Esporte

Brasil inicia jornada para se tornar potência paralímpica mundial

'Vai lá de coração! Vamos sem braço, vamos sem perna. Vamos ser campeões!” Sem dó dos adversários nem de si, atletas paralímpicos sabem que o importante é competir, mas não entram para perder

WASHINGTON ALVES/MPIX/CPB

Silvânia e seu guia, Wendel, treinam para participar da corrida de revezamento 4x100m

Na impecável e novíssima pista de atletismo do Centro Paralímpico Brasileiro (CPB), localizado no Parque Estadual Fontes do Ipiranga, zona sul paulistana, eles estão orgulhosos. Preparam-se todos para um objetivo dos mais elevados: o Brasil trabalha para ficar entre os cinco países melhor posicionados do quadro de medalhas dos Jogos Paralímpicos do Rio, evento que sucede a competição em andamento neste agosto. Delírio?

Em Atenas-2004, o Brasil ficou em 24º lugar. Foi o ano em que os brasileiros viram as competições ao vivo pela TV e “descobriram” os atletas cuja deficiência não os desanima de competir para ganhar e representar o seu país. Quatro anos depois, subiu para a 14ª posição. Em Londres-2012, a 9ª. A meta de 2016, portanto, não parece tão ousada diante dessa evolução.

É certo que a Olimpíada vai bombardear os telespectadores de imagens gloriosas e reportagens a realçar façanhas de atletas de todo o mundo. Encerrado o evento, em 21 de agosto, uma pequena pausa e começa o outro espetáculo, de 7 a 18 de setembro. É a vida continuando em grande estilo mesmo após um acidente de moto, um AVC, uma lesão na coluna vertebral, uma perda parcial ou total da visão. Esses atletas lutam sorrindo, sabem mais do que ninguém o valor de um incentivo e não têm pena de si mesmos. Quem já assistiu a uma competição não esquece o grito: “Vai lá, vai lá, vai lá! Vai lá de coração! Vamos sem braço, vamos sem perna. Vamos ser campeão!”.

BUDA MENDES/CPBAlan Fonteles
Fonteles: “Vai ser tão bonito que as pessoas não vão nem enxergar as deficiências. Elas vão ver o show”

Amputado dos joelhos para baixo com 21 dias de vida, devido a uma malformação congênita, Alan Fonteles aparafusa suas próteses da marca islandesa Össur sentado em um canto da pista. O trabalho consome quase 20 minutos. No treino após dar um “tiro” (arrancar), o homem que ficou conhecido mundialmente ao bater o astro sul-africano Oscar Pistorius, na final paralímpica dos 200 metros da classe T44 de 2012, cai. Sua prótese direita simplesmente quebra, espalhando carbono esfarelado pela pista.

“Nunca isso aconteceu antes comigo, e não vi acontecer com ninguém”, diz o paraense de 24 anos. Hoje, Pistorius está aprisionado, acusado de assassinar a modelo Reeva Steenkamp, sua namorada. Um vídeo em que joga bola numa penitenciária na África do Sul ficou famoso. Outro adversário com potencial, o norte-americano Richard Browne, desistiu da disputa. Vice-campeão olímpico na classe T44 (amputação de uma perna ou limitação similar), nos 200m, e recordista mundial, ele anunciou que não está preparado para “competir no nível em que está acostumado”. Há quem desconfie da justificativa e suspeite de doping, uma praga que penetrou também o inspirador mundo do esporte paralímpico.

Até 2008, Fonteles usava uma prótese de madeira, que o machucava bastante e não dava retorno, não devolvia a energia cinética para fazê-lo correr mais. No ciclo que se estendeu até Londres, e até o “ano sabático” que tirou em 2014, teve apoio federal e do Time São Paulo, uma bolsa-atleta estadual, além de outros patrocínios. Os anunciantes descobriram que faz bem vincular suas imagens a atletas paralímpicos consagrados. Dá um tom de humanidade a empresas que por vezes cobram altas taxas e têm número elevado de queixas em órgãos de defesa do consumidor.

O período de descanso custou a Fonteles o apoio paulista, mas os que lhe restam, que incluem o da própria Össur, são suficientes para levar uma vida confortável. Com tranquilidade, ele promete espetáculo. “Vamos lá mostrar o nosso trabalho. E vai ser tão bonito que as pessoas não vão nem enxergar as deficiências. Elas vão ver o show.”

MARCIO RODRIGUES/MPIX/CPBSilvânia
Silvânia vai disputar também a corrida de revezamento 4x100m

Cega voadora

Enquanto ele fala, Silvânia Costa, de 29 anos, se prepara para o salto em distância, na mesma pista do CPB onde bateu o recorde mundial da prova, na categoria T11 (cego total), em 26 de junho. E voltou a superar sua própria marca em 17 de julho, também numa etapa do Circuito Loterias Caixa de Atletismo e Natação. A sul-mato-grossense registra 5,46 metros, avançando 12 centímetros em relação ao salto seu anterior e 25 além da marca estabelecida pela espanhola Purificación Ortiz, que sustentou o recorde desde 1997.

O quadro é esse até o fechamento desta edição, mas a cega voadora do Centro-Oeste está em plena evolução. Silvânia, que tem uma mancha no nervo ótico, chamada na literatura médica de stargate, ingressou no mundo do atletismo pelas corridas de rua. Gostava de correr em torno da Lagoa Maior de sua cidade, Três Lagoas, dando voltas num circuito de 2.800 metros. Tinha, então, apenas 5% de visão. “Eu enxergava vultos e, para me orientar, seguia outro corredor. Às vezes caía e me machucava, mas sempre gostei muito de correr”, conta.

De um amigo, ouviu uma dica: haveria uma prova de 10 quilômetros com premiação de R$ 300, a Corrida do Verde. Aos 20 anos, ela já era mãe de uma menina de 2. Com o prêmio, poderia pagar o leiteiro por três meses. Correu, ganhou e pagou. “Mas as mesmas contas chegavam nos meses seguintes”, atesta. Animada com aquela forma de conseguir dinheiro, foi se testar na Corrida de Reis, com premiação de R$ 500, em Campo Grande. O resultado? Quase cinco meses de leiteiro garantidos, deduzidos os custos de viagem – que Silvânia reduzia dormindo nas estações rodoviárias.

As performances chamaram a atenção do treinador Ricardo Itacarambi, da Associação dos Cegos de Cuiabá. Com tanto potencial, ganhou apoio da prefeitura de Três Lagoas e foi encaminhada para treinar em São Caetano do Sul, no ABC paulista. Diversos testes revelaram maior aptidão para o salto e corridas de velocidade, mas ela chegou a ser recordista brasileira até no arremesso de peso. No Rio, vai disputar também a corrida de revezamento 4x100m.

No salto, Silvânia precisa lidar com a sensação do voo cego. “Existe uma técnica para a gente contrair a musculatura e ficar mais tempo no ar, alongando o salto. Mas o cego não sabe a altura em que se encontra. Por não saber, o corpo da gente se protege e dá uma trancada. É necessário trabalhar psicologicamente para aproveitar todo o potencial do salto”, explica. Quando aprender, quanto conseguirá voar?

JONNE RORIZ/MPIX/CPBVerônica Hipólito
Verônica já tem o título mundial nos 200m rasos da classe T38

Um de seus admiradores é seu guia na prova de 4x100m. O brasiliense Wendel Souza Silva, aos 24 anos, ainda sonha com resultados no atletismo convencional. Sua prova são os 400m. Alcançou a final do Campeonato Brasileiro Sub-23, mas ainda não está no nível para alcançar índice olímpico. Enquanto isso, se mostra feliz como guia, inclusive financeiramente. “O apoio, para um atleta do meu nível, é maior no esporte paralímpico do que no olímpico. Aqui tenho médico, massagista, fisiologista, nutricionista, fisioterapeuta e treinador. Torço para que o apoio paralímpico continue assim depois dos Jogos. Enquanto isso, vou fazendo meu pé de meia.”

Sorridente e de fácil trato (não é o caso de todos os guias, que às vezes se desmotivam e brigam com os atletas), Wendel quer ver Silvânia brilhar, tanto no salto como nas provas de velocidade. “Ela é a razão para eu acordar todos os dias às 6 da manhã para treinar. Cada um desses atletas é uma verdadeira lição de vida”, diz.

Uma dessas lições de vida anda apressada pela lateral da pista. Verônica Hipólito parece estar sempre sorrindo. Prestes a completar 20 anos, já tem o título mundial nos 200m rasos da classe T38 (limitação por paralisia cerebral), conquistado há quase quatro anos. É difícil perceber qual seria a limitação da velocista. Verônica sofreu um AVC que deixou sua mão direita eternamente meio fechada. Vaidosa, disfarça carregando sempre um celular, quando não está treinando.

Garra sobre rodas

Não muito distante do centro paralímpico, no bairro da Saúde, também na zona sul paulistana, fica a Confederação Brasileira de Vôlei Sentado. Alto, Amauri Ribeiro está em pé, e olha o mundo lá de cima. É o único integrante de duas gerações famosas do vôlei convencional: a de prata (vice do Mundial de 1982 e dos Jogos Olímpicos de 1984) e a de ouro (campeão olímpico de 1992). O central revelado no Clube Atlético Ypiranga tira sua remuneração de aulas de educação física que ministra numa universidade e dá clínicas de vôlei em resorts, hotéis e cruzeiros. Sua atividade de dirigente não é remunerada. Isso não significa que seja um trabalho realizado amadoristicamente, no sentido pejorativo do termo.

“Eu me sinto gratificado por este trabalho. Estamos vivenciando o crescimento de um esporte novo no Brasil. O que faltava para nós era estruturar as comissões técnicas e dar um bom nível de treinamento às seleções. Felizmente, estamos conseguindo.” Amauri considera o vôlei sentado tão desconhecido no Brasil como era o vôlei convencional nos anos 1970. Ele estima que não haja muito mais do que 500 atletas da modalidade que abraçou no país – menos popular do que sua maior concorrente em quadras, o basquete em cadeira de rodas.

O esporte passou a ser praticado de forma mais séria em 2000. Mesmo com essa base enxuta, o Brasil já é vice-campeão mundial. Na final, em 2014, a Bósnia se saiu melhor. Na semifinal, os brasileiros demonstraram ter elevado seu nível ao superar a potência histórica Irã, dono de cinco medalhas de ouro em sete edições dos Jogos Paralímpicos.

Cada país encontra seus jogadores em passagens tristes de sua trajetória: a Bósnia os arregimenta entre mutilados na guerra dos Bálcãs. O Irã já tem duas gerações: despontou com veteranos do conflito com o Iraque (1980-1988) e a renovou com vítimas de surtos de poliomielite procedentes do Irã e do Paquistão. O vôlei sentado brasileiro, bem como outras modalidades paralímpicas, absorve acidentados que se deslocavam em motocicletas e carros em centros urbanos malucos. Segundo Amauri, 80% de seus pupilos são provenientes dessa tragédia.

O grande desafio, segundo o antigo meio de rede da Pirelli, é incutir nesses jogadores – com pequeno histórico de prática esportiva antes do acidente, na maior parte dos casos – a necessidade de se disciplinar e ser assíduo aos treinos.

O Brasil ganha força no esporte graças a uma peculiaridade da regra: permite-se a participação de um atleta em quadra e de um reserva que não sejam cadeirantes ou amputados. Atletas que passaram por muitas cirurgias de joelho, por exemplo, ou com problemas ligamentares, tornam-se elegíveis. Enquadram-se assim Anderson Ribas, dono de dois títulos da Superliga, e Fred Doria, que usou a coroa de “Rei da Praia”, tradicional prêmio oferecido num popular evento do vôlei de praia.

A comissão técnica também é forte: é encabeçada por Fernando Guimarães, irmão do consagrado José Roberto Guimarães, técnico de Amauri em 1992 e bicampeão olímpico, depois, no comando da seleção feminina.

Não faltam histórias edificantes nos Jogos Paralímpicos. Seria uma pena se não lhes dessem a devida atenção. Mas os atletas não se lamentam por isso. Nem por isso, nem por nada.

DIVULGAÇÃO/CBVDAmauri Ribeiro
Amauri: ‘Estamos vivenciando o crescimento de um esporte novo no Brasil’