cultura

Fagundes, pai e filho. O artista e o sentido da obra

No palco com a genialidade atormentada do pintor Mark Rothko, Antonio e Bruno Fagundes encenam uma metáfora da vida

IVAN ABUJAMRA

Fagundes é Rothko e Bruno, seu assistente

“O que você vê?”, pergunta, com o olhar fixo em algum ponto entre a plateia e o além, o pintor Mark Rothko. “Vermelho”, responde o assistente. Rothko não se contenta com a objetividade ingênua de Ken. Espera do assistente uma interpretação que transpasse o sentido da cor e encontre um sentido para a obra em execução. E ambos dão assim início a um instigante e desafiador diálogo ao longo de 80 minutos que fluirão imperceptíveis até as cortinas se fecharem. Os dois personagens da peça Vermelho são vividos por Antonio e Bruno Fagundes, pai e filho.

O texto do escritor e dramaturgo norte-americano John Logan (roteirista de filmes como Gladiador, O Aviador, 007 – Operação Skyfall, A invenção de Hugo Cabret) remete a um período específico da vida de Rothko, no final dos anos 1950, quando o artista pintava, sob encomenda, murais para o sofisticado restaurante Four Seasons, no recém-inaugurado edifício Seagram, em Nova York, obra dos arquitetos Mies van der Rohe e Philip Johnson e marco da arquitetura contemporânea.

Questionado sobre o desafio de agradar ao público com a história de um personagem relativamente desconhecido para os padrões brasileiros, Fagundes reage: “Rothko era o pintor mais importante do mundo em sua época. Suas obras são valiosíssimas. Recentemente, uma delas foi leiloada por quase US$ 45 milhões”.

Mas nenhum museu brasileiro tem um quadro dele em seu acervo. Mark Rothko (1903-1970), natural da Letônia e de ­família judaica, migrou para os Estados Unidos quando tinha 10 anos. Ligado ao movimento expressionismo abstrato, ganhou destaque no país após a Segunda Guerra ao se posicionar na contracorrente do triunfo do capitalismo e da civilização tecnológica.

O fascínio provocado pela genialidade e a tormenta do artista não é o único ingrediente a cativar a plateia. Aliás, não é necessário ser conhecedor de história da arte para se deliciar com o roteiro de John Logan. Trata-se de uma metáfora da vida e do valor de nossas escolhas para dar-lhe sentido. O zelo de Logan no trato das palavras, na lógica, no ritmo e na intensidade do diálogo raptam a atenção. O texto soa para os ouvidos como uma boa música. “Dá vontade de gravar para ficar ouvindo depois, né?”, brinca Bruno.

Mesmo assim, a produção oferece ao público a oportunidade de se familiarizar com a história. No hall do tradicional Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o Tuca, no bairro das Perdizes, zona oeste paulistana, uma pequena exposição com imagens e textos abastece o espectador com informações sobre todos os artistas, obras e movimentos citados durante o espetáculo.

Ali, uma jovem estudante observa uma obra abstrata de Rothko e comenta com a mãe. “Isso para mim não é arte, qualquer um pode fazer, até uma criança. Arte tem de ser difícil. Gosto mais daquela”, diz, apontando para Subway (Metrô), obra figurativa, de uma fase anterior do artista. No final, a mesma jovem se levanta e aplaude com entusiasmo. “Alguns trechos do diálogo pareciam ter sido escritos para mim”, diz, comentando suas indagações juvenis sobre o que dá a uma pintura o status de obra de arte.

IVAN ABUJAMRA
Antonio Fagundes: ‘Rothko era o pintor mais importante do mundo em sua época. Suas obras são valiosíssimas. Recentemente, uma delas foi leiloada por quase US$ 45 milhões’

Às próprias custas

Antonio Fagundes não vê com bons olhos o funcionamento da Lei Federal de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet. Vermelho foi produzida sem patrocínio e sem lei de incentivo, com o esforço de sete associados – sua sobrevivência depende exclusivamente do público, da bilheteria, do espectador. “Nós queremos que o espetáculo se mantenha por ele próprio”, enfatiza.

Os atores vão além de suas interpretações no desafio de conquistar o público. São várias as iniciativas da produção para tornar a relação mais íntima e interativa. Após o espetáculo, ambos promovem um bate-papo a respeito do trabalho dos artistas – o do pintor, de seu assistente e deles próprios. Explicam o papel do cenário, da iluminação, do som e das cores na composição da carga dramática. “Podemos dizer que a luz é um personagem”, define Fagundes.

Depois da conversa, uma tela gigante pintada por Rotkho e Ken no decorrer da trama é leiloada com lances a partir de R$ 60 – a disputa entre os espectadores vai longe. A produção oferece também uma visita guiada, para até dez pessoas, aos sábados, para que o público respire os ambientes do cenário e dos bastidores por trás da história. Vermelho tem ainda sessões especiais com acessibilidade nos últimos sábados de cada mês. As próximas serão em 29 de outubro e 26 de novembro, com intérprete de Libras, audiodescrição e legendas.

O veterano ator se irrita ao comentar o mito de que teatro no Brasil é caro. “Existe essa espécie de senso comum e isso não é verdade. O valor do ingresso é muito menos do que se paga para assistir a uma partida de futebol ou a uma luta de MMA. O que falta é interesse, decorrente da falta de educação e cultura, infelizmente, para que o teatro faça parte da rotina do nosso povo”, diagnostica, observando que em Nova York um ingresso custa de US$ 150 a US$ 300 e os teatros estão sempre lotados. “Aqui, mesmo com muitas opções gratuitas, as pessoas não vão.”

A produção é grandiosa e trabalhosa. O cenário e a estrutura toda são desmontados após as apresentações dos domingos e remontado às sextas – já que o Tuca tem outro evento durante a semana. “É um trabalhão”, diz Fagundes, 67 anos. Mas o desejo da dupla é que a presença do público os obrigue a prorrogar a temporada e o trabalhão para o ano seguinte. Bruno, 27, já não é mais um aprendiz de ator e contracena com o pai com autoridade. Ainda criança já participara de novelas (em A Viagem, com 5 anos, e Rei do Gado, com 7) e frequenta os palcos desde adolescente. É com autoridade, portanto, que incorpora com a miudeza do assistente Ken diante de Rothko.

“Ele cresce e se desenvolve, ganha força ao longo da história até subverter a relação mestre-aprendiz, patrão-empregado. Percorrer esse trajeto do personagem tem sido muito gratificante”, diz. “Mergulhei nessa história, a relação deles é intensa, pulsante. Vivo isso de forma completa, profunda, toda vez que entro em cena.” Atuar ao lado do pai também tem um valor especial. “Não é a primeira vez que atuamos juntos. Recentemente fizemos Tribos, que ficou dois anos e meio em cartaz e percorreu 31 cidades, foi assistida por 200 mil pessoas.”

Triunfo dos coronéis

Antonio Fagundes viveu mais de 50 de seus 67 anos nos palcos e estúdios. Estreou na TV em 1968, mas em 1964 já estava no teatro. Entre novelas, séries, especiais, peças, curtas e longas-metragens, contabiliza mais de uma centena de atuações. O ator foi também um dos pioneiros de sua classe em participações em campanhas políticas após a redemocratização. Ao lado de colegas como Lélia Abramo, Gianfrancesco Guarnieri, Paulo Betti, Bete Mendes, Irene Ravache, entre outros, aparecia com frequência nas primeiras campanhas petistas dos anos 1980. “Infelizmente, aquilo que sonhávamos não se realizou”, diz, em tom de decepção com o partido. “Hoje, cuido do meu trabalho. Faço minha parte.”

Provocado a explicar a indiscreta peruca usada para interpretar o coronel Afrânio, em Velho Chico, o ator defende o adereço, como símbolo caricato da máscara do coronelismo na política, e como recurso de contraste para facilitar ao público distinguir o tirano do humanizado Afrânio que surgiria no final da novela. “Essas perucas e tinturas estavam todas lá naquele 17 de abril”, diz, referindo-se ao dia do espetáculo deprimente em que a Câmara dos Deputados aprovou o encaminhamento do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, depois confirmado no Senado.

Seus olhos brilham e a voz se empolga ao falar das qualidades de Velho Chico, para além do conteúdo social. “As cores, os contrastes, a luz, as locações, as músicas, os personagens, e especialmente a característica teatral dos diálogos, compõem uma obra espetacular”, elogia.

Defensor da virada redentora de seu personagem na trama de Benedito Ruy Barbosa, Fagundes é questionado pela reportagem: quando um coronel com passado de crimes e crueldades nas costas, fazendeiro sem escrúpulo e controlador dos três poderes e se redime, vira bonzinho e é humanizado para que o público o perdoe, não se promove uma redenção farsesca da classe que domina a política hoje? A “maldade” concentrada no deputado (Marcelo Serrado), que no fim beirou à insanidade, não é uma forma de satanizar a política, e poupar os controladores do Congresso, os “coronéis”? O ator defende o enredo: “Os que estão lá são mesmo os coronéis.”

O artista volta a demonstrar desconforto com o assunto política, quando perguntado se o desfecho do impeachment não seria uma espécie de triunfo dos coronéis. “Não sei. Sai ela e entra quem? Temer? Cunha? Renan? Olha: eu estou de saco cheio.”