CULTURA

Batuque no Tambu celebra cultura negra no interior de SP

Tradição de origem africana rememorada todo setembro na Festa de São Benedito, em Tietê, tornou-se referência para a cultura negra no estado

© Adriano Ávila

Depois que Rei Domingos foi se embora / O tambu emudeceu / Santa Cruz chorou bastante / O batuqueiro e a cidade entristeceu / Rei Domingos vive na nossa lembrança / Pra nós Rei Domingos não morreu

Diz o mestre Antonio Candido de Mello e Souza que a cultura caipira de origem, rural e coletiva, não existe mais. Entretanto, seus vestígios ainda podem ser vistos, sentidos e ouvidos por vários locais do território que ele denomina de Paulistânia – vasta região que circunscreve os estados de São Paulo, Paraná, Minas, Goiás e Mato Grosso. Uma África está viva em grande área do interior paulista.

Na cidade de Tietê, a 150 quilômetros da capital paulista, existe uma comunidade afrodescendente que apresenta aspectos bem característicos. A Festa de São Benedito, que ocorre todo último final de semana de setembro – passou agora por sua 148ª edição –, tornou-se referência para a cultura negra no estado. É ali que ocorre uma das maiores manifestações da tradição caipira: o batuque de umbigada. Expressão cultural que remonta sua origem aos tempos da escravidão, tem em Tietê, Capivari e Piracicaba suas principais áreas de ocorrência.

Como é comum às histórias de base oral, o início do batuque de umbigada se confunde com a vinda da população escrava para a região. Ali o sacro e o profano se associam na explicação das origens. A festa de São Benedito é um dos marcos dessa história. Nascida com a edificação da igreja pela comunidade, em 1868, a festa do santo negro padroeiro sempre uniu as comemorações religiosas e as manifestações populares.

Carlos Alberto de Assumpção, 64 anos, é uma das antigas lideranças da Irmandade de São Benedito, tem um olhar instigante sobre o diálogo entre a festa do padroeiro e o batuque de umbigada. Para ele, as duas expressões sempre caminharam juntas: “Quando ainda não existiam os sinos na igreja, era o tambu sete léguas que chamava aos momentos de comemorações religiosas”.

Tambu é o tambor principal que burila a rítmica do batuque. Aquele que Carlos chama de sete léguas tinha praticamente o dobro do tamanho dos tambus aqui fotografados. Em uma época de poucos prédios e vastos campos, seu som atingia os rincões mais profundos. “No meu modo de entender”, diz ele, “o toque do tambu deveria ter muitas variações, da mesma forma como os sinos em algumas cidades mineiras; cada toque dizia sobre um determinado acontecimento.”

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‘Graças a Deus / Graças aos meus Orixás / Graças aos meus ancestrais / Ô, saravá São Benedito / Que sol brilhou uma vez mais’

Alegria viva, cheia de gente

Não é à toa que Tietê, com pouco mais de 40 mil habitantes, é um centro de referência cultural, produtor de personalidades: Cornélio Pires, Marcelo Tupinambá, Itamar Assumpção­ e Camargo Guarnieri. Carlos de Assumpção – primo do personagem recém-citado – é um dos mais valorosos poetas negros do Brasil. Dono de uma poesia ritmada e musical, em sua palavra mora o toque do tambu.

O que mais impressiona o forasteiro que chega ao território tieteense é que as expressões culturais populares, que em outros locais se mantêm com grande esforço, ali fluem com uma vivacidade generosa e pulsante. O batuque de umbigada mostra vitalidade. Acontece em um baile que vai até o sol raiar. Muita gente, de entupir o salão. Como o batuque atinge boa parte da região, pessoas de Piracicaba, de Capivari, da capital e de outros arredores se achegam para o baile. E não só da comunidade negra – muitos universitários, pesquisadores e os mais simples apreciadores aparecem para dançar.

Pouco antes de o baile começar, a fogueira se arma do lado de fora do barracão. Os instrumentos de madeira e couro são colocados no entorno. A função é manter a película bem esticada para que a projeção sonora se mantenha firme. Como são instrumentos que não possuem recursos de afinação manuais, o calor cumpre a função de afinador. No decorrer do batuque, os tambores são substituídos: os mais aquecidos vão para o salão, os que perderam a tenacidade voltam para a beira do fogo.

São vários instrumentos que animam o batuque. Como não existem instrumentos melódicos ou harmônicos, todos são percussivos. O maior e mais robusto é o tambu. É o que tece as variações rítmicas. O outro instrumento de couro é o quinjengue: parece um pilão ao contrário, o meio de seu corpo se afila, criando um som mais agudo.

Para completar o time vêm as matracas: são duas varetas robustas, que quando batidas repetidamente no corpo do tambu produzem uma batida aguda e repetitiva, que serve como base sonora. O guaiá é um instrumento que cumpre a função de um chocalho – está espalhado em número significativo, nas mãos de vários bailarinos.

Como é de se esperar, os batuqueiros são gente que entende do riscado. A batida é alucinante, variada e precisa. Mas diferentemente do que se pode pensar, os batuqueiros não são fominhas e se revezam, assim como os cantadores.

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Umbigada pra valer

A dança, de fato, é um capítulo à parte. É, ao mesmo tempo, um bailado sensual e respeitoso – se dá aos pares, com situações de movimento coletivo. É a princesa do baile, que brilha e “balanceia”.

O primeiro movimento de cada dança simula os movimentos de bailado das cerimônias de corte: homens se enfileiram, ombro a ombro, de um lado do salão, e as mulheres de outro, cada um defronte a seu par. Os homens caminham em fileira até seus pares e as cortejam, voltando logo após ao seu ponto de origem; logo depois, as mulheres repetem o movimento. Em seguida, se encontram no meio do salão e começam a dança.

Os passos se dão em três movimentos: dois com passos cruzados, e no terceiro se dá a umbigada. Um encontro em que apenas as barrigas do casal se encostam. No momento do toque, o casal levanta suas mãos para demonstrar que não existe outra parte do corpo resvalando. Por isso se diz que é uma dança ao mesmo tempo sensual e altamente respeitosa, pois as mãos devem estar em um ponto em que sejam visíveis. Manter as mãos abaixadas no momento do encontro é entendido como sinal de desrespeito.

Se a dança e os tambores dão nome ao encontro, quem guia o batuque é a voz. Todas as epígrafes, com exceção do poema assinado, são modas da umbigada. A saudade dos parceiros idos, o elogio ao passado, uma graça ao seu amor, a reverência aos antigos batuqueiros, são alguns temas conduzidos por vozes que remetem à ancestralidade. É o caso de dona Anecide e suas primorosas composições. Seu timbre, guardada a distância dos estilos, remete a Clementina de Jesus, por seu peso ancestral.

Reverência explícita está na abertura deste texto, com uma música que fala do Rei Domingos, um dos mais antigos e célebres batuqueiros, fazendo referência ao bairro tradicional da Santa Cruz, lugar onde se realizam os batuques desde tempos imemoriais.

Um bastião de toda essa memória viva é Herculano Marçal. Nascido em 1929, traz em si a memória do tambu. “Minha avó era escrava e foi uma das pessoas que trouxe pra cá a dança”, conta. O batuque aprendeu de berço: “Quando meu pai batucava, a turma conhecia de longe, por causa do jeito do seu repique. Eu aprendi desde pequenininho: comecei a bater nas lata, e um dia meu pai deu o tambu e disse ‘já pode tocar’. Daí em diante nunca parei”.

Herculano é até hoje o regente dos encontros, com seu apito. “Antes batuque era todo final de semana. Aí do lado do rio tinha um terreiro que a gente tocava, o pessoal se ajuntava e ia até o raiar do sol”, lembra. Compositor e improvisador, tem uma vitalidade invejável. No último encontro, passou mais de seis horas regendo e cantando. Esperto e matreiro, todo cuidado com ele é sempre pouco. Como adverte em uma de suas modas, em alusão aos perigos: “Cobra criada no mato/  Ninguém sabe o que ela é/ Enrola pra dar o bote/ Urutu ou cascavé”.

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Na oreia do meu amor / Tem um brinco que alumeia / Cada passo que ela dá / Balanceia, balanceia