literatura

Saiu da floresta, foi até o mundo e voltou

Thiago de Mello completa 90 anos cantando sua esperança no homem e a preocupação com a humanidade

ALBERTO CÉSAR ARAÚJO/FOLHAPRESS

Quando voltou ao Brasil, depois do exílio na Europa, Thiago argumentou que não queria aprender só com livros e jornais, mas ‘com as águas, os verdes, as estrelas, o chão onde nasci’

Amadeu Thiago de Mello tinha apenas 16 anos quando deixou o Amazonas e embarcou em um navio para o Rio de Janeiro. Na então capital federal – era 1942 –, cursava Medicina e tinha a dúvida comum aos jovens sobre o rumo a tomar na vida. Um amigo de outro amigo conseguiu o telefone do poeta Carlos Drummond de Andrade, funcionário do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (futuro Iphan, instituto), no Ministério da Educação. E deu-se o encontro entre dois poetas, presente e futuro.

Em depoimento para Pollyana Furtado Lima, para uma dissertação de mestrado na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), em 2012, o próprio Thiago conta que Drummond, ao saber de sua origem, “quis saber da minha infância, da floresta, as águas, os rios, de meus pais”. Quando o jovem contou que pretendia largar o curso para se dedicar à literatura, ouviu: “Não faça isso, pelo amor de Deus, pois ninguém vive de literatura no Brasil. Faça seus versos, mas não largue a Medicina”. E contou que mesmo ele, escritor já conhecido, vivia dos ganhos como servidor público.

Thiago ouviu, deixou alguns poemas e foi embora. Dois dias depois, retornou e escutou o veredito. “Você não tem remédio, nasceu com a tara”, disse Drummond, recomendando que ele levasse os textos para serem publicados no Correio da Manhã. Começava a surgir o poeta Thiago de Mello, 90 anos completados em 30 de março. Dele, Manuel Bandeira escreveu se tratar de “um dos grandes da sua geração e de qualquer geração”.

Lirismo

Em texto para uma antologia publicada em 2009, o professor Marcos Frederico Aleixo observa que, no início, Thiago de Mello mostra preocupações existenciais, e em sua primeira obra “expressa o que fizera em vida, quando abandonou no quinto ano um curso de Medicina (sempre promissor em termos financeiros) para se dedicar ao lirismo”. No livro A Lenda da Rosa, de 1956, diz o professor, “já se prenuncia a transição para a vereda definitiva que trilharia, de preocupações sociais”. E Faz Escuro Mas Eu Canto, de 1965, que “marcaria sua adesão definitiva à poesia social”. Ele observa que não se trata, nessa situação específica, de fazer prosa em versos. “Mas de manter-se no fio da navalha da linguagem literária: fazer poesia política, sem deixar de fazer, antes de tudo, Poesia.”

A sua obra mais conhecida, Os Estatutos do Homem, foi escrita pouco tempo depois do golpe de 1964. Em resposta, ele recebeu uma carta de rompimento de Bandeira. Outro amigo, o poeta chileno Pablo Neruda, chegou a recomendar que ele a devolvesse ao amigo – à época, Thiago­ de Mello era adido cultural no Chile. Segundo ele revelou em 2013 ao jornal Folha de S. Paulo, já em 1965, de volta ao Brasil, visitou Manuel Bandeira, que recitou o Poema perto do Fim, de Thiago, e, em um abraço, sussurrou para “esquecer” aquela carta.

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Por recomendação de Carlos Drummond de Andrade, Thiago de Mello levou seus textos para serem publicados no Correio da Manhã

O poema foi uma reação do poeta às primeiras notícias do arbítrio vindas do Brasil. Thiago tambem renunciou ao posto de adido. Os Estatutos ganharam vida própria ao longo dos anos. Em março último, a obra foi relida na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, durante uma homenagem ao poeta. Com direito a um encontro com estudantes, que lembraram das ocupações de escolas no final do ano passado, contra um projeto de reestruturação escolar do governo paulista.

Na história

A presidenta da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Camila Lanes, estava lá. Ficou feliz com o encontro entre a jovem de 19 anos e o poeta de 90, “muito consciente e simpático”. Ela conta que já conhecia um pouco da obra de Thiago na escola e por amigos que gostam de poesia. No primeiro ano do ensino médio, fez um trabalho com base no poema Faz Escuro Mas eu Canto.

“Thiago de Mello conviveu com uma parte muito grande da história do país”, diz Camila. Para ela, o atual momento politico, conturbado, ajuda a refletir sobre o papel de cada pessoa como cidadão. Nesse sentido, acrescenta, Thiago é referência, “por sua militância, na poesia e na vida”.

Em sua dissertação, Pollyana Furtado Lima destaca o fato de Thiago de Mello não ter permanecido em seu estado de origem. “Sem esse deslocamento geográfico e as estratégias adotadas pelo escritor, seria pouco provável a repercussão de sua obra. Da mesma forma, a atividade diplomática no Chile e na Bolívia, as perseguições políticas no período militar, o refúgio nos países da América Latina seguido de exílio na Europa, foram acontecimentos de sua vida que tiveram efeito sobre a sua visão de mundo, a sua criação literária e, sobretudo, a circulação de sua obra em países considerados centros literários mundiais, como a França e a Alemanha.”

E se porventura a dermos ao mundo, tal como a flor que se oferta – humilde luz –, teremos então cumprido a missão que é dada ao poeta. E como são onda e mar, seremos homem e palavra.

(Silêncio e Palavra, 1951)

Em 1951, aos 25 anos, Thiago lançou o seu primeiro livro, Silêncio e Palavra. O mais recente, e segundo ele o último, é de 2015: Ajuste de Contas. Entre um e outro, duas dezenas de obras. Desde a poética engajada de Faz Escuro Mas Eu Canto (1965) e Poesia Comprometida com a Minha e a Tua Vida (1975), há publicações sobre o escritor argentino Jorge Luis Borges e até sobre uma paixão de infância, Arte e Ciência de Empinar Papagaio.

Faz Escuro Mas eu Canto é também o nome de um show, dirigido por Flávio­ Rangel, em meados dos anos 1970, com Thiago declamando e Sérgio Ricardo cantando. Estreou no Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, e correu o país. Eles conseguiram liberar o espetáculo, mas a censura vetou parte dos textos.

“Foi um momento heróico da nossa vida”, lembra Sérgio Ricardo, que inicialmente procurou, além de Thiago, o também poeta Ferreira Gullar, que acabou não entrando no projeto. “Foi um convívio maravilhoso, sem nenhum atrito, um trabalho meio épico. Cada lugar que a gente passava, deixava uma marca.” Segundo ele, mesmo obras censuradas acabavam entrando no roteiro. “Em alguns lugares a gente driblava, fazia mesmo o que estava proibido. Era uma contravenção total”, diz, rindo.

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Imagens da celebração dos 90 anos do poeta, organizada em março pela Fundação Maurício Grabois. Na primeira, cantando com de seus filhos, Thiago Thiago. Na segunda, a homenagem dos estudantes

Para o cantor, compositor, cineasta e artista plástico, aquele foi, talvez, o show mais importante de sua vida. “Não era entretenimento, era guerrilha mesmo. Uma guerrilha cultural. Éramos dois pagãos pelo Brasil”, afirma, considerando Thiago um grande artista de palco. “Ele declamando os poemas é uma coisa arrepiante”, diz Sérgio Ricardo.

Texto e engajamento

Filho e neto de escritores, e vice-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE), Ricardo Ramos Filho destaca tanto a qualidade do texto como o engajamento de Thiago, que conheceu pessoalmente durante a Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2013, quando Graciliano Ramos foi homenageado. “Acho bacana um escritor, poeta, que tenha engajamento político, desde que esse engajamento se faça via obra, pelo texto.”

Ricardo vê paralelos entre as obras de Graciliano e Thiago, embora acredite que o escritor alagoano fosse mais contido em termos de comportamento. “Se você lê um livro como São Bernardo e pega uma figura como Paulo Honório (protagonista da obra), está toda a crítica do fazendeiro, de como ele trata o empregado”, observa.

Ambos enfrentaram problemas com a ditadura – Graciliano com a do Estado Novo e Thiago com a instalada a partir de 1964. Eles chegaram a se conhecer, trabalhando no Correio da Manhã. Nascido em 1892, Graciliano chamava Thiago, de 1926, de “menino”. “Na hora do almoço, ele dizia: vamos, menino, tomar um conhaque lá embaixo”, conta Ricardo, que é da terceira geração de sua família a conhecer o poeta amazonense. Aos 62 anos, agora ele é que é chamado de “menino”.

Madrugada camponesa. Faz escuro (já nem tanto), vale a pena trabalhar. Faz escuro mas eu canto porque a manhã vai chegar.

(Madrugada Camponesa, 1965)

Thiago de Mello saiu do Chile após o golpe que derrubou Salvador Allende, em 1973. Passou uma temporada na Europa e voltou ao Brasil antes da anistia, em 1978. E surpreendeu ao decidir que iria morar não em um grande centro, mas na floresta, de onde não saiu mais.

Ele conta, em entrevista ao Movimento Humanos Direitos (MHuD), em 2009, que antecipou a volta porque achou que estava ficando doido. “Atravessava a ponte sobre o rio Reno, entre Maiz e Wiesbaden (cidade onde Dostoiévski escreveu O Jogador) e sentia cheiro de pirarucu. Cheiro de pimenta-murupi. Sentia falta da fala, do canto, do jeito de viver de minha gente.”

Amigos discordaram da decisão, mas Thiago argumentou que não queria aprender só com livros e jornais, mas “com as águas, os verdes, as estrelas, o chão onde nasci”. Assim mora o poeta, na sua Barreirinha natal, a 300 quilômetros de Manaus e à beira do Rio Andirá.

Sei porque canto: se raspas o fundo do poço antigo de sua esperança, acharás restos de água que apodrece. É preciso fazer alguma coisa, livrá-lo dessa sedução voraz da engrenagem organizada e fria que nos devora a todos a ternura, a alegria de dar e receber o gosto de ser gente e de viver.

(É preciso fazer alguma coisa, 1974)

Foi lá que, como conta, aprendeu a nadar antes de andar. Aos 9 anos, o avô ­Gaudêncio escreveu a ele uma carta, para que o menino estudasse “com vontade”, para se tornar um homem de bem. “Estudar, estudo até hoje, cada dia mais. Ser um homem de bem é que não é fácil, dá um trabalho danado, neste mundo de maldade e ilusão, como o Caymmi canta”, disse Thiago ao MHuD, citando Saudade da Bahia, de Dorival Caymmi.

Também naquela entrevista, Thiago falava da importância da ética no cotidiano. “De uns para os outros. Na vida de cada pessoa. No viver e sobretudo no conviver. E, de maneira corajosa, na ação dos chamados homens públicos, os que têm nas mãos e na cabeça o destino.”

Da eternidade venho. Dela faço parte, desde o começo da vida dos que me fizeram ser até chegar ao que sou. Transporto com a minha vida a eternidade no tempo. Menino deslumbrado com as águas, os ventos, as palmeiras, as estrelas, prolonguei sem saber a eternidade que neste instante navega no meu sangue fatigado.

 

(Eternidade, 1993)

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