Brasil

O desafio de ampliar a unidade e impedir que o país ande para trás

A derrubada do governo eleito em 2014 tem como objetivos abortar os avanços sociais. Os sacrificados podem e devem ser os de sempre, em termos históricos: trabalhadores e população de baixa renda

Sérgio Amaral/RBA

Manifestantes no dia da saída de Dilma em 12 de maio: desrespeito à legalidade e receio de perder conquistas

Desde pouco antes do meio-dia de 12 de maio – véspera de uma “13 sexta”, como muitos considerariam mais apropriado –, Michel Temer é o presidente interino do Brasil, no lugar da afastada Dilma Rousseff. Seus aliados esperam medidas urgentes, que incluirão boa dose de “sacrifício” pelo país. Os sacrificados podem e devem ser os de sempre, em termos históricos: trabalhadores e população de baixa renda. Um exemplo é a “solução” já admitida para combater o desemprego: ampliar a terceirização, aprovando um projeto cuja tramitação no Senado tende a se acelerar.

“Ninguém vai para a mesa de cirurgia por gosto. O corte, o sacrifício, é para salvar o bem maior”, comentou o deputado, médico pediatra e vice-líder do partido na Câmara, Darcísio Perondi (PMDB-RS), conforme anotou o El País. O mesmo jornal lembrou que as insistentes investigações não conseguiram provar participação de Dilma em atos de corrupção. E fez ressalvas ao processo que culminou no impedimento. “Essa crise institucional coloca dúvidas mais do que razoáveis sobre a legitimidade que teria um novo presidente depois de um processo tão pouco habitual. O Brasil não pode se permitir semelhante espetáculo.”

Mas o espetáculo foi montado. Na tarde do dia 12, Temer, o mesmo que dizia aguardar “respeitosamente” o desfecho da votação no Congresso, anunciava o ministério salvador, de perfil obviamente conservador, com destaque, entre outros, para Alexandre de Moraes na Justiça – o advogado era até então secretário da Segurança Pública de São Paulo, estado conhecido por sua relação pouco amistosa com movimentos sociais e manifestações públicas, pelo menos as identificadas com pautas progressistas.

Outros nomes do “novo” governo são o senador Romero Jucá (PMDB-RR), no Planejamento, e de Geddel Vieira Lima (Secretaria de Governo). Jucá é relator do projeto que “flexibiliza” o conceito de trabalho escravo, enquanto Geddel é um dos citados na Operação Lava Jato. Tem ainda o ex-governador e senador José Serra (PSDB-SP, Relações Internacionais), que defende mudanças na regra do pré-sal em benefício de companhias estrangeiras.

Os primeiros passos causam preocupação com a possível perda de conquistas importantes obtidas nos últimos anos, em que pese a crise do período mais recente e a dificuldade do governo agora derrubado de encampar reivindicações populares.

“Dilma Rousseff errou muito. Mas nem a soma dos seus erros pode justificar a fúria incivilizada que Aécio Neves desfechou logo depois de derrotado pelas urnas, para derrubada do governo legítimo”, escreveu, na edição de 12 de maio da Folha de S. Paulo, o colunista Janio de Freitas. “A par dos erros, o governo Dilma levou a avanços significativos contra problemas sociais. Aí já se notam recuos deploráveis. Por efeito do quase ano e meio de degradação econômica­ desde o início do segundo mandato, com a ação destrutiva da oposição e a inoperância do governo, forçada em grande parte.”

Em sua conclusão, o jornalista apontava motivações dos novamente donos do poder, lembrando ainda que mesmo os setores ricos nunca deixaram de ganhar, mesmo em tempos de redução da desigualdade: “Mas os que tomam o poder não trazem correções. São figurinhas fáceis. Vêm buscar o que deixaram de ter. E dar mais aos que não deixaram de ter mais mesmo nos governos de Lula e Dilma”.

Ao sair do Palácio do Planalto, a própria Dilma­ reconheceu que pode ter errado – mas reiterou a honestidade de sua biografia. “Não existe injustiça mais devastadora do que condenar um inocente. Esta farsa jurídica da qual estou sendo alvo é que nunca aceitei chantagem de qualquer natureza. Posso ter cometido erros, mas não cometi crimes. Estou sendo julgada por ter feito justamente tudo que a lei me autorizava fazer”, declarou.

Pretexto para tirá-la da Presidência, as tais pedaladas são um recurso usado cotidianamente, inclusive pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Também é difícil acreditar que o combate à corrupção seja bandeira de quem retomou o poder em termos formais, ainda mais com vários investigados compondo a base de apoio de Temer.

Renovar a esquerda

Sérgio Amaral/RBAfuturo_ameacado_foto_Sergio_Amaral_rba.jpg
Governo interino pode impor agenda de retrocesso, prejudicando os mais pobres

Um mês antes de o golpe ser consumado, durante debate na Universidade de São Paulo, o cientista político André Singer questionava o porquê de se derrubar um governo caracterizado pela conciliação. E concluía que se tratava de um “episódio maior” da luta de classes no Brasil. “O que se está tentando fazer é criminalizar o conjunto da alternativa popular no Brasil e tirá-la do cenário político talvez por muito tempo”, afirmou.

O que fazer, então? “Estamos num processo pantanoso. A esquerda tem de rever tudo. Está sendo chamada a rever tudo, desde os ­paradigmas até sua atuação recente. Tem que rever métodos e formas de organização. Essa é a grande missão da Frente Brasil Popular”, diz o também cientista político Roberto Amaral, ex-presidente do PSB. “Não estou preocupado com os agentes, mas com a sobrevivência da esquerda.” No inesquecível 12 de maio, Amaral reforçou o papel da frente. “Vamos ampliá-la mais, e nesse movimento sair do isolamento para enfrentar o inimigo maior.”

Também para o deputado federal Chico Alencar (Psol-RJ), de partido de oposição ao governo Dilma, mas que votou unanimemente contra o impeachment, as forças de esquerda precisam se ressignificar e se reciclar. “Em primeiro lugar, fazer uma profunda autocrítica e não se apegar ao autoengano.” Para Alencar, isso significa reconhecer erros políticos e de condução dos governos, desde Lula. Um desses erros, avalia, foi abandonar aos poucos a mobilização social e preferir os pactos, inclusive com forças conservadoras.

“O fim do governo Dilma, mesmo para nós, do Psol, e olha que somos oposição, nos afeta. É preciso analisar por que, mais uma vez, na história da humanidade, um grupo mudancista com proposta de transformação social, quando chega ao poder do Estado, é transformado por ele e pelos mecanismos da dominação burguesa”, diz.

Para a deputada federal Jandira Feghali (RJ), do PCdoB, partido que manteve postura aguerrida na base do governo, o sistema político é a verdadeira face da crise. “Quando a esquerda passa a participar do governo, parte dela se institucionaliza e parte se mantém ativa dentro do movimento social. E ao assumir um governo de coalizão, isso cria contradições. Como governo, tem que assumir muitas vezes posições de uma coalizão que não é majoritariamente de esquerda. O que está em crise é o presidencialismo de coalizão”, diz a parlamentar.

Na opinião do coordenador em São Paulo da Central de Movimentos Populares (CMP), Raimundo Bonfim, foram o movimento social e os movimentos populares, e não os  partidos, que assumiram um papel de protagonismo no processo de crise e golpe de Estado. Ele destaca que, independentemente do resultado institucional do embate político, a unidade foi e é fundamental. “A criação da Frente Brasil ­Popular foi muito salutar, e os historiadores que haverão de estudar o período vão ter que citar o papel dos movimentos sociais no enfrentamento dessa conjuntura”, diz Raimundo. “Hoje é um período de resistência. Nesse momento, atuar para manter os nossos direitos já será uma grande vitória, para num segundo momento dar um passo a frente.”

“Nós todos nos unificamos para defender a democracia porque sabemos que o golpe é contra a Dilma, contra o Lula, mas principalmente contra os trabalhadores, para retirar direitos, acabar com a CLT, com a política de valorização do salário mínimo, com os benefícios. O golpe é contra os direitos das mulheres, o direito à liberdade, dos jovens, dos negros, dos índios”, resume o presidente da CUT, Vagner Freitas.

“São os Bolsonaros e os Felicianos da vida, e tantos mais, que querem impor uma agenda de retrocesso social e trabalhista no Brasil. Michel Temer é um golpista e entra uma agenda de quem o financiou: a Fiesp, a CNI, a CNA”, diz.  “Os indicativos da Ponte para o Futuro (programa do PMDB) apontam para aquele período que nós derrotamos nas eleições, de privatização, congelamento salarial, fim das politicas públicas”, acrescenta o presidente da CTB, Adilson Araújo.

Para a presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Juvandia Moreira, “os empresários articulam um conjunto de medidas que vão contra tudo o que a gente defende”. “Eles vão mexer na Previdência para aumentar o tempo para a aposentadoria, medidas que pretendem aumentar a terceirização de forma generalizada. As pautas que estão no Congresso nacional são terríveis e, se aprovadas, acabam com categorias de luta e organizadas, que têm direitos. Todos esses direitos estão em risco.”

Consolidado o golpe, o também cientista político Wanderley Guilherme dos Santos defende uma resistência sem tréguas contra o novo poder estabelecido. “Michel Temer é um usurpador e seu governo não deve ser obedecido”, escreveu em seu blog, dois dias antes de o afastamento ser aprovado. “Ou a sublevação social pela democracia é submetida pela força (e aí o golpe, finalmente, será vitorioso), ou a coerção servirá de combustível à sublevação. Então, de duas uma: ou Michel Temer renuncia e o STF convoca novas eleições ou as forças armadas intervirão.”

Com reportagens de Anelize Moreira (Rádio Brasil Atual), Eduardo Maretti e Vitor Nuzzi

almoco_caro_pt.jpgAlmoço caro O PT não ousou aproveitar a popularidade recorde de Lula e das bem-sucedidas gestões de 2003 a 2010 para aprimorar sua política de alianças. Naquele ano, ao indicar Dilma para a sucessão, o partido apostou em privilegiar parceria que se revelou traiçoeira. Reportagem da RdB nº 45, de seis anos atrás, alertou

 

O Brasil surreal visto de fora 

Em abril, o insuspeito Joaquim Barbosa, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, recomendou pelo Twitter que as pessoas assistissem à “excelente entrevista” do jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept, a Christiane Amanpour, da CNN

E comentou: “Nesse vídeo você vai ver algo raro na imprensa brasileira hoje: informação objetiva, clara, sem viés politico”.

Ali estão comentários que escasseiam nos meios tradicionais. A informação, por exemplo, de que mais de 350 deputados enfrentam acusações criminais. Ou a singela constatação de que, na sessão de 17 de abril, parlamentares envolvidos com a corrupção, a começar do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, aprovaram o processo de impeachment em nome do combate à corrupção – Greenwald lembrou que a própria Dilma não era acusada. A “coisa mais surreal” que ele já viu na profissão, conforme afirmou.

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No site da revista alemã Der Spiegel: “A insurreição dos hipócritas”

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Na CNN: “Tempos de tumulto político no Brasil” e “Impeachment antidemocrático de Dilma”

Para o jornalista, embora o PT tenha se envolvido em casos de corrupção, como os demais partidos, o que acontecia no Brasil tinha outra explicação. “Os plutocratas, os ricos, sempre odiaram o PT”, disse. “Essa (impeachment) era a chance deles.”

Mas afastar presidentes por serem impopulares ou por má gestão da economia é um risco para um país,  lembrou. “É uma receita para coisas perigosas, quando você brinca com a democracia, especialmente em um país como o Brasil, que tem uma democracia muito frágil e jovem. É perturbador.”

Com diferentes nuances, publicações estrangeiras também demonstraram preocupação com a situação política brasileira. A sessão da Câmara reforçou essa visão. O The New York Timesobservou que Dilma – que não é acusada de se beneficiar financeiramente – seria derrubada por gente envolvida em corrupção, fraude eleitoral e violações de direitos humanos, “abrindo um debate nacional sobre a hipocrisia” entre os líderes políticos brasileiros.

“A insurreição dos hipócritas”, definiu a revista alemã Der Spiegel. Para a publicação, a Câmara, usando meios questionáveis, pôs o Brasil em uma “robusta rota de direita”.

O francês Le Monde, provocado por leitores, chegou a se questionar sobre um editorial publicado em 31 de março (no qual afirmava que o Brasil não vivia um golpe de Estado), por ter omitido o envolvimento de defensores do impeachment com corrupção, incluindo Eduardo Cunha, e por não abordar com profundidade o papel da mídia brasileira. E citou um relatório de 2013 da ONG Repórteres sem Fronteiras, que chamou o Brasil de “país dos 30 Berlusconis” (referência ao ex-premiê e magnata italiano Silvio Berlusconi), pela concentração no mercado de mídia.

Mesmo a revista norte-americana The Economist, crítica do governo e defensora da renúncia de Dilma, comentou que o impeachment era injustificado pela falta de provas de um crime, parecendo “apenas um pretexto para expulsar um presidente impopular”.

A publicação via um precedente preocupante basear o afastamento em protestos de rua.

Ao comentar o iminente afastamento de Dilma, após a “inenarrável” sessão da Câmara, o diretor do jornal português Público Manuel Carvalho também tinha dificuldades de perceber legitimidade em Temer. “Com uma presidente afastada após ter recebido o mandato de 54 milhões de cidadãos há apenas um ano e meio, custa perceber como poderá ser substituída por um político que 90% dos brasileiros rejeitam e que, se fosse a eleições, obteria apenas 1% a 2% dos votos. Com a crise e o despautério dos políticos a acirrar a raiva, é difícil entender como poderá o Brasil aceitar ser governado por um ex-vice presidente que está envolvido até o tutano em suspeitas de corrupção”, escreveu o jornalista em 19 de abril.

Ao constatar que a descrença na política alimenta a desesperança, ele lembrou que o novo inquilino do Palácio chegou lá com um “precioso empurrão” de Eduardo Cunha. E deu um diagnóstico duro: “Ao contrário do impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, desta vez não há a fé numa redenção da democracia brasileira porque Dilma não está acusada de corrupção nem o vice que se prepara para substituir, Michel Temer, se compara ao estatuto moral de Itamar Franco”.

Bem diferente da chamada de capa do jornal O Estado de S. Paulo em 12 de maio, para o qual um dos desafios de Temer seria “encerrar a era do PT no poder”. Alguns poderiam pensar que o desafio seria governar.