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No ritmo: professora convida alunos MCs para compor funks sobre as aulas

Em São Paulo, inovação no ensino de História mostra novos caminhos para tornar as matérias interessantes. “De repente o menino que é considerado o pior da escola é o que mais participa”

PRISCILLA VILARIÑO/RBA
PRISCILLA VILARIÑO/RBA
Ane: 'O que adianta eu valorizar a história do Egito ou da Mesopotâmia se não valorizo a história deles?'

Pelo menos 40 alunos na sala de aula em uma escola sem infraestrutura, com material didático engessado e professores mal remunerados, como é comum na rede estadual de São Paulo. Um dos muitos desafios da professora de História Ane Sarinara, de 27 anos, é tornar o ensino interessante para os jovens, em geral moradores da periferia de Osasco, na região metropolitana de São Paulo. A solução não estava na trilha do ensino tradicional: o funk, malvisto por parte dos colegas docentes, foi parar na sua aula.

Professora há oito anos, Ane tem o hábito de sentar com os alunos no pátio durante o recreio para ouvir o que acham da escola. “Sempre me diziam: ‘A escola é chata, professora! Gosto de vir mais por causa dos meus amigos do que das aulas’. Queriam coisas mais dinâmicas. Dizem que gostariam de cantar e dançar. Foi ai que eu comecei trabalhar junto com os MCs.”

A equação parecia simples: se os alunos cantam e dançam funk no tempo livre, por que não utilizar a música para passar conteúdos? “Chamei um menino e disse que, já que ele gosta tanto do ritmo, iria ler alguns textos e a partir deles fazer uma música para todos cantarem na sala. Deu muito certo. Um faz a batida, outro marca o ritmo no cesto de lixo e eu vou perguntando para eles o que a música diz. De repente, o que é considerado o pior aluno da escola é o que mais participa.”

Ane leciona hoje na unidade da Fundação Casa de Osasco. “Uma das atividades era sobre os 50 anos da cidade, justamente em uma época em que a prefeitura estava com problemas. Ele compôs: ‘Prefeito de Osasco, ninguém nunca nem viu/ ele se elegeu/ e depois sumiu’. Os alunos todos cantavam, inclusive quando um grupo de vereadores visitou a escola.”

O trabalho não é simples e a resistência muitas vezes está no próprio colégio. “Se digo que vou trabalhar com funk muitos professores não aceitam. Tratam a periferia como algo inferior, onde não se produz cultura. Aí o aluno não se identifica e não se interessa. O que adianta eu valorizar a história do Egito ou da Mesopotâmia se não valorizo a história deles?”, diz. “Eu pego um aluno que foi expulso de casa porque teve uma reintegração de posse do local onde vivia. Está sem moradia, dormiu na rua com a família. O que ele vai querer saber de Michelangelo?”

A professora critica a visão de escola silenciosa e ordenada. “Como os alunos vão produzir quietos? O que questiona não é considerado bom aluno, mas encrenqueiro. Mas o cidadão questionador é encrenqueiro. O que a escola diz que é se você questionar, será excluído.”

De quebrada para quebrada

Ane faz parte de uma geração que cresceu nos bairros mais pobres, decidiu continuar lá e comprar a briga para ampliar o acesso a direitos. “Por idealismo”, como diz, a luta diária é garantir aos alunos uma educação libertadora e de qualidade, direito de toda criança e adolescente. “É muito difícil os professores dizerem que eles podem melhorar o lugar onde moram. Geralmente os alunos ouvem que precisam melhorar de vida para sair da periferia. Não é assim. Por isso, costumo começar a matéria perguntando para eles qual a história que não está contada no livro. É a deles.”

Natural de Jandira, vizinha a Osasco, Ane viveu cinco anos em um abrigo. Tinha 4 anos quando a mãe, a irmã e ela foram expulsas de casa pelo tráfico. Ficaram na rua. Aos 10, foi viver em Osasco com a mãe, que conseguiu se reerguer. Estudou em escolas estaduais da região, onde anos depois voltou para lecionar, após cursar História em uma das primeiras turmas do ProUni. “Ultrapassei o limite de ‘você vai ser doméstica, ter filho aos 16 anos e seu máximo vai ser um marido traficante’, como me diziam quando eu tinha 14 anos.”

Para que seus alunos ultrapassem barreiras socialmente impostas, a estratégia é levantar com eles os problemas da região. “Tento mostrar que eles são cidadãos, que podem exigir e por quais caminhos. Isso, infelizmente, não dá para fazer de forma delicada, porque a periferia tem urgências. Eu tenho de escancarar a realidade para eles. Aí trabalhamos questões da nossa estrutura repressora como o machismo, o racismo e a desigualdade social. Sempre digo que eles precisam ter uma visão crítica para se defender do sistema”, conta.

Da sua casa, em uma rua sem iluminação pública, ela ouve o mesmo funk que embala seus alunos nas festas. Na ida ao mercado não passa despercebida, encontra antigos e atuais estudantes. “Quando me virem nessas fotos tenho certeza que vão dizer ‘afe, professora, nem parece você’. Eles sempre me veem sentada em cima da mesa”, brinca. “Até minha linguagem é a mesma que a deles, porque eu cresci como eles e moro no mesmo lugar.”

Os desafios persistem. “Não adianta eu perguntar se conhecem as guerras da África sem perguntar qual a guerra que eles vivem aqui. Por isso também uso nas minhas aulas os raps mais críticos. Eles ouvem e falam: ‘Isso acontece comigo, professora’.” O resultado não é simples de ser mensurado. Chega na forma de sorrisos, cumplicidade, participação e autoestima. “Tenho alunos no movimento estudantil, meninas que formaram grupos feministas, alunos que entraram na faculdade ou que conseguiram empregos. Já vi meninos saírem do crime e outros que falavam que queriam ser bandidos trabalhando.”