (pasta de amendoim cozida com folha de boldo, banana da terra frita e camarão), o Kamba (camarão com legumes e banana da terra), Madesu (feijão branco com azeite de dendê e arroz, acompanhado por carne, peixe ou galinha), o Mafé (molho de amendoim torrado e fufu de arroz com peixe, carne ou galinha), o DG (banana da terra frita com legumes e galinha) e muitos outros.

Segundo Melanito, não há muita diferença entre as receitas dos países que ela serve no restaurante. A questão, explica, é que determinado produto é mais popular num lugar que em outro. Como exemplo, cita o Ndjap: “É um prato que você encontra em vários países. É um nome camaronês, mas também existe na Tanzânia, no Congo e Angola. O que acontece é que num país tal prato é o ‘carro-chefe’ e no outro, não”. O mesmo ocorre com a semente de abóbora, muito consumida em Camarões, mas que na Nigéria é o “carro-chefe”. “Não tem restaurante ou evento na Nigéria que não tenha pratos com semente de abóbora. Então os pratos são parecidos, a base é a mesma, a diferença é pouca.” 

Imigrante, negra e africana

Politizada, Melanito Biyouha dá a entender que não gosta de misturar posições políticas com o negócio do restaurante, mas também não foge do tema quando perguntada sobre questões como o racismo e a situação do negro africano ou brasileiro. “Quando cheguei aqui, eram poucos os africanos com trabalho e autoestima. Hoje há vários restaurantes africanos e africanos exercendo atividades. Antes era como se fosse uma vergonha, o africano se colocava pra baixo, mesmo sem querer, porque a sociedade te faz entender que você não tem valor.”

Para ela, ser ao mesmo tempo negra e africana morando no Brasil tem como consequência uma dupla discriminação. “Você vai em algum lugar e já sente um olhar que te faz entender que é diferente. Não é algo falado”, avalia, acreditando ser ainda mais difícil ser uma negra africana do que negra brasileira. “Há uma espécie de graduação entre ser negra brasileira ou africana. Mas o bom do negro africano é que ele já sai com espírito de guerra, sai pra vencer, pra ganhar.”

Apesar do contexto racista da sociedade brasileira, ela afirma não se deixar afetar. “Você pode me xingar, o problema é seu. Eu tenho um objetivo. O negro africano pode fazer qualquer trabalho. É pra varrer? Se isso resolver um décimo do problema dele, já é um vencedor. Dali ele vai buscar mais 10%, mais 10% e mais 10%.” Melanito diz conhecer africanos que chegaram no Brasil e começaram com trabalhos simples, foram buscando cursos e hoje estão fazendo pós-graduação, destacando que seu povo costuma falar vários idiomas.

Em Camarões, por exemplo, todos falam francês, a língua oficial introduzida pelo colonizador, além de inglês e mais dois ou três dialetos que vêm do pai e da mãe. “O africano não é uma pessoa burra. Você tem que conhecer seus valores. Vivemos uma opressão sim, não conseguimos aproveitar nosso melhor potencial, mas isso não significa que não temos valores. Colocaram uma pintura no meu rosto e falaram que sou miserável, mas eu não me acho assim.”

Melanito recorda que quando chegou em Brasília não costumava ver negros fazendo refeições em restaurantes ou frequentando lojas, com exceção de filho de embaixador ou diplomatas. Na sua percepção, o processo é lento, mas mudanças já estão ocorrendo. E cita como exemplo haver hoje negro advogado e professor. “Um dia Deus vai virar o rosto pra nós e as coisas vão mudar. Passo a passo está mudando. Daqui a dez ou 20 anos vai ser ainda mais, com coragem, esperança e trabalho.”

O restaurante Biyou’z tem atualmente oito funcionários, todos de origem africana. Sua proprietária nitidamente gosta de ajudá-los e orientá-los, um misto de chefe e “mãezona” que, para ela, funciona quase como um tempero nas receitas produzidas. “Trabalhamos com amor. A comida é vida. O espírito e a forma de trabalhar aqui deixam também a comida boa.”

Apesar de plenamente adaptada ao Brasil, Melanito desvia o olhar e altera o tom de voz ao falar dos familiares que estão em Camarões. Os pais estão envelhecendo, os irmãos tiveram filhos e ela pouco conhece os sobrinhos que ganhou. Não sabe quando, mas pensa em retornar à terra natal. E quando isso acontecer, garante, o Brasil irá junto com ela. “No Brasil eu consegui me achar. Devo muito isso ao país e ao público brasileiro que me acolheu. Se hoje eu sair do Brasil e voltar pra minha terra, não vai ser porque algo ruim aconteceu. Vou voltar porque o princípio do imigrante é sempre voltar. Sai pra conquistar e volta com os presentes.”

Restaurante Biyou’z
Alameda Barão de Limeira, 19, centro, São Paulo.
Aberto de segunda a domingo, almoço e jantar.
Fone: 3321-6806