Cidadania

A terra e seus sábios. Caravana tenta integrar cidade e campo

Projetos de caravanas agroecológicas organizadas pelo CNPq integram ambientes, conhecimentos e culturas em busca do equilíbrio cidade-campo

Carolina Caffé

Passeata em Barra do Turvo, região do Vale do Ribeira (SP)

Em maio, cinco caravanas na região Sudeste saíram em busca de histórias de resistência e esperança. Eram estudantes, agricultores e ativistas paulistas, fluminenses, capixabas e mineiros, interessados em experiências agroecológicas no estado de São Paulo. Os comboios percorreram rotas temáticas, envolvendo comunidades tradicionais, agroturismo, consumo responsável, agricultura urbana e assentamentos, tendo a agroecologia como elo.

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Maria: orgulho de trabalhar no campo

No país que mais consome agrotóxicos no mundo, a Caravana Agroecológica e Cultural rumo ao Vale do Ribeira busca expressar a valorização do cultivo orgânico e agroecológico, compreendido como saída para o consumo de alimentos sem venenos ou sementes transgênicas. E a reflexão não é só alimentar, mas sobre a concentração de renda e terras, o modelo de economia baseado nos grandes latifúndios e na ausência de integração entre campo e cidade.

“Para nós, comer é um ato político”, afirma Virlei Ferreira, responsável pelo Centro de Formação Campo-Cidade na zona rural do município de Jarinu, a 80 quilômetros de São Paulo. No Sítio ­Pirilampo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) promove cursos, formações e experiências-piloto em produção agroecológica. É a primeira parada da caravana. Mais tarde, na noite cultural, segue a conversa regada a música e cerveja artesanal Guerrilheira, produzida ali. “A agroecologia é uma matriz tecnológica pautada nos princípios socialistas. Interessa a toda a humanidade, pois é uma forma de produção baseada em conceitos sobre relações humanas”, diz Virlei.

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‘Produção baseada em relações humanas’, diz Virlei Ferreira, do Centro de Formação Campo-Cidade, do MST

Para o agricultor, existe também a responsabilidade por parte dos consumidores para a manutenção de um sistema alimentar prejudicial. “As pessoas deveriam parar de seguir o que a mídia diz, de consumir veneno, e começar a se preocupar com o rastro ecológico e social que deixam no planeta”, afirma. O programa de reforma agrária popular proposto pelo MST considera a necessidade de se romper com a ideia de “espaços que só produzem e espaços que só consomem”.

A agricultora Maria Alves da Silva concorda. Residente do acampamento Comuna da Terra Irmã Alberta, local da segunda parada, ela diz que não se deve ver o camponês “como um Jeca Tatu”, como se o problema dele fosse só a terra. “O trabalhador do campo tem de ser um sujeito preparado, versátil, capaz de vender sua própria mercadoria, sem precisar de atravessadores. Além disso, devemos ter orgulho de ser trabalhador do campo, sem a ideia de que o que vem do campo é atrasado ou penoso.”

O trabalho no sistema agroecológico, segundo ela, não é exaustivo como no convencional, mas prazeroso no plantar e no colher. A proximidade com os centros urbanos e a modernidade possibilitam essa condição híbrida do trabalhador descrito por dona Maria, e em seu assentamento há diferentes categorias de trabalho. “Hoje aqui não temos mais essa divisão: camponeses e urbanos. Temos trabalhadores. De mãos calejadas ou não.”

A comuna é um acampamento localizado no bairro de Perus, região noroeste da capital. Havia para a região um projeto de construção de aterro sanitário para receber dejetos do Rio Pinheiros. O MST ocupou e, junto com os bairros e cidades vizinhas, pressionou a prefeitura para barrar a ideia. O argumento foi pela defesa dos mananciais, dos recursos que ainda existiam na região, e também pelo assentamento das famílias que estavam reivindicando a terra para produção de alimentos.

Há mais de dez anos acampadas, as famílias lutam para permanecer, sob as incertezas e entraves da regularização fundiária. A maioria vem da própria cidade de São Paulo, e vivia em áreas de risco ou em situação de rua. Segundo Maria, aqueles que nunca tiveram acesso ao trabalho na terra são os que mais querem ficar. Eles acabam criando gosto pelo manejo e não querem mais voltar para a cidade.

Hortas urbanas

A caravana segue estrada. A viagem que liga os extremos da capital paulista leva mais de uma hora, pelas margens do município. A paisagem inclui as represas de Guarapiranga e Billings, beira parques e unidades de conservação e testemunha reservas naturais inimagináveis, até chegar em São Mateus, na zona leste. A horta da Dona Terezinha é uma referência em agricultura urbana, com cultivo de frutas, verduras, legumes, feijão, temperos, chás e ervas medicinais. A área de 4 mil metros está sob torres de transmissão de energia, ocupando espaços que estariam abandonados e ociosos.

“Vim da Bahia porque eu queria morar dentro da cidade”, conta Terezinha Santos Matos. “Cresci na roça plantando junto com meu pai. Via os aviões passar e gritava, ‘me leva pra São Paulo!’ Meu sonho era vir, mas não queria deixar o que eu fazia lá”. Com o apoio do Fundo Especial do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Fema, órgão ligado à prefeitura paulistana) e da organização não governamental Instituto Kairós, dona Terezinha é assistida por um agricultor que a visita três vezes por semana. “Cada vez que vem aqui ele nos dá uma receita diferente”, conta.

De São Mateus para a terceira parada, na região do ABC paulista, a distância é menor. O Coletivo de Consumo Rural Urbano de Diadema (CCRU), na Vila ­Socialista, recebe a caravana e outros grupos de diferentes partes do estado para debater outro universo temático: as conquistas e desafios do consumo responsável. Os grupos são formados por pessoas que se organizam para incorporar ao ato da compra critérios éticos, políticos, sociais e ambientais. Atuam no apoio a pequenos produtores e pretendem, ao mesmo tempo, viabilizar a compra de produtos saudáveis a preços acessíveis.

O CCRU é um dos 25 coletivos reunidos na Rede Brasileira de Grupos de Consumo Responsável, com objetivo de difundir a cultura de consumo de produtos agroecológicos, da agricultura familiar e da economia solidária.

Agrofloresta

Já quase alcançando o destino final, a caravana se dirige ao município de ­Sete Barras, na região do Vale do Ribeira, a pouco mais de 200 quilômetros da capital, para visitar a experiência de agrofloresta do seu Geraldo, na Comunidade do Guapiruvu. Geraldo Oliveira, em parceria com Gilberto Otha, protagonizou um lento, mas bem-sucedido, processo de transição agroecológica que inspirou a comunidade e o entorno. Essa e outras experiências da região se articulam em uma rede de cooperativas de produção e vendas chamada Aliança 7B.

“Vocês estão vendo essa árvore caída? Essa árvore cresceu, ela mesmo teve o seu tempo de vida e agora retornou, caiu. E é ela mesmo quem vai sustentar todos os outros cachos e plantas vivas. É o processo de renovação do solo”, conta Geraldo. O sistema junta floresta com agricultura, recupera técnicas e conhecimentos de povos tradicionais e agrega o conhecimento científico acumulado sobre a ecofisiologia das espécies vegetais – e sua interação com a fauna nativa. Ali se cultivam palmito, jaca, laranja, juçara, banana sem nenhum tipo de agrotóxico ou maquinário. Quem aduba é a própria natureza, a floresta, as árvores e folhas que caem.

“Na agroecologia a gente aprende que a diversidade de espécies traz o equilíbrio para o solo”, afirma Geraldo. Enquanto ele fala, seu parceiro Gilberto mete a mão na terra, cheirando e separando punhados para passar de mão em mão aos caravaneiros. Os integrantes ouvem com atenção sob as folhas das bananeiras que os protegem da chuva.

“O meu filho, por exemplo”, conta Gilberto, “em vez de virar empresário, está aqui com a gente nos defendendo. Ele não acreditava antes, mas passou a ver os resultados, as pessoas vindo, perguntando como funciona.” A transição agroecológica é movida a princípios: “As pessoas­ chamavam a gente de românticos, de poetas, loucos e utópicos, mas hoje reconhecem que estamos no caminho certo”.

A dupla relata que a área era tratada com veneno, óleo e adubo químico. “Era área degradada, um terreno muito ácido, tratado com trator, maquinário, totalmente deteriorado. Agora você vê a qualidade da terra? Totalmente diferente. Levou tempo para recuperar”, diz Gilberto. Eles não esperam lucro, nem aumento do consumo. Ainda assim, o sistema começou a revelar resultados positivos inspirando novos adeptos. “Hoje conseguimos mais valor agregado com os novos contratos. Está provada a viabilidade econômica.”

Povos tradicionais

“Devemos reivindicar o que é necessário. O direito de permanência das comunidades tradicionais nos seus territórios para continuar com este conhecimento agroecológico”, grita Paquê, um dos idealizadores do projeto da caravana, no megafone. Na praça central de Barra do Turvo, ainda no Vale do Ribeira, os instrumentos ritmizam uma ciranda formada por mais de 200 ativistas, agricultores e estudantes. Era a passeata do dia da culminância, quando cinco rotas temáticas se encontram para trocar experiências, conhecimentos, sementes, e participar de um seminário sobre agroecologia.

Os caravaneiros afirmam que no Vale do Ribeira puderam perceber que há uma importante forma de produzir alimentos que hoje está ameaçada por projetos que não garantem a permanência das comunidades tradicionais nos seus territórios. Um padrão que se repete em muitos lugares do Brasil.

“O modelo de agricultura dos quilombos nada mais é do que uma agrofloresta de forma diferente do contexto da universidade, no contexto do saber, das técnicas e mística dos povos tradicionais”, afirma Ubiratã de Souza Dias, o Bira, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). “Nossa luta é junto com as comunidades quilombolas, indígenas, caiçaras e ribeirinhas que vivem ameaçadas por projetos de desenvolvimento que prometem emprego e só trazem destruição.”

A resposta é verde

O projeto Caravana Agroecológica e Cultural rumo ao Vale do Ribeira tem especial importância diante da conjuntura política atual. Semanas depois dessa empreitada, o país passou a enfrentar retrocessos para a agricultura familiar, como a desestruturação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o enfraquecimento da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater), da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo), entre outras.

O evento estava na terceira edição. A realização é da Rede de Núcleos de Agroecologia da Região Sudeste (R-NEAs) e da Articulação Paulista de Agroecologia (rede APA), por meio do Projeto Comboio Agroecológico Sudeste do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A resposta a muitos dos problemas sociais vividos hoje no planeta é verde. E essa resposta, se já não era das melhores, fica mais ameaçada pelos retrocessos em curso. Se outras caravanas virão, ainda não se sabe.

carolina CafféPasseata_agroecologia
Situação já ruim é ameaçada por retrocesso