cidadania

Ler para entender e conviver

Além de divertir, literatura infantil e infanto-juvenil pode ajudar a promover a diversidade e o respeito

ILUSTRAÇÃO JÚNIOR CARAMEZ

Era uma vez… uma princesa que nasceu príncipe. Em outro reino, uma princesa se apaixona pela costureira que faria seu vestido de casamento. A Princesa e a Costureira e Joana Princesa, da escritora e psicóloga Janaína Leslão, trazem a mesma magia que permeia os contos de fada. A diferença é que suas histórias abarcam uma diversidade muito maior de personagens: uma princesa transgênero que tem uma irmã com deficiência física, outra princesa negra que cai de amores por uma costureira ruiva. Em comum, os dois livros trazem as aventuras de pessoas que se amam, querem viver o amor de forma plena e livre, com o bom e velho final “E viveram felizes para sempre”.

Não são muitos os livros infantis e infanto-juvenis que representam a diversidade social em suas narrativas, nem que busquem, além de entreter, ensinar as mais diversas questões ligadas à cidadania: o respeito ao próximo, o combate ao preconceito, o consumo consciente. Mesmo que ainda seja uma pequena parcela do que se encontra nas prateleiras das livrarias, há um número crescente de obras que abordam essas temáticas.

Um exemplo são os livros do selo Boitatá, da Editora Boitempo, criado no final de 2015 com o objetivo de apresentar temas de interesse social e de cidadania para crianças. Até agora, o selo lançou quatro obras: A Democracia Pode Ser Assim, A Ditadura É Assim, As Mulheres e os Homens e O que São Classes Sociais? Para os próximos meses, devem ser lançados livros que abordarão a prática do bullying, o respeito às diferenças e à diversidade e sobre deficiência física.

Para a editora da Boitatá, Thaisa Burani, é importante que não apenas a literatura, mas todas atividades infantis contribuam para formar um imaginário tolerante e cidadão. “Se o indivíduo não possui nem acredita em valores cidadãos (respeito ao próximo, tolerância, cidadania, justiça social, direitos humanos), de muito pouco adianta o discurso ou a ideologia, por mais bem intencionados que sejam. E a experiência da infância, o ato de ser criança, é onde mais podemos explorar e enriquecer nosso imaginário. Livros, filmes e brincadeiras, além de nos entreter, exercitam justamente isso: a forma como vemos, compreendemos e participamos no mundo. É por isso que uma heroína mulher é importante, é por isso que protagonistas negros são importantes, é por isso que falar de diversidade amorosa e de arranjos familiares diversos é importante, porque tudo isso se soma e também forma o imaginário. Se uma criança cresce entendendo que tudo isso é ‘normal’, que todos são iguais e merecem respeito, ela naturalmente será mais tolerante e cidadã”, opina.

Identificação

Em 2007, a psicóloga Janaí­na Leslão trabalhava questões ligadas à sexualidade, gênero e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DST) e aids com um grupo de adolescentes. Uma das atividades que eles deveriam realizar no final do ano era montar esquetes baseadas em histórias conhecidas, com uma roupagem atual e que abordasse as questões discutidas. “O referencial de final feliz que eles tinham ainda era o dos contos de fadas. Quando conversávamos sobre questões de sexualidade e gênero de pessoas trans ou do amor entre dois homens ou duas mulheres, não tinham nenhum referencial na literatura, muito menos nos contos de fadas. Só pelo noticiário de jornal, que mostra uma lâmpada na cara, uma travesti esfaqueada. Isso me despertou a vontade de escrever. Fui pesquisar e não tinha nada nesse gênero de literatura, com essas temáticas trabalhadas em uma linguagem mais leve e acessível”, lembra.

Foi assim que nasceu seu primeiro livro, A Princesa e a Costureira, escrito em 2009 e publicado em 2015 pela Metanoia Editora. “Ele vendeu bem, superou nossas expectativas, tanto que estamos indo para uma segunda edição e vamos lançar em e-book também. Muitas pessoas, especialmente jovens adultos, me procuram e dizem: ‘Nossa, que maravilha! Queria tanto ter lido isso quando eu era adolescente. Acho que não teria passado por tanto conflito’. Ou então: ‘Eu me senti representada, nunca tinha visto uma princesa negra e ainda por cima lésbica, como eu’. As pessoas me dizem que os contos de fadas com os quais todo mundo sonhava, nunca puderam representá-las. Então, a ideia principal era incluir pessoas que não estavam nas narrativas originais”, afirma a autora, que em maio deve lançar seu segundo livro, Joana Princesa.

Para a pedagoga Daniela Auad, professora de Sociologia da Educação na Universidade Federal de Juiz de Fora, livros como os de Janaína fazem com que as crianças vindas de lares homoparentais se sintam representadas. “Os livros infantis, infanto-juvenis e outras produções na televisão e no teatro mostram para crianças casais compostos por alguém do sexo feminino e alguém do sexo masculino: um homem e uma mulher, um menino e uma menina, um cachorrinho e uma cachorrinha… Mas não se tem usualmente casais compostos por pessoas do mesmo sexo. Esta falta de representação pode fazer com que as crianças que estão em um lar homoparental e, eventualmente crianças e adolescentes que se percebam tendo desejo por pessoas do mesmo sexo, não se sintam representadas”, diz Daniela, responsável pelo prefácio da segunda edição de A Princesa e a Costureira.

Olívia Tem Dois Papais (Cia. das Letrinhas), da escritora Márcia Leite, conta a história de uma menininha muito esperta que tem uma família um pouco diferente e totalmente encantadora: seu pai Raul ama brincar de filhinho e mamãe e quando ela se diz desfalecendo (ela adora esta palavra!) de fome, seu pai Luís vai para a cozinha e prepara deliciosas refeições. A autora afirma que a constituição desta narrativa não se deu por meio do tema (a família homoafetiva), mas sim de uma escolha que potencializa o campo de atuação da personagem principal. “A família homoparental é um tipo de família e ponto final. Se aceitamos que as famílias podem ter diferentes composições, o natural é explorar também nas narrativas as relações afetivas (ou a ausência delas) que as estruturam ou desestruturam, que estabilizam ou desestabilizam essa organização familiar. No caso da família da Olívia, o que tentei evidenciar foram situações de rotina, cuidado e amorosidade recíproca entre pais e filha, independentemente de sua composição.”

Neste caso, os questionamentos da personagem principal estão mais ligados às questões de gênero. “Procurei fazer com que Olívia fizesse perguntas e tivesse dúvidas pertinentes à idade e ao meio social em que vive sobre questões de gênero e não sobre questões de orientação sexual. Olívia deixa claro que se surpreende por um homem saber cozinhar, pentear a filha e cuidar tão bem dela. Esse é um questionamento de gênero e não de orientação sexual. Olívia não questiona porque os pais se amam, ou estão juntos, ou porque não tem uma mãe. Perguntas que também acontecem entre famílias heteroparentais, mas que quase sempre reforçam a noção de gênero dominante (menina faz isso, menino faz aquilo)”, afirma Márcia, também autora de Do Jeito que a Gente É (Editora Ática), em que um dos protagonistas é um menino gay.

Consumo consciente

Além de gênero e sexualidade, também há livros infantis e infanto-juvenis que abordam questões ligadas ao consumo e promovem, por exemplo, reflexões sobre a finitude dos recursos naturais, como é o caso de Eu Produzo Menos Lixo (Cortez Editora). Nele, a bióloga Cristina Santos faz um alerta ecológico para as crianças e contextualiza as mudanças que os hábitos de consumo modernos trouxeram para a sociedade. “Essas questões são contemporâneas e fazem parte de um grande problema mundial. Tentar apresentar esses assuntos numa linguagem que pudesse ser facilmente compreendida pelo público infanto-juvenil e que estimulasse o leitor a refletir sobre a sua maneira de consumir foram as grandes motivações para a preparação desse livro. Além disso, as ilustrações muito criativas de Freekje Veld foram fundamentais para apresentar o assunto de maneira mais descontraída, deixar o livro atraente, além de auxiliar na tarefa da compreensão de um tema considerado tão importante nos dias atuais”, diz a autora.

Com Bicicleta Amarela, previsto para ser lançado em abril, o designer recifense Igor Colares trata de forma lúdica sobre a importância da bicicleta para a mobilidade urbana. Em 2012, o autor lançou Bezerro Escritor, sobre o consumo do leite a partir do ponto de vista de Bombom, um bezerro desmamado que apresenta como o processo de industrialização atinge de forma cruel as vacas e seus filhotes.

O que motivou Igor a escrever as duas histórias é fazer com que as crianças veganas (que não consomem alimentos derivados de animais) e que os filhos de ciclistas e cicloativistas se sentissem representados na literatura. “Minha ideia não era convencer as pessoas a passarem a andar de bicicleta ou deixar de tomar leite. O que eu queria com os dois livros é que a galera que anda de bicicleta e a galera que não toma leite se identificassem. Para eles, é muito raro encontrar conteúdo em quase qualquer lugar, e na literatura infantil não é diferente. É como se as pessoas que estão engajadas nesses movimentos fossem meio alienígenas para o senso comum. A minha ideia era criar conteúdo com o qual eles se identificassem”, enfatiza.

A professora universitária Bárbara Eduarda Nóbrega Bastos, de 36 anos, leu a história de Bombom para o filho. “Sou vegana e queria um livro que me ajudasse a passar pro meu filho a realidade dos animais explorados para produção de alimentos numa linguagem adequada para a idade dele. Existem poucas publicações com essa temática, então o livro de Igor foi muito bem-vindo. Considero muito importante para a formação cidadã que as crianças conheçam os problemas da sociedade e entendam seu papel no combate a essas questões. Acredito que os temas devem ser apresentados de acordo com a idade, pois o objetivo não é deixar a criança assustada ou triste, então, deve-se levar em conta o que ela está preparada para aprender”, opina a mãe de Mateus Bastos Barretos, de 6 anos.

Entreter, ensinar, conscientizar

Estes são alguns exemplos de como a literatura também pode contribuir com a construção de um mundo melhor, mais tolerante, com menos ódio e mais respeito às pessoas e suas diferentes formas de viver. Thaisa Burani, do Boitatá, acredita que há muito a ser feito para a publicação de mais livros voltados para os pequenos cidadãos. “O mercado se verga muito facilmente a qualquer coisa que dê retorno financeiro alto e imediato – basta ver as gôndolas das livrarias abarrotadas de bobagens com personagens de grandes franquias da animação”, diz. “Mas não podemos negar toda a riqueza da história da literatura infanto-juvenil brasileira. Há mais de três décadas já tínhamos, por exemplo, uma Ana Maria Machado enaltecendo a beleza das meninas negras, ou mesmo um Pedro Bandeira e seu tão incisivo e politizado É Proibido Miar, sem contar a vasta obra de Tatiana Belinky, com todas as experimentações de linguagem e o caldeirão cultural que ela oferecia.”

“Ler um livro sobre uma menina que tem dois pais ou duas mães, ou um pai apenas, ou nenhum dos dois, apenas amplia a condição de percepção do mundo, de si e do outro. Acredito que a literatura que fala/toca em temas considerados difíceis (não apenas sobre a homoafetividade) provoca espaços de conversa e de reflexão que acabam atuando como um acolchoado simbólico para a compreensão do mundo e de si mesmo junto aos pequenos e grandes leitores. Na minha opinião, isso ajuda os leitores a serem melhores pessoas e melhores cidadãos”, resume a escritora Márcia Leite.