Olhos aéreos

Drones proliferam pelos ares em meio a um vácuo normativo no país

Uso equivocado do aparelho pode machucar pessoas, interferir no tráfego aéreo, invadir a privacidade, além de transportar drogas e armas. Regulamentação pode vir por meio de medida provisória

© Nevit Dilmen – CC 3.0

Proposta de regulamentação da Anac prevê altura máxima de 120 metros e distância mínima de 30 metros de pessoas “não anuentes”

Por volta dos 15 minutos do segundo tempo da partida entre Internacional e Cruzeiro, válida pela penúltima rodada do Campeonato Brasileiro de 2016, um grande pano branco começou a sobrevoar o campo de jogo com a letra B pintada em vermelho. Imediatamente a torcida do clube gaúcho se alvoroçou: não havia dúvida, era uma inegável alusão à luta do time contra o rebaixamento à segunda divisão do futebol brasileiro, a famigerada Série B. A revolta foi grande.

Nas horas seguintes um grupo de torcedores ensandecidos saiu à procura do autor do deboche, chegando inclusive a depredar um imóvel acusado – erroneamente – como o ponto de partida da Aeronave Remotamente Pilotada (RPA, na sigla em inglês) que carregava o provocativo pano branco.

Aeronave Remotamente Pilotada é como a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) classifica o que popularmente é chamado de drone. Em franca expansão, drones têm sido vistos com frequência cruzando o céu do país, principalmente para fotografar e filmar uma variedade de eventos ou mesmo apenas por diversão. O drone que naquele domingo à tarde sobrevoou o estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, causou grande repercussão na mídia e nas redes sociais pela flauta futebolística, mas não despertou maiores considerações sobre os riscos envolvidos em tal ação dentro de um estádio de futebol com mais de 30 mil pessoas.

Assim como em diversos países do mundo, o Brasil corre atrás de regulamentar o uso de drones. Atualmente, a situação legal desses aparelhos é confusa, quase uma espécie de vácuo normativo, ao mesmo tempo em que as vendas de drones crescem e seus voos por controle remoto estão por toda parte.

A Lei nº. 7.565/86 determina que toda aeronave deve ter autorização para voar. “No âmbito da Anac, a Instrução Suplementar (IS nº 21-02A) de 2012 prevê a emissão de autorização para uso de Veículos Aéreos Não Tripulados (RPA) somente para pesquisa e desenvolvimento e treinamento de pilotos”, informa a agência em seu site, destacando que a autorização da Anac não exclui a necessidade de outras emitidas pelo Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) e Anatel. Por essa Instrução Suplementar, os drones que filmam shows, fotografam manifestações ou invadem estádios de futebol são proibidos. Já para o uso de aeromodelos existe a Portaria DAC n° 207/STE/1999, na qual se estabelece a restrição de não voar próximo de aeroportos e delimita a altura permitida em 120 metros.

Os riscos apontados por autoridades são muitos e vão desde a queda do aparelho em cima de pessoas, a influência no tráfego aéreo de aeronaves, até o uso para transportar drogas, armas ou, como já aconteceu, telefones celulares para dentro de presídios. Há ainda a questão da invasão de privacidade, com o olho do invasor alcançando janelas nas alturas e pátios rodeados por muros que nada podem proteger.

Proposta de regulamentação

A Anac apresentou em setembro de 2015 uma proposta de regulamentação dos Veículos Aéreos Não Tripulados (Vant), definição na qual se enquadram o RPA e os aeromodelos. A proposta passou por consulta pública e, segundo a Anac, o texto está perto de sua versão final, que deve incluir o estabelecimento de altura máxima permitida de 120 metros, distância mínima de pessoas “não anuentes” de 30 metros, idade mínima de 18 anos para quem comanda o controle remoto, entre outras questões.

“Até mesmo o hobby é um direito fundamental, mas mesmo o direito fundamental não é uma panaceia que passa por cima de qualquer coisa. Cabe ao legislador traçar limites”, avalia Leonardo Martins, professor de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e doutor em direito público constitucional alemão pela Faculdade da Humboldt-Universität zu Berlin. Se por um lado a Constituição garante uma série de liberdades, explica Martins, por outro permite restrições para coibir abusos e riscos.

De acordo com a Anac, o governo federal, por meio do Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil emitirá em breve uma medida provisória (MP) regulamentando o uso de Veículos Aéreos Não Tripulados (Vant) no país. A agência informa que o texto está sendo trabalhado para ser o mais próximo possível da proposta apresentada pela Anac e já objeto de consulta pública.

Para o professor Leonardo Martins, será um risco se a regulamentação vier mesmo via MP. “Isso tem que ser tratado em instâncias representativas. Uma lei como essa tem de ser debatida, divulgada na sociedade para todos discutirem. A falta de diálogo é um grande risco.”

Por ser um tema complexo que envolve segurança pública, tráfego aéreo e invasão de privacidade, o professor da UFRN e especialista em Direito Constitucional enfatiza a necessidade de um consistente diálogo na elaboração da lei, sob o risco de depois questões serem levadas à Justiça e, como tem sido recorrente no Brasil, a política ser mais uma vez judicializada.

“Tem que haver um debate que anteceda a judicialização. O risco é a questão política deixar a desejar e o poder Judiciário decidir.” Na opinião de Leonardo Martins, medidas provisórias só devem ser usadas em situações que exigem respostas imediatas e urgentes, como temas econômicos e financeiros, e não para regulamentação de drones, reforma da previdência ou reforma do ensino médio, por exemplo.

Martins destaca o cuidado que a regulamentação deve ter ao tratar do direito à privacidade, diferenciando o uso particular do drone e o uso do Estado. E cita como exemplo os grampos e escutas telefônicas, que são tipos de invasão de privacidade, mas que são permitidos pela Justiça em determinados casos de investigação policial. “É preciso deixar claro até onde o Estado pode ir. Uma coisa é o Estado interferir na privacidade, outra é o vizinho espiando a vizinha”, afirma.

Uso profissional

Jornalista e fotógrafo, editor da revista Viaje Mais, Tales Azzi investiu não faz muito tempo num drone para ampliar suas possibilidades profissionais. Com o aparelho em mãos, pesquisou sobre seu uso e regulamentação antes de colocá-lo no céu e teve dificuldades. “Investiguei bastante a respeito”, afirma.

Tales descobriu que era preciso homologar o drone na Anatel, pois o aparelho possui rádiofrequência. Assim ele fez. Em 2015 participou da feira DroneShow – que se realizará novamente em maio desse ano, em São Paulo – para conhecer mais o universo em que estava se envolvendo. Na ocasião, empresas apresentaram na feira inúmeras possibilidades de uso de drones, desde trabalhos em mineração até inspeção de obras.

Com as informações que conseguiu reunir, o fotógrafo passou a pôr em prática algumas orientações relacionadas ao aeromodelismo, como voar a altitude máxima de 120 metros, por exemplo. Nas redes sociais, descobriu grupos de usuários que dão dicas e estimulam uma espécie de autorregulamentação, desestimulando o uso de drones sobre grandes aglomerações como shows, eventos esportivos ou manifestações. “Eles tentam orientar para evitar acidentes e não prejudicar quem usa o drone como ferramenta de trabalho e vive disso”, explica o editor da Viaje Mais.

Tales Azzi destaca que os próprios manuais dos drones contém informações “educativas”, orientando a não usar o aparelho perto de prédios e não invadir a privacidade. Apesar disso, na prática prevalece o ambiente de vazio regulatório, com informações confusas enquanto o número de usuários só aumenta.

“A polícia não tem nenhuma orientação para prender o drone. Em São Paulo já conversei com vários policiais sobre isso.” Como fotógrafo profissional, em pleno desenvolvimento de um projeto de fotos aéreas, Tales Azzi concorda com a necessidade de regulamentação para dar segurança a quem usa e para quem está no solo. “Tem que regulamentar mesmo. Se cai na cabeça de alguém, com a velocidade, é muito perigoso”, pondera.

A proposta da Anac que passou por consulta pública divide as Aeronaves Remotamente Pilotadas (RPA) em três categorias: aparelhos acima de 150 quilos; entre 25 e 150 quilos; e abaixo de 25 quilos. Para cada uma, as exigências de uso e autorizações serão distintas.

Resta agora esperar para ver se a regulamentação virá mesmo via medida provisória e, conforme alerta o especialista em Direito Constitucional Leonardo Martins, se a falta de debate sobre tema tão complexo não acabará parando na Justiça.