MARCIO POCHMANN

Reforma para um novo ciclo político

A fragmentação política desconstituiu o centro democrático, e abriu espaço para o avanço da direita, traduzido no golpe de 2016. Sem uma reforma política para valer, o Legislativo reacionário triunfa

MÍDIA NINJA

Manifestantes cercaram o Congresso em junho de 2013 pedindo reformas

Após os 21 anos de vigência da ditadura (1964-1985) que interromperam a primeira experiência de regime de democracia de massas entre os anos de 1945 e 1964 (19 anos), o Brasil ingressou no ciclo político denominado Nova República. Esta segunda experiência democrática de massas, a mais longeva até então (1985-2016), encontra-se esgotada. O golpe jurídico-parlamentar ao regime democrático no mês de agosto de 2016 rompeu com as bases do acordo sociopolítico que fundamentou e permitiu desenvolver-se a Nova República. Com 31 anos de experiências acumuladas por governos eleitos pelo voto popular e pautados pela Constituição Federal de 1988, o Brasil conseguiu assumir a condição de uma das mais jovens e promissoras democracias de massas do mundo.

O que não seria pouco, considerando uma nação sem tradição democrática consolidada. O Brasil possui mais de cinco séculos de existência e apenas 50 anos de experiência democrática de massas, posto que o voto – secreto e universal – foi implementado somente na década de 1930, apesar de excluir até 1985 a participação nos pleitos eleitorais dos analfabetos, parte majoritária da população até os anos de 1960.

Diferentemente da primeira experiência democrática de massas (1945-1964), demarcada por significativa expansão econômica fundamentada no projeto de industrialização nacional, o ciclo político da Nova República transcorreu numa etapa de estagnação da renda per capita da população. Na primeira experiência democrática, o crescimento médio do rendimento dos brasileiros se deu ao redor de 4% ao ano, ao passo que na Nova República foi inferior a 1% como média anual.

Talvez por isso que, além de ter sido uma experiência democrática demarcada por uma economia travada diante da desindustrialização nacional, não tenha conseguido realizar qualquer tipo de reforma profunda na sociedade. Aquelas que foram identificadas no documento Esperança e Mudança, do antigo MDB, publicado em 1982 e que conectavam, em parte, ao projeto das reformas de base do governo democrático de João Goulart (1961-1964), jamais foram implementadas.

Neste sentido, podem ser destacadas as duas características principais do ciclo político da Nova República. A primeira decorrente do modo próprio de transitar do regime militar para a democracia por meio de um grande acordo político consagrado no colégio eleitoral de 1985, responsável por consagrar o fim do autoritarismo.

Uma vez derrotado o movimento nacional de 1984 por eleições diretas, restou a participação no reduto antidemocrático do colégio eleitoral que definia até então os presidentes dos governos autoritários. Assim nasceu a Aliança Democrática que viria expressar a vitória de uma combinação entre a parcela conservadora do maior partido de oposição aos militares, sob a liderança de Tancredo Neves do PMDB, com a parte dissidente dos políticos que apoiavam o regime militar, cuja liderança fora José Sarney, ex-presidente da Arena.

Neste modo particular de transição política, a ditadura deixou de ser exposta ao crivo democrático, sem ser passada a limpo. Os seus torturadores e governantes autoritários jamais chegaram a prestar contas à luz da democracia, o que permitiu saírem ilesos, bem ao contrário do verificado nas experiências constatadas em países vizinhos, como na Argentina, Uruguai e Chile. Por essas condições, o sistema partidário que fundamentou o ciclo político da Nova República praticamente manteve imune a legislação de reforma política do ano de 1979 que reintroduziu o sistema multipartidário no Brasil. Ressalta-se que entre 1966 e 1979 existiram legalmente apenas dois partidos: a Arena dos militares e o MDB da oposição consentida.

Com a legislação a partir de 1979, a tática do governo militar de dividir a oposição (MDB) em diversos partidos e manter a situação (Arena) unida em um único partido (PDS) tornou-se vitoriosa, com a fundamentação da fragmentação político partidária. Esta se configurou na segunda principal característica do ciclo político da Nova República, ou seja, a mitigação do regime de presidencialismo para mudar a realidade diante da necessidade de maiorias parlamentares cada vez mais amplas.

Nos governos militares, por exemplo, apenas um partido (Arena) era necessário para legitimar no legislativo, o poder dos presidentes autoritários. Mas nos governos da Nova República, a maioria política parlamentar tornou-se cada vez mais fundada na reprodução de siglas partidárias.

No governo Sarney (1985-1990), por exemplo, apenas dois partidos (PMDB e PFL) eram suficientes para a formação da maioria política congressual. Mesmo assim, durante a Constituinte (1987-1988) surgiu o Centrão para oferecer estabilidade ao longo dos governos da Nova República assentada no exercício do fisiologismo político (toma lá, da cá) frente à escassa presença de partidos programáticos.

Dez anos depois do início do ciclo político da Nova República, em 1995, por exemplo, a maioria política congressual dos governos de FHC pressupunha a presença de quatro a seis partidos. Com 30 anos de Nova República, em 2015, a maioria congressual, constituída nos governos Dilma equivalia a 18 a 20 partidos, enquanto nos governos de Lula eram de 10 a 12 partidos.

Desta forma, o descrédito na política no Brasil tem derivado, por um lado, do avanço da fragmentação partidária e da balcanização dos interesses políticos de troca majoritária dos apoios circunstanciados no mercado das nomeações em cargos políticos e na corrupção eleitoral por financiamento empresarial. Por outro lado, a incapacidade de ocorrerem reformas que modifiquem profunda e rapidamente a realidade nacional decorre do acordo político que moldou a transição democrática pautada no sistema multipartidário herdado do regime militar.

Nesta perspectiva, as eleições majoritárias tenderiam a protagonizar no Executivo, prefeitos, governadores e presidentes de posição progressistas em geral, enquanto nos pleitos proporcionais, os legislativos municipal, estadual e federal apontariam para maiorias conservadoras, cada vez mais reacionárias. Isso porque nas eleições majoritárias, o poder das corporações e lobbies de interesses conservadores se relativizariam diante dos temas de importância nacional, expressos em geral pela vontade das massas populares.

No caso das eleições proporcionais, ao contrário, os filtros locais do conservadorismo e das forças corporativas organizadas tenderiam a se expressar mais fortemente. Assim, o legislativo apontaria a força do dinheiro, cuja presença da representação vinculada às massas populares seria cada vez mais decrescente diante do voto organizado pelo agrarismo, igrejas, crime, drogas e demais corporações movidas pelo dinheiro.

Não por outro motivo que no Brasil, o parlamentarismo tenderia a transcorrer sob o risco de ser mais conservador ainda que o presidencialismo mitigado. Pela fragmentação política no Brasil atual, o centro político-democrático foi se desconstituindo, o que abriu maior espaço para o avanço da direita, cuja manifestação inegável se traduziu no golpe de 2016.

Agora, as exigências da direita política tendem a se encaminhar para um novo golpe dentro do atual golpe do governo Temer, com a proposição das eleições indiretas no ano de 2017. Sem uma reforma política para valer, capaz de desarticular a fragmentação do sistema político multipartidário atual, o Legislativo de base conservadora e cada vez mais reacionária se mantém triunfante, entupindo as vias possíveis do executivo de fazer cumprir democraticamente os desejos das massas populares que elegem, em geral, prefeitos, governadores e presidentes para mudanças profundas da realidade nacional.