Renato Janine

Fofoca ou informação? A ética na vida das redações

Professor e ex-ministro Renato Janine Ribeiro reflete sobre os dilemas éticos vividos pelos jornalistas em seu cotidiano. E identifica pouca atenção da mídia à educação brasileira

José Cruz/Agência Brasil

Professor de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, Renato Janine Ribeiro tem há muitos anos contato frequente com jornalistas. Durante cinco meses, em 2015, ele experimentou essa convivência sob outra ótica, como ministro da Educação. Antes disso, de 2011 a 2013, Janine ministrou curso de ética na imprensa na pós-graduação da Escola Superior de Propaganda e Marketing, e acumulou reflexões sobre esse universo, que começou a conhecer de casa: seu pai, Benedicto Ribeiro, foi presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo entre 1959 e 1961.

Um problema que ficou agudo é a escassez de reportagens que cubram efetivamente o que acontece no país. Grandes jornais têm um grande desconhecimento do que está acontecendo no Brasil

A experiência no curso resultou no recém-lançado livro A Imprensa entre Antígona e Maquiavel – A ética jornalística na vida real das redações. Organizada por Janine, a obra traz trabalhos selecionados entre os alunos, com abordagens sobre dilemas cotidianos do exercício da profissão.

“O objetivo dos trabalhos, que eu pedi aos alunos, é o que coloca você em xeque eticamente. Pode ser uma ordem que o jornalista recebeu que vai contra a verdade dos fatos, pode ser uma situação imprevista, o caso de uma jornalista que descobre uma mãe de rua que está proibida pela Justiça de ter contato com o filho, que já venceu as drogas, e quer ter contato”, diz Janine. “O que eu queria fazer com os alunos, e acho que eles corresponderam muito bem a isso, era desafiá-los para além das regras burocráticas.”

O jornalista lida o tempo todo com a questão ética, lembra o professor. “Não dá para você pensar a ética sem Antígona”, afirma, em referência à personagem de Sófocles que reage a uma determinação do rei que considera injusta e morre por causa disso. “Uma pessoa que viola a lei conscientemente, que corre riscos.” No caso de Maquiavel – também um pensador ético, observa Janine –, a importância está em pensar nas consequências de seus atos.

Como ministro, Janine diz não ter queixas dos jornalistas com quem conversava, mas constata que a educação não costuma ser prioridade para a mídia, com poucas exceções. Assim, em vez de discutir questões como base curricular, a imprensa parece preferir uma boa fofoca.

Logo no início do livro, o sr. escreve: “Não é fácil ser ético no jornalismo”. Por que isso acontece? O jornalista perdeu uma certa “consciência cidadã”, ou foi pela fragilização como categoria?

São as condições de trabalho do jornalista que acabam colocando, a meu ver, duas questões muito conflituosas entre si: por um lado, o jornalista está o tempo todo, ao narrar suas histórias, suas reportagens, exprimindo valores. Sobretudo hoje no Brasil, quando é muito difícil os jornais separarem a parte de cobertura das notícias e a parte de opinião editorial, o que é uma falha monumental do jornalismo. Mesmo que a rigor seja impossível separar radicalmente juízo de valor e relato do que aconteceu, porque a própria escolha do que você vai relatar já é um juízo de valor, apesar disso você tem de fazer o possível para separar. Costumo dizer que o jornalismo é uma missão impossível: você nao vai conseguir fazer separação radical, mas tem de lutar com todas as forças para efetuá-la. E o jornalismo brasileiro não faz isso, mistura o valor no relato dos fatos, mistura opinião nas notícias, e com isso foge à missão dele. Quando você é jornalista, a sua ética se expressa nas minúcias do seu trabalho. Por outro lado, para esse jornalista que está exprimindo juízo, você tem uma pressão muito forte das empresas, sobretudo quando no nosso país elas decidiram tomar uma determinada posição política em relação ao próprio governo. Isso torna a questão da cobertura jornalística muito delicada. (A jornalista) Barbara Gancia disse há poucos dias que na Band foi proibida ou dissuadida de criticar o presidente da Câmara dos Deputados. Isso é algo incompatível com o jornalismo. Passamos a ter agendas nos jornais que não são do bom jornalismo.

De modo geral, a educação não é uma prioridade dos jornais. Então, acaba sendo mais interessante, mais divertido você fazer uma fofoca, especular, do que entrar na discussão sobre as metas da educação

O livro trata de casos…

No livro que organizei, com trabalhos de um curso de ética para estudantes de jornalismo, você tem relatos complicados. Por exemplo, a cidade onde apareceu um outdoor homófobo, os jornalistas querem criticar, mas o outdoor é de uma seita religiosa que tem negócios com o dono do jornal, que não quer que seja criticada uma flagrante violação dos direitos humanos. Você tem outra história, de uma jornalista que vai a uma praia no Guarujá, onde o acesso ao mar é fechado, e essa praia tem ilustres figuras da República no período Fernando Henrique. Nesse segundo caso, o jornal publica, e a matéria tem repercussões positivas, tanto que o próprio Ministério Público tomou iniciativas visando a abrir o acesso à praia. Mas muitas vezes o jornalista tem de dizer aquilo com que ele não concorda, tem de assumir a camisa do jornal. Quer dizer, você tem duas situações, ele dizer aquilo que não é opinião dele, mas assinando, porque se tornou praxe assinar matéria, então ele assume responsabilidades por algo que não é a convicção dele, e por outro lado você tem também uma dificuldade grande da independência jornalística de apurar os fatos, doa a quem doer.

Havia um pouco mais de contestação dentro da redação contra as ordens do que se chamava de aquário. Hoje, além dessa dificuldade que ele tem, às vezes o jornalista não está mais identificado com o ponto de vista do dono?

Isso não é 100%, mas é frequente. Você tem exceções, que são importantes. Você tem jornalistas, mesmo dentro de jornais conservadores, que fazem uma pauta mais independente. Mas a maior parte dos jornalistas promovidos é dos que se identificam com a linha editorial do jornal. Isso causa um problema. Outro problema é que os jornais foram dando muita importância a colunistas. Em tese, isso é muito bom, porque são vozes diferentes, independentes, às vezes especializadas nos assuntos. Ter um colunista como Drauzio Varella, por exemplo, é um ­luxo. Mas você tem um volume de colunistas que repetem toda semana a mesma coisa. E tem outro problema que ficou agudo, que é a escassez de reportagens, poucas que cubram efetivamente o que acontece no país, na sociedade. Hoje, os grandes jornais têm um grande desconhecimento do que está acontecendo no Brasil. Com exceção do Valor e em menor medida do Globo, você não tem uma cobertura detalhada, uma rede de correspondentes vasta. O Globo tem, cobre melhor o Brasil como um todo, o Valor manda fazer reportagens específicas, como uma sobre educação no Ceará, faz uns quatro anos, que são notáveis, porque permitem conhecer o que de resto não saberíamos. Há um caso famoso de um colunista da Folha que, de férias no Nordeste, depara com um ônibus em que estava escrito alguma coisa como transporte escolar para a zona rural. Isso era uma novidade criada pelo ministro Haddad. Milhões de crianças transportadas todos os dias nesses veículos, e o jornal não sabia. É muito grave você ter um jornal que não sabe o que está acontecendo na educação brasileira, ou na saúde. Quando você vê a discussão de politicas públicas, essa discussão muitas vezes pega uma questão totalmente secundária.

Por exemplo…

A questão da base curricular, que eu lancei. Tinha uma deficiência séria em História que eu tentei corrigir. A área de ­História foi absolutamente impermeável, fez um projeto, a meu ver, errado. Mas a maior parte da discussão foi sobre isso, excetuando mais uma vez o Globo, que dá uma importância grande à educação. Mas, de modo geral, a educação não é uma prioridade dos jornais. Então, acaba sendo mais interessante, mais divertido você fazer uma fofoca, especular, por exemplo, se o ministro vai continuar ou não, se viajou ou não com a presidente Dilma, acaba se tornando quase mais importante do que entrar na discussão de quais são as metas que a educação deve ter. Você tem pouca discussão sobre educação, a não ser quando a discussão já é ideológica. Por exemplo, existe uma tese de que os livros didáticos visam a formar opiniões mais de esquerda… Essa tese é bastante equivocada, até porque o livro mais criticado, mais atacado por isso, foi distribuído pelo governo Fernando Henrique e não pelos governos petistas. Mas essa é uma discussão que acaba ficando mais atraente do que discutir, por exemplo, que tipo de formação você quer do aluno de 8, 9, 10 anos, o que você quer de Matemática, Química, Biologia, História, Geografia, que é a discussão da base curricular, que é muito importante. Significa discutir o que você quer que a criança saiba do mundo, em que universo ela está.

Executivo e Legislativo não estão cumprindo o seu papel, e o Poder Judiciário, que não é eleito está avançando em prerrogativas que são dos poderes eleitos

Como professor, intelectual, o sr. tem contato frequente com jornalistas, em outro tipo de abordagem. Como ministro, o sr. se espantou com o que saía após conversar com jornalistas?

Eu me surpreendia com o que saía na imprensa, não por força de conversas, mas pelo que a imprensa relatava. As conversas que eu tive foram praticamente todas tratadas com fidelidade. Eu tenho muito pouca queixa do jornalismo. Agora, quando você não é da carreira política e assume um cargo de ministro, ou um cargo desses, em que se torna vidraça, gigantesca, você tem uma suscetibilidade maior que um político de carreira, que está acostumado a ser atacado e depois fazer as pazes e se aliar com quem o atacou. Uma pessoa que não é político de carreira, sobretudo um intelectual, leva um choque diante de uma mentira. Então, a mentira assume uma dimensão gigantesca. No meu primeiro fim de semana como ministro, eu vim a São Paulo no começo da sexta-feira para uma agenda de trabalho, e saiu matéria na Folha de S.Paulo dizendo que eu tinha violado uma regra recém-editada pela presidente, que proibia uso de jatinho para voltar para casa. Bom, eu tinha vindo para trabalho. E a notícia acrescentava que não tinham conseguido contato com o ministro. A Folha tem meus telefones, e-mail, há 30 anos ou mais. Então, a notícia era duplamente mentirosa. Nós nos queixamos, eles mantiveram que tinham tentado contato. Fizeram o seguinte: o repórter de Belém, não sei o que ele tinha a ver com Brasília, São Paulo, deve ter telefonado para o MEC, era um sábado, não tinha ninguém, não olhou o site para ver que tinha lá o celular da assessora de imprensa, que está sempre disponível, então, o resultado disso tudo é um absurdo. Você diz uma mentira e fica por isso mesmo. Esse é um caso pequeno, mas me causou um choque. Um ministro político nem dá bola para isso, desmente e sabe que o jornal vai embrulhar peixe. Agora, quando você vem do mundo acadêmico, a mentira, a imprecisão, a deformação da notícia causam um incômodo muito maior. Mais grave do que isso é a experiência do descaso com a informação, mais uma vez com exceção do Globo. Você pode fazer muitas críticas ao império Globo… Não estou falando da TV, mas o veículo impresso e a Fundação Roberto Marinho têm compromisso com a educação.

Do ponto de vista político, a sua passagem pelo ministério, relativamente curta, deixou frustração?

Claro que deixou. Eu assumi sem ter recursos, numa fase de cortes constantes, com pouco apoio do governo. Apesar de a presidente ter falado em Pátria Educadora, não houve um fortalecimento do MEC. Isso criou uma situação difícil de trabalho. E há outro lado que afetaria qualquer pessoa que chegasse lá: foi o momento em que a prosperidade de 12 anos, graças ao boom das commodities etc. chegou ao fim, a um fim brutal. Durante 12 anos, o Brasil teve recursos bem mais fartos, usou bem os recursos, em educação, saúde, desenvolvimento social, e de repente esse dinheiro estancou, acabou. Essa é uma hora muito difícil, porque as pessoas estão acostumadas a gastar mais e mais, fazer projetos o tempo todo, sem pensar no rendimento, na qualidade, no desperdício, que são inevitáveis quando você está em plena expansão. Quando você tem de dar essa volta, a própria base do governo fica contra. Você tem criação de quase 20 universidades federais, mais de 100 campi, uma série de projetos, alguns já em andamento, de construção de campi universitários às vezes em cidades muito pequenas. E de repente nada disso pode ser feito. E aí quando você percebe que não tem como fazer, começa a discutir os critérios e vê que às vezes um passo foi dado sem o passo anterior estar assegurado. Um exemplo: em 2014, ano da campanha eleitoral, teve 730 mil financiamentos do Fies, mas não houve um critério para quais áreas, quais regiões, ou qual qualidade de curso. Essa foi uma das coisas que consegui fazer, e não foi fácil. Eu coloquei como critério o tipo de curso. Tínhamos 16% de financiamentos para Direito, caiu para menos de 10%. Fortaleci Engenharia, saúde e professorado. Não havia critério de notas de curso. Fortaleci os cursos de nota mais alta, 5 e 4. E ­regiões, também fortaleci as menos desenvolvidas. Não havia esses critérios. Desse jeito, com menos vagas, a gente conseguiu dar um preenchimento mais justo.

Para o sr., que é professor de Ética, não é um paradoxo, ou uma ironia, termos um Conselho de Ética da Câmara dos Deputados que não conseguiu punir um deputado que inclusive é réu no Supremo Tribunal Federal? Por que o Conselho não funciona nesse caso?

O Conselho de Ética tenta funcionar, é que constantentemente o presidente Cunha intervém. Agora, por que o Cunha está forte? Porque o Executivo se enfraqueceu muito. Ele adquiriu um protagonismo enorme, com uma pauta que não tem nada de bom para o Brasil. A maior parte dos projetos agrava a crise ou recua na tolerância à diferença. Agora, ele conseguiu isso porque o Executivo está fraco. E como essa pauta dele é poderosa só na aparência, porque não está caminhando para resolver nada no Brasil, o Executivo e o Legislativo ficam fracos, e quem se fortalece é o Judiciário. Nós estamos vivendo um momento em que o Judiciário, especificamente o juiz Sérgio Moro, a Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República estão ocupando um espaço que foi abandonado pelo Executivo e pelo Legislativo. Os dois poderes democraticamente eleitos não estão cumprindo o seu papel, e o poder que não é eleito – faz parte do nosso sistema, tem toda legitimidade – está avançando em prerrogativas que são dos poderes eleitos. Nós temos uma situação muito delicada do ponto de vista democrático. Questões que deveriam ser resolvidas pelo voto popular estão sendo encaminhadas para decisão tribunalícia.

O sr. considera esses meios ditos alternativos de comunicação, como sites e blogs, uma alternativa importante de consumo de informação, em um setor tão concentrado (em termos empresariais)?

Considero. Permitem visões diferentes das que eram, e ainda são, predominantes. Contudo, os blogs de esquerda são ainda muito dependentes da grande mídia. Reproduzem e comentam notícias dela. ­Geram pouquíssimo conteúdo próprio. Por isso, estão muito longe de constituir um “quarto poder” alternativo.