cultura

Andança por cidade mineira desfruta a poesia de Drummond

Duzentas pessoas fizeram por três horas uma Caminhada Poética, em Paraisópolis (MG), entremeada com versos do escritor

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“As pedras caminhavam pela estrada/ (…) O enigma tende a paralisar o mundo.” Os versos de Enigma são os primeiros a serem recitados em uma manhã de sol em Paraisópolis, sul de Minas Gerais, na sexta edição da Caminhada Poética realizada naquele município, a 500 quilômetros de Itabira, terra natal de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), o personagem do evento. Tinha um Drummond no Meio do Caminho – referência a um de seus poemas mais famosos, escrito em 1924 – surgiu da iniciativa de um professor aposentado. A ideia foi inspirada em um outro encontro anual, dedicado a Guimarães Rosa. Neste ano, atraiu 200 pessoas para uma caminhada de três horas, entremeada com versos do itabirano, recitados por um grupo de teatro amador.

Na divisa de Minas com São Paulo, na região de Itajubá e Pouso­ Alegre, Paraisópolis é uma daquelas cidades mineiras com ladeiras por toda a parte, entre as montanhas. Fica ali o Pico do Machadão, com aproximadamente 1.800 metros de altitude, um concorrido ponto de voo livre, e a represa de Brejo Grande, com o lago artificial mais alto do país (1.400 metros).

É conhecida também pelos ventos – em 1827, chegou a ter o nome de São José da Ventania. Tornado município em 1874, tem a denominação atual desde 1914. E fica bem mais perto de São Paulo (220 quilômetros) do que de Belo Horizonte (440 quilômetros). Como parte do “caminho da fé”, também é rota de peregrinos.

JOSE ANTONIO BRAGA BARROSVelho Chico
Duzentas pessoas se juntam para caminhar e escutar poemas: três horas e dez paradas

No fim de semana da caminhada, em 3 de julho, o ar estava calmo. “O vento tem seu próprio calendário, na semana anterior estava de arrasar”, conta o professor José Antonio Braga Barros, 61 anos, criador do evento sobre Drummond. “Uma senhora nos contou que, na juventude delas, as moças colocavam chumbinhos nas barras das saias para ir para as ruas e não correr o risco de ver suas roupas subindo.”

É também um bom impulso para os praticantes de asa-delta e parapente, que Braga chama de voadores: “Eles nos falam que perto do Machadão o vento forma um colchão de ar, deixando-os mais tempo circulando no ar”.

 

 

Ai, como morrem as casas!

Como se deixam morrer!

E descascadas e secas,

Ei-las sumindo-se no ar.

(Morte das casas de Ouro Preto)

FACEBOOK/JOSE ANTONIO BRAGA BARROSJosé Antonio Braga Barros
O professor Braga criou o evento depois de conhecer semana dedicada a Guimarães Rosa

Admirador dos poetas concretistas e, obviamente, de Drummond­, Braga não dava aula de literatura, como poderia se supor. Lecionava História e Geografia no ensino público em São José dos Campos, interior paulista, até se aposentar e voltar para sua Paraisópolis, morando a poucas quadras da Praça Getúlio Vargas, onde fica a Igreja Matriz de São José. O fim da atividade profissional não interrompeu sua inquietude. Estudou Comunicação e passou a editar jornais, como o atual, O Vento – referência aos ares movimentados da cidade –, mensal. “De esquerda”, assinala. Com tiragem de 2.500 exemplares e distribuição gratuita, a 23ª edição saiu em julho.

Cinco anos atrás, o técnico em Mecânica Pedro Antônio ­Cândido, funcionário do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos, conheceu a Semana Roseana, em Cordisburgo (MG), onde nasceu o autor de Grande Sertão: Veredas, obra que está completando 60 anos. Pedro voltou entusiasmado com o que viu e contou ao amigo Braga. Da conversa sobre Guimarães Rosa começou a nascer a ideia de um evento dedicado a Drummond.

A palavra oscila no espaço

um momento. Eis que, sibilino,

entre as aparências sem rumo,

responde o poeta: Ao meu destino.

(O Chamado)

“Sabíamos que era a cara dele”, diz Pedro. “Ficamos conversando até tarde da noite, vendo as fotos e filmes que fizemos da Caminhada Ecoliterária de Cordisburgo e sobre a Semana Roseana. Naquela noite mesmo o Braga já começou a ‘maquinar’ na cabeça dele.” No ano seguinte, o professor foi conferir o evento na terra de Guimarães – e já organizou a primeira caminhada.

Pedro e sua companheira, Nádia, participaram das seis edições da caminhada poética – neste ano, levaram uma das filhas, Siman. E é presença frequente em Cordisburgo e eventos similares, inclusive em São José. “Acho muito importantes todas as atividades que valorizem a cultura brasileira. É uma maneira de observar nossa verdadeira identidade e aprender muito com ela. É através da cultura que conquistamos a verdadeira cidadania de nosso povo.”

JOSE ANTONIO BRAGA BARROSVelho Chico
Criado há 12 anos, Grupo de Teatro Toque de Arte reúne integrantes para declamar

O formato é mais simples. Durante aproximadamente três horas, no domingo pela manhã, depois de um “café na roça”, os participantes fazem um trajeto de 4,5 quilômetros na área rural, com dez paradas. Em cada uma, vestidos com trajes de época, os integrantes do Grupo de Teatro Toque de Arte recitam poemas. Braga viu a trupe durante apresentação em uma praça e fez o convite. A princípio, houve certa resistência. “Foi um susto pra gente. Para nós era tudo novo. Mas todo mundo se apaixonou por Drummond”, diz, durante um intervalo da caminhada, o diretor do Toque de Arte, Gerson Raimundo Silva, o “Drummond”.

O que ontem disparava,

desbordado alazão,

hoje se paralisa

em esfinge de mármore,

e até o sono, o sono

que era grato e era absurdo,

é um dormir acordado

numa planície grave

(Carta)

O grupo surgiu há 12 anos, depois da realização de uma semana interna de prevenção de acidentes de trabalho (Sipat) na agroindústria onde Gerson é gerente de produção agrícola – uma das tarefas era encenar uma peça. “Gostamos tanto que resolvemos formar um grupo. A gente prima por autores brasileiros”, conta o diretor, enquanto os participantes da caminhada aproveitam o descanso para comer frutas e tomar água, no sítio de um morador.

Eles decidiram partir para o humor – Gerson e outros fizeram curso de palhaçaria clássica. Depois de Drummond, a poesia passou a fazer parte do trabalho, com serestas pelas ruas da cidade. “Quem sabe a gente consegue estimular as pessoas”, diz. A próxima seresta será em 25 de setembro. São 15 pessoas envolvidas no grupo, de diversas idades – a mais nova é Maria Isabel Maciel, de 10 anos.

Nas caminhadas, os livros de Carlos Drummond de Andrade são lidos em ordem cronológica. Agora, por exemplo, foi a vez de Novos Poemas (1948) e Claro Enigma (1951) – o primeiro a ser publicado foi Alguma Poesia, em 1930. Ele mesmo autor de um livro de poesia (Minhas Gerais), Braga afirma não ter um preferido, mas revela afeição por Menino Antigo, de 1973, em que Drummond, já com 71 anos, fala da infância e da adolescência.

DIVULGAÇÃOMoacir Zaratin
Zaratin, 74 anos, participou pela segunda vez da caminhada. “Não tem como parar”

A caminhada se aproxima do final, pouco depois de a declamação de um poema dedicado a Federico García Lorca (“para sempre viverão os poetas martirizados”) emocionar o grupo. No céu claro, avistam-se quase duas dezenas de paragliders e vários urubus. Presente pelo segundo ano, o poeta e ex-administrador de empresas Moacir Zaratin toca Rio de Lágrimas na gaita, lembrando de sua terra, Piracicaba. Durante todo o percurso, a cada reinício, também tocará um berrante. Mostra agilidade para os seus 74 anos – uma pessoa com seu gênio, conta, não consegue parar.

A última parada é em uma porteira, de onde Braga vai agradecer aos participantes, lembrando que se trata de um trabalho voluntário. A próxima será em 2 de julho. No ano que vem, quando se completarão 30 anos da morte do poeta, será a vez de Viola de Bolso (1952) e Fazendeiro do Ar (1954).

Encontro de livro e canção

O compositor Jean Garfunkel sobe ao palco da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, e começa a leitura de O Peru de Natal, texto do “anfitrião”. Em seguida, com a filha Joana toca Véspera de Natal, de Adoniran Barbosa. É mais um evento do Projeto Canto Livro, criado há dez anos, que promove encontros entre textos de um autor e canções identificadas com aquele universo. Começou com Guimarães Rosa, resultando no espetáculo O Sertão na Canção. “Você tira o livro da estante e leva para o palco, sensibiliza o público, tem um resultado muito interessante no que tange ao incentivo à leitura”, diz Jean. “Somos um povo cantante, mas não somos povo leitor, nem letrado.”

Segundo ele, a ideia é redescobrir o prazer da leitura a partir de algo que se chama literatura comparada, “é mostrar como a literatura conversa com a canção”. Para o cantor e compositor – presente na cena musical desde os anos 1980, em parceria com o irmão Paulo –, o Brasil é um país “oral”, com tradição de contação de “causos”. “Mas hoje se vê muito e se ouve pouco, e as pessoas têm saudades de ouvir histórias.”

O Canto Livro tem atualmente 35 shows temáticos, entre assuntos e autores, como Guimarães, Jorge Amado, Machado de Assis, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Adélia Prado, Drummond, Manoel de Barros, além de estrangeiros como Gabriel García Márquez e Isabel Allende. Jean e Joana, que assinam todos os roteiros, não musicam textos – o desafio é procurar canções. “Tem canção sobre qualquer assunto. A canção brasileira está subaproveitada no país.

No caso de Mário de Andrade (1893-1945), que pai e filha apresentaram em junho, ele conta que teve mais facilidade. “Peguei esse universo paulista que também tenho. O Mário é um escritor tão bom que o difícil é cortar. É um avatar da nossa cultura”, diz Jean, que emenda Quando eu Morrer quero Ficar – em que o poeta cita cenários paulistanos, como a Rua Aurora, o Largo do Paissandu, a Rua Lopes Chaves (onde morou e agora está a oficina cultural com seu nome), o Pátio do Colégio – com sua composição Avenida São João.

Ele também interpreta Viola Quebrada, de Mário, e Valsa Paulistana, parceria de Jean com o maestro Júlio Medaglia. No dia da apresentação na biblioteca paulistana – como parte do projeto Imagens do Brasil Profundo, do professor Jair Marcatti –, quem cantou junto foi o ator Pascoal da Conceição, interpretando Mário de Andrade.

No caso de Machado de Assis, uma das músicas escolhidas foi Quem Sabe, modinha de Carlos Gomes. “Parece que estão ouvindo uma música inédita”, diz Jean, lembrando que é uma obra de 1840. É um trabalho de garimpo. “Faço com muito prazer, porque me permite revisitar o cancioneiro brasileiro, que eu adoro.” O projeto inclui oficinas e apresentações em escolas e universidades.

Ele pensa em projetos específicos. Cita Graciliano Ramos (“Já, já, a gente faz”), Érico Verissimo, Oswaldo de Andrade e autores mais contemporâneos. “Tem muita coisa para fazer”, diz Jean, de 60 anos.