Educação

Governador, a escola é nossa

Com apoio de pais e professores, movimento histórico de estudantes protagoniza lição de cidadania e democracia ao ocupar ruas, avenidas e suas próprias escolas em defesa da educação pública

Danilo Ramos/RBA
Danilo Ramos/RBA
Prioridade. Alunos da Fernão Dias, em Pinheiros, zona oeste, primeira escola ocupada na capital, em 10 de novembro

Perto de acabar, 2015 entra para a história como o ano em que os alunos da rede estadual paulista fizeram da própria escola a grande trincheira em defesa do ensino público de qualidade – termo que a maioria deles só conhece de ouvir falar. Contra o fechamento de 94 escolas em todo o estado, a extinção do ensino médio noturno em centenas de unidades e o desemprego de professores e demais servidores, a comunidade protagonizou um movimento inédito. E resistiu à tentativa do governo de Geraldo Alckmin (PSDB) de reduzir a presença, e os investimentos, do Estado no setor – por meio de um pacote que tentou empurrar à população sem debate com nenhum setor afetado.

Na terceira semana de novembro, quando os alunos estavam envolvidos com trabalhos, provas e exames para ingresso na faculdade e as férias, a defesa da escola ganhou importância maior. Organizados em comissões de limpeza, preparo das refeições, contato com a imprensa, controle dos portões e organização de atividades culturais, todas constituídas a partir de assembleias, eles cuidavam das mais de 115 escolas ocupadas em várias regiões.

De proporções surpreendentes, as ocupações incomodaram o governo. Em reunião de conciliação em 19 de novembro, no Tribunal de Justiça, o secretário da Educação, Herman Voorwald, chegou a propor a suspensão da reorganização do ensino paulista até 4 de dezembro, mediante a desocupação imediata dos prédios. Pela proposta, as instituições receberiam, em até 48 horas, um material explicativo sobre o projeto e sobre como ele atingiria as unidades.

Depois disso, pais, alunos e professores discutiriam com a diretoria de ensino e apresentariam uma nova proposta. Questionado pela Defensoria Pública, Voorwald não garantiu que as propostas de estudantes, pais e professores seriam acatadas pelo governo. “Se surgir alguma proposta melhor que a nossa, por que não?”, limitou-se a dizer, admitindo que a política de reorganização não será suspensa. Foi a senha para que as organizações estudantis decidissem não recuar, mantendo o movimento.

Neste 4 de dezembro, o governo estava acuado pela repercussão negativa tanto da “reorganização” quanto da “guerra” declarada pelo Palácio dos Bandeirantes na tentativa de intimidar o movimento – o que a incluiu a intensificação da violência policial contra manifestações e o endurecimento de diretorias de ensino contra ocupações.

Antes mesmo de essas medidas “antipáticas” repercutirem na opinião pública, uma pesquisa feita pelo Datafolha indicava que a aprovação à gestão Alckmin estava em queda livre, com a maioria da população se manifestando contrária à “reorganização” e a favor dos movimentos dos estudantes. Alckmin anunciou, então o adiamento do projeto, com o compromisso de debater mas escolas envolvidas o processo, ao longo de 2016. E o secretário Voorwald pediu demissão, numa manobra que procurava transferir a ele o ônus da impopularidade.

Ocupações

Na ocupação da escola Ana Rosa Araújo, na Vila Sônia, zona oeste de São Paulo, havia sessões de cinema ao ar livre, shows, teatros, saraus e leituras de poesias – uma vida cultural inédita por ali. “Ocupar era nossa única alternativa de conseguir continuar estudando aqui. Foi o que fizemos”, conta o estudante do primeiro ano do ensino médio José Vinicius Soares, lembrando da extinção do ensino médio na escola e a transferência compulsória e automática dos alunos para outras unidades. “Precisamos sim de uma reorganização, mas que ela seja discutida com a comunidade escolar, e não imposta”, completa a colega Marissol Dias, interrompida por uma moradora do bairro, que de dentro do carro encostado em frente gritava: “De que vocês estão precisando na ocupação?”.

Os estudantes, que logo pediram produtos de limpeza, contam com a solidariedade de vizinhos, professores e ex-alunos, que fazem doações muitas vezes compartilhadas com outras ocupações. “Os pais, que apoiam desde o início, são bem-vindos. Podem comprovar a ordem aqui e incentivar a resistência, já que também não querem nossa mudança de escola”, diz José Vinicius.

Na escola Godofredo Furtado, em Pinheiros, também na zona oeste, os alunos começavam a organizar as doações, ainda sobre as mesas. “A diretora não entregou as chaves da cozinha, nem do banheiro que tem chuveiro, mas nossa escola está ocupada”, diz uma jovem, que preferiu não se identificar. “Temos medo da superlotação. Como vão colocar mais gente nas salas de aula que já estão tão cheias?”, questiona outro aluno. Enquanto ele limpava uma mesa, uma mulher chegava com uma sacola com produtos de higiene. “Obrigada, meninos! Vocês estão dando uma lição para todos nós.”

Na escola Oscavo de Paula e Silva, em Santo André, na região do ABC, os saraus também se incorporaram a uma rotina que os alunos classificaram de “manter a educação”. Pelo termo, em resposta a versões que atribuíam aos ativistas o interesse em depredar a escola, entenda-se uma troca lúdica de conhecimentos e leituras, a divisão de tarefas para manter a casa em ordem, a divisão de papéis em igualdade de condições entre meninos e meninas, o veto ao sexismo, ao machismo, ao preconceito. “Estamos aqui não só em reação à desorganização que o estado quer impor, mas em defesa da escola que queremos”, dizia um aluno.

Dignidade à frente

Mãe de uma estudante de 17 anos, da ocupação da escola Fernão Dias Paes­, em Pinheiros, a socióloga e professora universitária Rosemary Segurado não esconde o orgulho apesar do “coração na mão” durante o período mais tenso, com a escola sitiada por Força Tática e Tropa de Choque da Polícia Militar. “A gente sabe de outras experiências que a truculência da polícia é o diálogo que o governo conhece. Como cidadã e como professora, vejo jovens contra o fechamento de escolas. Uma aula de cidadania para nós ao defender o direito a educação pública. Isso de maneira organizada, pacífica. Só tenho a ficar feliz num momento em que a escola pública ocupa o debate.”

Em Mauá, também no ABC, na escola estadual Maria Helena Colônia, um pai visivelmente emocionado, visita a ocupação, afirmando não aceitar que tirem alunos de uma escola a 600 metros da porta de casa para jogá-los dois quilômetros e meio mais longe. “E também não posso aceitar o que uma diretora vem falar para mim, que ela tem 13 anos de serviço e que a preocupação no momento é com sua aposentadoria. A minha é com ele”, diz, olhando para o filho, do ensino médio. “Como vai ser o futuro dele e dos outros é a minha preocupação.”

Na Saúde, bairro da zona sul da capital, a dona de casa Márcia Clemente acompanhava os dois filhos até a porta da Escola Estadual Raul Fonseca quando foi informada da decisão da ocupação, em 17 de novembro. “Eles merecem o nosso apoio. Estou muito orgulhosa do meu filho. Ele disse que vão separá-lo dos amigos, transferir para outra escola onde não conhece ninguém. Chega de engolir tudo o que vem do governo. Esses jovens vão ser os eleitores de amanhã. A gente tem uma esperança, e a nossa esperança são eles. Vamos apoiar”, afirma.

Conhecido pela atuação em defesa dos direitos humanos, o padre Julio Lancellotti estendeu a solidariedade aos alunos. “Nós temos um modelo de ensino que perpetua as desigualdades, mas esses jovens estão lutando pelo direito de poder conviver. Estão indo contra este modelo. Essa foi a aula mais importante que eles tiveram no ano: a aula de desobedecer, de enfrentar o poder, de questionar e de descobrir a força que têm.”

A solidariedade entre os estudantes foi outra marca da jornada de ocupações. Presidente do grêmio estudantil e repórter do Saboia News, Pedro Vieira, aluno do segundo ano do ensino médio na Escola Estadual Padre Saboia de Medeiros, na Chácara Santo Antônio, zona sul da capital, esteve no Fernão Dias e na Cefam Diadema. “Fui levar o apoio e solidariedade do Saboia a todos esses colegas que vão resistir até o governador voltar atrás”, diz o estudante.

Os 800 alunos do Saboia, a maioria trabalhadores, moradores da favela Real Parque, Capão Redondo e Guarapiranga, foram alguns dos primeiros a ir às ruas, com apoio da direção. “Devemos continuar mobilizados, alertas a quaisquer manobras do governo”, diz a diretora Denise Elisei. Para Denise, o temor se justifica pelo fato de a escola estar no centro de uma luta de classes. Moradores antigos ou que herdaram suas casas naquele que foi um bairro operário defendem a escola e matriculam ali os seus filhos. “Para os que se mudaram depois da valorização da região, com prédios de alto padrão, melhor fechar e fazer aqui um shopping”, diz.

A desativação de cursos noturnos, uma das principais críticas dos alunos, fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante a estudantes trabalhadores ou aprendizes o direito de acesso ao ensino noturno. O estatuto prevê ainda que irmãos não sejam separados em abrigos nem na escola – o princípio do direito à convivência familiar –, um outro aspecto presente na separação das escolas por ciclos únicos de ensino. Assim, irmãos maiores não estudarão com os menores nem poderão mais acompanhá-los, criando um problema para os pais. O projeto de Alckmin desrespeita ainda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), espécie de constituição do setor, que determina que todo processo de reorganização deve envolver a participação de alunos e pais no processo de construção de politicas educacionais.

Além do direito à educação, os alunos querem também o direito à participação. “Muitos diretores de escola não incentivam nem respeitam os grêmios estudantis. Além disso, o movimento estudantil nem sempre consegue autorização para entrar na escola”, diz o advogado Ariel de Castro Alves, consultor em direitos humanos, infância e juventude e segurança pública, que acompanha de perto a reação da comunidade ao pacote supostamente pedagógico de Alckmin.

No final de setembro, quando já tinham vazado listas das escolas que seriam extintas, os alunos perceberam que, em 2016, estariam sendo transferidos compulsoriamente para outras unidades, longe de suas casas, e que seriam separados de seus professores. Surgiram então manifestações a princípio externas, que logo se espalharam por ruas e praças, até tomar grandes avenidas, como a Paulista, na capital, chegando às portas da sede do governo estadual, no Morumbi.

Reação

Castro Alves considera que o movimento que culminou com a ocupação das escolas em várias regiões do estado, ameaçadas ou não de fechamento – sem contar escolas técnicas, em apoio – foi uma das mais importantes reações da sociedade à postura autoritária que sempre pautou a atuação do governo de Geraldo Alckmin. “A reação veio assim que tomaram conhecimento das mudanças. Embora tenham contado com apoio dos pais, professores, movimentos e sindicatos – nem teria como ser diferente, já que precisavam de transporte e outros recursos –, os alunos são os protagonistas.”

Para ele, a falta de diálogo levou à ocupação da escola Diadema, no município do ABC, e o movimento começou a crescer a partir da Fernão Dias. “Quando o estado cerca uma escola, impondo um estado de sítio, o movimento começou a se alastrar. Na tarde do primeiro dia de ocupação, a polícia queria invadir a escola e levar alguns adolescentes para a delegacia. Só não levaram porque recorremos a diversas instâncias, inclusive à ouvidoria da polícia”, diz.

Em 13 de novembro, o juiz Luís Felipe Ferrari Bedendi, da 5ª Vara da Fazenda Pública, não acatou pedido do governo para reintegração de posse da Fernão Dias, deixando claro que a reivindicação dos estudantes configurava política pública e não disputa pela posse do espaço. Além de suspender a reintegração, Bedendi estendeu a decisão para todas as escolas da capital paulista, atendendo a um recurso impetrado pelos advogados do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado (Apeoesp), da Defensoria Pública e do Ministério Público.

Na tarde do dia seguinte, houve violência policial contra alunos e professores que ocupavam a Escola Estadual José Lins do Rego, no Jardim Ângela, zona sul da capital. Sem mandado expedido pela Justiça, policiais ignoraram decisão judicial da véspera e ordenaram a desocupação. Um professor foi agredido, machucado e levado preso para o 47º Distrito Policial, no Capão Redondo. As agressões ocorreram no chamado “Dia E”, dedicado a reuniões em todas as escolas para esclarecer a comunidade sobre as mudanças, as transferências de alunos e até mesmo sobre o eventual fechamento da unidade.

A princípio, a data incluía a participação dos professores. Porém, com o apoio aos estudantes e às manifestações, o governo mudou de ideia. As diretorias de ensino soltaram circular no meio semana, desconsiderando o dia como letivo, razão pela qual alunos e professores não poderiam participar da reunião. A cobertura dos atentados em Paris chamou a atenção de muita gente, mas não escondeu a violência na zona sul. Naquele mesmo sábado, a Escola Estadual Mary Moraes, no Morumbi, havia sido ocupada. E na segunda-feira seguinte, foram 13 novas unidades espalhadas pela capital, Região Metropolitana e interior.

O governo que não consultou pais, estudantes, professores, diretores, conselhos tutelares e outras instâncias de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes na elaboração de seu projeto, continuou intransigente. Na noite de 9 de novembro, quando perceberam que não poderiam renovar matrículas na Escola Estadual Diadema, os alunos deram início à ocupação. Foi a primeira. Na manhã seguinte, a Fernão Dias Paes, em Pinheiros. Para o estudante Júlio César Máximo, da unidade do ABC, nada havia sido combinado. Mas também não se podia falar em coincidência. Os estudantes, que seguiam sem ser ouvidos pelo governo, precisavam apenas de um “gatilho” para a ocupação.

“Os pais estão apoiando a nossa manifestação, que é contra o fim do ensino médio aqui, que vai prejudicar estudantes e muitos professores. A maioria deles não vai seguir para a outra escola. Ninguém sabe para onde vão. Temos um elo com nossos professores”, diz Júlio. Durante a entrevista, ele era interrompido por pais que vieram trazer colchões e alimentos. Outros vinham saber se os estudantes precisavam de algo, e havia ainda os que queriam se juntar ao movimento.

O impulso para mais ocupações veio da presença ostensiva da PM na Fernão Dias, que impediu a entrada de advogados e observadores de direitos humanos, sob a alegação de garantir a integridade de todos. “Só quem não conhece escolas e estudantes pode dizer um absurdo desses para quem tem experiência no acompanhamento aos direitos humanos da população carcerária”, diz Ariel de Castro Alves. Para ele, os excessos demonstram o despreparo do estado autoritário para lidar com situações em que é confrontado pela sociedade. “Um governo que abre cadeia, defende a redução da maioridade penal, a ampliação do tempo de permanência de jovens infratores nos sistemas socioeducativos e que criminaliza a juventude.”

No dia 17, o juiz Bedendi suspendeu novamente as liminares que ameaçavam as escolas Salvador Allende Gossens e Fernão Dias Paes, agendando a negociação para dois dias depois. A medida, considerada mais uma vitória importante do movimento, abriu precedente para todas as demais ocupações. No dia 23, os desembargadores da 7ª Câmara de Direito Público desautorizaram quaisquer pedidos de reintegração por entenderem que a questão é muito mais ampla.

Para Castro Alves, o juiz deixou claro que se decidia pelo direito da criança e do adolescente e não pela posse da escola ao Estado. “Esperamos que a decisão seja parâmetro para os juízes de outras cidades. Verdadeira aula de direitos humanos, foi um tapa na cara do governador”, diz. “Além disso, decidiu que a Tropa de Choque da polícia não poderia ser usada em nenhum processo de reintegração de escolas”. Outra vitória foi o recuo do governo ao anunciar que a Escola Estadual Augusto Mélega, na zona rural de Piracicaba, no interior, continuaria em atividade, e a decisão do Tribunal de Justiça de proibir o fechamento da Braz Cubas, em Santos, no litoral sul, especializada no atendimento de alunos com deficiência.

Durante as ocupações, houve tentativas de intimidação, como telefonemas de dirigentes de ensino para os pais acusando alunos de quebrar escolas e colocar diretores em cárcere privado, quando nenhum dano ou ameaça foi registrado. Ou mesmo proibição de advogados na escola ocupada. O que se assistiu, até aqui, foi a luta pelo que é dos estudantes. “Além da família, eles têm a escola”, diz Castro Alves.

Com reportagens de Cida de Oliveira, Sarah Fernandes e ABCD Maior

De governo que não dialoga se deve duvidar

O mesmo governo estadual que em 2015 asfixiou o mais longo movimento grevista dos professores, durante três meses, sem negociar nem salários, nem condições de trabalho, pode fazer o mesmo em relação às reivindicações dos alunos. Ou seja, deixar que o movimento dos estudantes seja desgastado, minguado pelo tempo, pelo cansaço ou mesmo abatido pelas demonstrações de força policial – que bate em professores e alunos sentados dentro de uma escola simbolicamente ocupada.

“Mesmo que isso aconteça, o governo de Geraldo Alckmin já saiu desgastado e amedrontado com o movimento protagonizado pelos estudantes que se levantaram contra a imposição de seu projeto de reorganização”, diz o procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo e integrante do Ministério Público Democrático Plínio Gentil.

De acordo com ele, de um governo que decreta sigilo nas investigações sobre o Metrô, Sabesp e da própria atuação da polícia, que “deu uma banana para os professores”, deve-se sempre duvidar. Sobretudo diante de sua influência sobre setores do Judiciário na busca por criminalizar um movimento social que não é crime. “Fazer reforma educacional fechando escola é a mesma coisa que dizer que se faz reforma agrária tirando terra”, compara Gentil.