américa latina

Construir demora, destruir não

Situação argentina ilustra como sólidas conquistas sociais, que levam anos para serem alcançadas, desmancham no ar quando o poder que controla o capital detém a caneta da Presidência da República

ELTAN ABRAMOVICH/AFP/GETTY IMAGES

Macri governa na base da canetada: foram quase 30 Decretos de Necessidade e Urgência emitidos em um período de menos de dois meses, sem passar pelo crivo do Legislativo

Foram dias turbulentos na Argentina desde a assunção do empresário Maurício Macri à Presidência: o dólar passou a ser nivelado, e nivelado pelo mercado, o que o fez saltar dos oficiais nove pesos para 16; a moeda nacional perdeu pelo menos 40% do seu valor; pelo menos 100 mil trabalhadores já passaram para a lista de desempregados; a chamada Lei de Meios começa a ser esquartejada; e um protocolo de segurança dita rumos repressivos a manifestações públicas. O balanço de governo que fazem hoje algumas lideranças populares é bem diferente daquele sacolejo festivo de Macri na sacada da Casa Rosada, em 10 de dezembro.

Foram contra estas medidas que votaram quase 50% dos argentinos, em 2015. Sim, eram previsíveis. “Nos primeiros dias, havia uma discussão sobre a velocidade com que aplicariam sua política, se gradualmente ou de maneira impactante. Estamos governados por uma força de direita clássica, profundamente liberal em termos econômicos, e profundamente autoritária em termos políticos. Não nos surpreende o que se vê”, argumenta Martín Sabbatella, ex-titular da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (Afsca) e candidato a vice-governador de Buenos Aires nas mais recentes eleições.

Sabbatella, aliás, sentiu na carne o autoritarismo político do governo macrista, que dissolveu a entidade criada pela Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual (Lei nº 26.522, de 2009) e subordinou suas atividades a um novo organismo, a Entidade Nacional de Comunicações (Enacom). Tudo isto por meio de um dos quase 30 Decretos de Necessidade e Urgência (DNUs) emitidos em um período de menos de dois meses, sem passar pelo crivo do Legislativo. Esta foi apenas uma faceta dos decretos que vão de encontro aos esforços de quem ajudou, durante anos, a construir o que seria a Lei de Meios.

Concentração midiática

Presidenta do Fórum Argentino de Rádios Comunitárias e integrante da Coalizão por uma Comunicação Democrática, Mariela Pobliese descreve alguns dos impactos do esfacelamento da normativa. “Uma das coisas que o decreto permite é a compra e venda de licenças, coisa que até (o ex-presidente-general Jorge Rafael) Videla proibiu. É voltar a transformar em negócio as telecomunicações, e o que é pior: em um negócio para os grandes capitais. Estamos falando de algo que é substancial para a democracia, para a soberania política e econômica argentina”, indigna-se.

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Antes que o macrismo completasse 100 dias no poder, a Central de Trabalhadores da Argentina computou 38 mil demissões em âmbito estatal e outras 31 mil no setor privado, principalmente na área da construção civil, indústria automobilística e alimentícia

Ela e mais de 300 representantes de organizações vinculadas à comunicação participaram do primeiro congresso nacional da coalizão, na capital do país, em 3 de março. Ali era possível ter a dimensão de como foi ampla e objetiva a conquista da Lei de Meios no governo de Cristina Kirchner, que assegurou a vontade coletiva sistematizada em 21 pontos elaborados a partir de 2004. A convocação para atualizar as diretrizes aponta claramente o alvo: “Denunciamos a atitude do Poder Executivo que, por meio dos decretos 13/2015 e 267/2015, viola a divisão de poderes que estabelece a Constituição, ao mesmo tempo em que pretende apartar o Estado do respeito aos pactos de direitos humanos e desconhece os fundamentos da liberdade de expressão como direito fundamental”.

Segundo Mariela, o enfrentamento aos dois decretos de urgência se darão em diferentes níveis – e o trabalho já começou, tanto por meio dos sindicatos como por articulação política com deputados e senadores para que os derrubem. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos já havia incluído na agenda um debate sobre a Lei de Meios argentina, no dia 8 de abril.

Para Sabbatella, os meios de comunicação sob o modelo da concentração cumprem papel essencial na blindagem das medidas impopulares do Executivo e têm outro aliado. “Usam também o ´partido judicial´, uma parte do Judiciário como partido, a serviço da estratégia da direita, para atender a eles, atacar as forças políticas e suas lideranças. Somado ao ‘partido midiático’, pretendem desestabilizar, desgastar e mentir. O que escapa dos dois partidos controla-se com a repressão, como se viu em Buenos Aires, La Plata e Santiago Del Estero, com perseguições permanentes: a estigmatização de trabalhadores em estatais e de militantes politicos, associado-os a uma gordura que precisa ser extirpada.”

Princípios impopulares

Trabalhadores dos setores público e privado ocupam quase o mesmo patamar percentual de desempregados na Argentina, e torna no mínimo duvidoso o discurso de Macri de que a “cada dia, estaremos um pouco melhor a partir de 10 de dezembro”. Ou ainda quando o agora presidente garantiu que faria o país surfar numa “pobreza zero”.

O vice-presidente da Central de Trabalhadores da Argentina (CTA-Autônoma), Ricardo Peidro, lamenta. “Tal qual prevíamos, temos uma situação que não é alentadora. Pelo contrário. Existe um marco de demissões associado à deterioração do salário, ocorrido tanto pela desvalorização da moeda como pela inflação.”

Antes que o macrismo completasse 100 dias no poder, a central computou 38 mil demissões em âmbito estatal e 31 mil no setor privado. Ele especifica que “estão concentrados na esfera nacional e municipal, pelo setor público, e principalmente na área da construção civil, indústria automobilística e alimentícia, pelo setor privado”. Estes números crescem regularmente, já tendo alcançado 100 mil poucos dias depois destas declarações.

As informações sistematizadas pelo Observatório de Direitos Sociais da CTA-A até 4 de março levam em conta tanto dados informados pelo Instituto Nacional de Estatística e Censo da Argentina (Indec) como registros oferecidos por organizações de classe. Os dados são considerados subnotificados, conforme explicita o próprio organismo.

“Quando o Estado produz demissões, demonstra qual é o caminho para a atividade privada: que não vai haver problemas quando demitirem, porque é uma questão economicista, econômica, de maximizar os lucros por meio das demissões”, diz o sindicalista.

Histórico militante sindical – ajudou a montar a CTA – e ativista de movimentos contra a pobreza, Víctor De Gennaro tem uma observação precisa a respeito desse cenário: “A tendência é assustar, utilizar as demissões para baixar os salários. Como nos disse o ministro de Economia, (Alfonso) Prat-Gay, ‘os dirigentes sindicais deverão escolher (durante as negociações com a patronal) entre ter trabalho e ter melhor salário’.

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Arrocho De Gennaro: ‘A tendência é assustar, utilizar as demissões para baixar os salários’

O cenário é parte de um conjunto impopular de ações que favorecem as grandes corporações, conforme explica De Gennaro. “O governo produz, sem anestesia, uma transferência imensa de riqueza para grupos econômicos. A primeira medida de Macri é oferecer 128 milhões de pesos ou 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) ao setor agrícola exportador. Por sua vez, oferece aos aposentados e às crianças do programa de assistência básica um aumento emergencial de 400 pesos a cada um, num total de 3,2 milhões, ou 0,1% do PIB”, compara.

Público e privado

“Rodrigo era nosso facilitador. Ele acompanhava o domínio das crianças sobre os netbooks como ferramenta pedagógica. Mas este ano nós não vamos poder contar com ele.” Sem muitos detalhes, a diretora da escola pública Bernardino Rivadavia esclarece pais e mães de alunos que receberam do governo federal o pequeno computador, como parte do programa Conectar Igualdade, nos anos anteriores. Há cinco anos, era por meio dele que se entregava um computador por aluno e professor das instituições públicas de ensino. A plataforma pedagógica foi desenvolvida pela equipe governamental, e é utilizada a partir do assessoramento técnico-pedagógico à comunidade escolar feita pelos facilitadores.

A lacuna é reflexo da demissão dos mais de mil funcionários que atuavam na inclusão digital dentro dos colégios de todo o país há cinco anos. Professor de Matemática e mestre em Políticas Educativas, Gustavo Romero é um deles. Coordenava exatamente as atividades de outros colegas que visitavam as escolas para acompanhar professores e alunos no processo de aprendizagem na capital federal. “Por sorte, tenho outras fontes de renda – dou aulas e escrevo livros. Mas a maior parte da minha equipe tinha esse trabalho como único salário, e estão sem receber desde janeiro. É desesperador”, diz Romero, de 34 anos, que trabalhou no Conectar por dois anos.

Romero e os demais demitidos estavam contratados em condição vulnerável, admite. Ou como destaca De Gennaro: precária. “Não houve nenhuma greve geral durante os primeiros nove anos de governo de Cristina Kirchner, mas foram cinco nos últimos três anos. Para se chegar a esse nível de consenso, é porque havia muita insatisfação”, pondera. A título de comparação, entre as várias manifestações contra medidas do governo Macri, já houve uma greve nacional de trabalhadores em estatais (em 24 de fevereiro) e outra promovida por um conjunto de centrais sindicais (29 de março).

Há que se levar em conta a grande quantidade de demitidos no setor privado no arranque da gestão macrista. E ainda uma repressão policial violenta aos protestos. A marca Cresta Roja, de frangos produzidos pelo Grupo Rasic, localizada na Grande Buenos Aires, anunciou sua falência em dezembro e passou a ser administrada pelo consórcio Ovoprot Internacional. Antes disso, o piquete dos funcionários, que chegam a 5 mil, terminou em 22 de janeiro com a arremetida de balas de borracha desferidas pela polícia.

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Mariela: Macri liberou a compra e venda de licenças de telecomunicações, coisa que nem a ditadura permitiu

O Grupo 23 de comunicação também não reservou boas notícias aos funcionários de seus veículos no encerramento do ano. Diretor de Redação do jornal Tiempo Argentino, Gustavo Cirelli diz que o diário que ajudou a fundar em 16 de maio de 2010 teve suas atividades suspensas por determinação de seus donos em 5 de fevereiro. “O principal responsável não é o governo federal, mas os empresários que o levaram a essa situação. O que o governo federal está fazendo com o jornal é mais ou menos exemplificar o que acontece com um periódico de características do campo popular, que é o que representamos. Por isso, não há nenhum sinal de que o Estado vai estar do lado dos trabalhadores”, define o jornalista.

O que passou com o Conectar Igualdade também acontece de forma muito semelhante com o Tiempo. Os 170 trabalhadores que ficaram desempregados acumulam dívidas desde dezembro, além de parte do 13º salário. E mesmo com a blindagem de informação feita pelos grandes meios de comunicação, os protestos e batalhas judiciais com apoio sindical estão de pé. “O conflito foi se aprofundando com a mesma intensidade em que se tornava desesperadora a situação”, relata Cirelli, para quem ainda existe alguma margem de negociação com o Ministério do Trabalho.

Aos 46 anos, com um par de experiências no ramo, Cirelli acha estranha a venda do Grupo 23 para um empresário tão desconhecido e que ainda não apareceu para dizer a que veio. Ele lamenta a situação vivida pela maioria dos colegas, alguns já sem condições, por exemplo, de pagar o aluguel. “O que me domina todos os dias é a angústia e a raiva. Por ver a mim nesta situação, mas, sobretudo, a meus companheiros, não podendo viver dignamente como fruto do seu trabalho, como deve ser”, desabafa o portenho.

Ele conta que o jornal produziu reportagens significativas para a agenda pública nacional, entre as quais uma investigação sobre os laços entre o então candidato Maurício Macri, e seu primeiro nome para deputado federal, Fernando Niembro. Laços tão vis entre os setores público e privado que fizeram Niembro abdicar de sua candidatura. Houve ainda reportagem de fôlego sobre os negócios com papel-jornal, que envolvia grandes corporações midiáticas e suas relações com governos militares.

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Sabbatella: os meios de comunicação sob o modelo da concentração cumprem papel essencial na blindagem das medidas impopulares do Executivo e têm outro aliado. ‘Usam também o ‘partido judicial”

Cirelli diz que todos os trabalhadores do jornal têm uma história de militância, seja em organizações de direitos humanos, seja em movimentos sindicais ou político-partidários. Ele mesmo reserva muitas críticas ao governo kirchnerista, mas faz questão de ressaltar: “O que houve foi um governo de enfrentamento com o poder real na Argentina. E o poder real não é o poder político, são os grupos concentrados, transnacionais, os grandes exportadores”.

O peronismo em sua faceta kirchnerista continua esperançoso, de acordo com Martín Sabbatella. “Como qualquer força política que perdeu as eleições, voltamos a nos organizar, a nos reunir com quem foi empoderado por Cristina, a receber os que querem se organizar. Vamos disputar as próximas eleições”, conclui, enquanto segue em uma sequência de encontros pelo país.

Uma nova força à direita

Víctor De Gennaro e Martín Sabbatella adotam análise semelhante ao se referirem ao cenário político-partidário na Argentina contemporânea e que tem Maurício Macri como seu mais novo representante.

O fim do bipartidarismo que se deu em várias nações latino-americanas em meados dos anos após 2001 se deu de modo diferente na Argentina, relaciona De Gennaro. “Enquanto o bipartidarismo foi superado por forças de centro-esquerda em países como Brasil, Uruguai, Venezuela e Bolívia, PJ (Partido Justicialista) e UCR (União Cívica Radical) foram superados muitos anos depois e por uma força política de direita, que é a Proposta Republicana (PRO)”.

Sabbatella recorda que “a direita já esteve presente na Argentina e marcou o rumo do país em determinados momentos históricos, assim como na região sul-americana como um todo”. A diferença, diz ele, “é que a direita atual é atendida por seus próprios donos, que formaram um partido”.

Em décadas anteriores, como a de 1970, quando do terrorismo de Estado, e a de 1990, a direita assumia a condução do Estado por meio de um “partido militar” ou por meio da “colonização de partidos populares”, a exemplo de Carlos Menem, originalmente do Partido Justicialista ou Peronista, e Fernando De la Rúa, advindo da UCR. A conformação dessa força à direita é uma novidade política importante, alerta Sabbatella. No entanto, ele acrescenta que se deve levar em conta que detém “o mesmo pensamento, a mesma lógica, a mesma voracidade, os mesmos interesses econômicos”.

A coalizão de partidos que levou Macri à prefeitura de Buenos Aires em 2007, com mandato até 2015, é a mesma que passou a se chamar PRO e o levou à Casa Rosada.

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