américa latina

Argentina: não tem mágica; é o Estado, hermano

Mote do kirchnerismo nas eleições de 25 de outubro expõe diferença entre o governo e seus opositores. É a política que conduz a economia; e para mudar a vida das pessoas, o Estado tem de agir

Gabriel Martinho/RBA

Os 12 anos de kirchnerismo foram de forte contraste com o neoliberalismo da era Menem e deixaram marcas

“Não entendo muito de política, sou uma trabalhadora.” As palavras da chilena Elizabeth del Carmen Calderón, de 61 anos, soam algo familiar. Muitas pessoas se mostram avessas a comentar política. Mas basta esticar a conversa para perceber que elas sabem, sim, reconhecer o que querem para elas e o que não querem. Bety vive na Patagônia argentina desde a década de 1970. Casou-se, teve três filhos e se dedicou ao trabalho em casas de família. “Passamos momentos difíceis, criei meus filhos dentro do possível e hoje desfruto minha aposentadoria e meus netos”, diz. Puxa na memória momentos difíceis dessas quatro décadas e compara com o momento político decisivo do país.

“O segredo da presidenta Cristina Kirchner é ser uma mulher segura, trabalhar bastante, cuidar de sua saúde, dedicar-se ao conhecimento e ser honesta”, define, ao explicar o favoritismo do candidato Daniel Scioli – apoiado por Cristina – na eleição presidencial de 25 de outubro. Radicada no país, Bety está entre os cerca de 32 milhões de pessoas que vão às urnas. O sistema eleitoral argentino prevê, antes da votação decisiva, as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso). A primária foi adotada após uma reforma eleitoral em 2009. Participam da eleição geral candidatos que tenham alcançado pelo menos 1,5% dos votos na primária.

Pelo filtro das prévias de 9 de agosto passou em primeiro Daniel Scioli, governador da província de Buenos Aires. O candidato da Frente para a Vitória (FpV) alcançou 8,5 milhões de votos (38,5%). Em segundo ficou Mauricio Macri, prefeito da cidade de Buenos Aires e ex-presidente do Clube Atlético Boca Juniors, apoiado pelas principais forças de oposição ao atual governo. A coligação Cambiemos obteve 5,4 milhões de votos para Macri e 1,3 milhão para os outros dois candidatos, somando 30,1% do total.

Se as eleições oficiais fossem naquele dia, Scioli ficaria a apenas 1,5 ponto percentual de liquidar a fatura em turno único, direito conferido ao mais votado que abre 10 pontos percentuais sobre o segundo colocado. A chapa Unidos por uma Nova Argentina (UNA), do ex-deputado kichnerista Sergio Massa, em terceiro com 20% da totalização, pode ser o fiel da balança neste outubro – ou em 22 de novembro, se houver segundo turno. Qualquer que seja o vencedor, dará início a uma nova fase, depois de 12 anos de Néstor e Cristina Kirchner. Cristina assumiu depois da morte do marido, em 2007. Néstor havia chegado à Casa Rosada em 2003, inaugurando um novo período de estabilidade política e econômica. O resultado favorável nas Paso confere legitimidade à hipótese de vitória de Scioli em primeiro turno.

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Legado pós-neoliberal

O cientista político e professor da Universidade de Buenos Aires (UBA) Sergio De Piero, de 46 anos, acredita que a votação que faltou ao candidato oficial não é um objetivo muito difícil, mas que somente o início de outubro trará elementos para uma compreensão exata do cenário. De Piero explica que os problemas com a inflação e outros próprios de 12 anos de uma mesma força no governo poderiam fazer crer que a FpV teria mais dificuldades eleitorais. “O fato, entretanto, é que nunca se registrou um crescimento notável dos candidatos da oposição. E quando começou mesmo a campanha eleitoral os atuais ocupantes da Casa Rosada demonstraram superioridade sobre a agenda política. Os temas que a sociedade mais discute são os que o oficialismo tem proposto”, avalia o cientista.

O professor de Filosofia Miguel Núñez Cortés, de 73 anos, tem visão semelhante. Cortés começou a militância sindical aos 17 anos, na Unión Obrera Metalúrgica (UOM) e teve atuação sabotada pelos golpes de Estado de 1966 e de 1976. Atualmente, leciona na Universidade Del Salvador (Usal), a mais antiga instituição privada do país. Segundo ele, o cenário se tornou mais favorável ao kirchnerismo quando ficou visível o projeto de mudança levado a cabo pelo atual governo, em vultoso contraste com o discurso da oposição. Por mudança, neste caso, assinala o professor, entenda-se o rompimento com o pensamento neoliberal que levou o país a “condições trágicas”.

A era de Carlos Menem começou em 1989 com promessas de prosperidade. Menem ancorou o peso ao dólar, como um dos alicerces de combate à hiperinflação – qualquer semelhança com o que o Brasil faria cinco anos depois não seria coincidência. A paridade causou na classe média a sensação de poder aquisitivo forte. Atraiu monstruoso investimento estrangeiro, em meio a um radical programa de reforma do Estado e de privatizações de serviços públicos, da saúde às aposentadorias, das companhias de petróleo e gás às ferrovias, dos correios à telefonia, da geração e distribuição de energia à água. A presença do capital externo privado ajudou no controle da inflação num primeiro momento. Mas a economia dolarizada não teve lastro para não afundar após as crises do México, da Ásia e da Rússia. O país destruiu sua força produtiva e os preços mais altos da aventura neoliberal foram pagos pela população, com desemprego acima de 20% e empobrecimento brutal.

Aos 36 anos, Pablo Urra, filho caçula de dona Bety, firmou-se na atividade de tatuador. E carrega discurso mais engajado no trato da política. “A diferença entre os últimos governos e as alternativas liberais é clara. Ficou demonstrado que os lucros não são importantes para serviços e bens públicos. Este governo recuperou empresas nacionais, criou novos serviços, investe nos estudantes. Há uma melhora notória”, acredita. Pablo conta que seus sobrinhos receberam na escola pequenos computadores, ferramenta de inserção social e ao mundo da informação. E enfatiza: “Anos de conquistas dos trabalhadores foram destruídos em poucos meses pelo neoliberalismo. Carlos Menem cavou a fossa e o (Fernando) De La Rúa nos enterrou”, lembra, referindo-se ao sucessor de Menem, que renunciaria dois anos depois, em dezembro de 2001.

O sobrinho de Pablo, Hernan Urra, de 18 anos, tem uma bolsa mensal do governo para se dedicar ao esporte paraolímpico. Viaja uma vez por mês mais de mil quilômetros desde a cidade natal, Cinco Saltos, na província de Rio Negro, até a capital argentina, onde treina no Centro Nacional de Alto Rendimento Desportivo. Já conquistou medalhas nacionais e internacionais. “Se não houvesse esse estímulo, seriam muitos talentos como o dele desperdiçados”, garante o tio, saindo da densa análise política para o arroz-com-feijão.

FOTOS: Télam e Gabriel Martinho/RBAargentina1.jpg
Investimentos na malha ferroviária, regulação das comunicações contra o oligopólio, controle de preços da cesta básica, valorização das aposentadorias, campanhas de vacinação. Kirchnerismo não descuidou da infraestrutura nem do social

Papel do Estado

“Não foi mágica”, chancelam as propagandas governamentais. Segundo Miguel Cortés, essas são palavras significativas. “Isso coloca o preto no branco, chama à consciência e à memória. A oposição, em uma cegueira política, responde aos interesses internacionais, entre eles os fundos abutres”, avalia. “A população não é boba e tem memória.”

O professor de Filosofia observa ainda a longevidade da combinação de avanços sociais com estabilidade institucional. Para ele, economia estável, distribuição de renda e consolidação democrática são faces bem-sucedidas de um mesmo projeto. “O modelo eleitoral, que inclui as Paso, é uma demonstração disso. A celebração de acordos coletivos de trabalho e sindicalização (CCT) – foram mais de 1.500 ante 200 há 12 anos – também. A valorização do salário mínimo em mais de 1.300%, idem”, diz. “A recuperação dos fundos dos aposentados e pensionistas se viu reafirmada quando se decidiu restaurar a administração dos recursos dos trabalhadores que estavam em mãos do setor privado.”

O noticiário transpira o ambiente eleitoral. A mídia portenha mergulha na disputa. Há denúncias, críticas ou exaltação a favor ou contra qualquer candidato, de acordo com a afinidade editorial do grupo de comunicação. Miguel Cortés não estranha que os grandes grupos de comunicação procurem desconstruir o peronismo em sua faceta atual e dominante, o kirchnerismo, e se alinhe com “as correntes neoliberais que assolam o mundo”. Para ele, esse “oposicionismo onipresente no que ainda chamam de jornalismo” é que faz com que a vantagem da candidatura oficial não seja maior e mantenha a imprevisibilidade do que sairá das urnas.

Mais consumidor do que analista de notícias, Pablo Urra receia que “os meios dominantes”, no momento decisivo das eleições, convençam muita gente. “Nunca vi tanta falta de respeito a uma figura presidencial, como fazem com Cristina Kirchner. Boa parte da população ainda é muito vulnerável. Escrachos e acusações pessoais aos membros da Casa Rosada são constantes, inclusive feitos por profissionais da imprensa. Mas eles mesmos acabam sendo alvo de processos judiciais e desmentidos – em algumas situações, em menos de 24 horas.” Segundo Pablo, a oposição consegue propagar discursos “cruéis” com objetivo de dividir a população entre “os que merecem e os que não merecem” políticas públicas.

Técnico administrativo da Universidade Nacional de Mar Del Plata, Gabriel Alberto Esain concorda com o poder de fogo da aliança imprensa-oposição, mas o minimiza. “Houve um nível de mudança favorável, dado pela veemência fraudulenta posta em agredir o oficialismo. Só que a realidade superou a ficção”, acredita.

A população assume também o papel de comunicadora ao ocupar as ruas com cartazes, pinturas e mensagens de diferentes teores. E se coloca como contraponto para identificar questões sociais que não estejam na pauta midiática. O governo de Cristina Kirchner captou essa demanda e estrategicamente estreitou a proximidade com os grupos sociais críticos ao neoliberalismo, como aponta Miguel Cortés. “Simplesmente se iniciou uma campanha de difusão do que o governo estava fazendo, como testemunho de uma tarefa ocultada pelos meios de comunicação hegemônicos.”

Pablo Urra é categórico: não se deve dar o braço a torcer. “O modelo que temos hoje não necessita ser destruído, e isso está evidente que o fará Macri. Ele é um privatizador compulsivo e isso não é teoria, basta olhar a capital argentina.” O filho de dona Bety resume como a era Menem se refletiu em sua vida. “A destruição da minha família se deu nos anos 1990. Meu pai perdeu o trabalho, perdemos a casa e tudo conspirou para a separação dos meus pais”, lembra. Fazem parte dessa época o abandono dos estudos e o início de atividades alternativas para garantir seu sustento, como desenhar, pintar, tocar pistão. “Trabalho desde os 14 anos. Acredito que hoje um garoto dessa idade tenha melhores oportunidades do que as que eu tive, sem precisar se sacrificar. Só pude voltar a estudar em 2001, numa universidade privada”, conta Pablo.

Miguel Cortés vê em seu país uma completa ausência de qualidade política entre os que assumiram o lugar de opositores. E, para ele, a oposição jamais vai carecer de um projeto político, uma vez que se sustenta sob o discurso predominante no mundo neoliberal, tendo sua faceta mais visível na Europa. “Mas outra coisa é como mostram o que vendem. Aí está radicada sua falha: a inabilidade política, apesar do extraordinário respaldo interno e externo que recebe.” Gabriel Esain também não acredita que falte projeto por parte da oposição. “O que existe é um projeto que não seduz o povo, e por isso a oposição prefere nem apresentá-lo.”

O cientista político Sergio De Piero acrescenta que a incapacidade da oposição de inserir novos temas para o debate chega a facilitar a campanha da Frente para a Vitória. “Todos os candidatos têm defendido maior presença do Estado, inclusive na empresa petroleira; expressam concordância com a Casa Rosada em relação a políticas sociais voltadas a setores mais pobres etc. Falam, finalmente, mais de continuidade do que de mudança, exceto quando estão em conferências fechadas a seus grupos, onde aí sim se referem a ajustes.”

CTA/DivulgaçãoFito Aguirre
Fito, da CTA: “Na Argentina, como no Brasil, temos de potencializar a vida democrática com o voto e no cotidiano”

O pulo do gato

O secretário de Relações Internacionais da Central de Trabalhadores da Argentina (CTA), Adolfo Aguirre, valoriza os avanços sociais em seu país, mas pondera: “Ainda existem muitos níveis de pobreza e muita gente sem acesso a direitos fundamentais, como habitação digna, saúde e educação públicas e gratuitas que precisam expandir”. O sindicalista acredita também que o próprio governo divide as organizações sindicais no país, por não respeitar as decisões dos trabalhadores­ sobre como se organizar. Ele considera, entretanto, que o sistema democrático é o espaço mais apropriado para se avançar nas demandas do mundo do trabalho. “Estamos vivendo o período mais longo de democracia no nosso país. E isso significa que reafirmamos a importância do voto popular para melhorar as condições de quem busca trabalho, de quem trabalha e de quem já trabalhou. Os trabalhadores protagonizaram a construção da democracia”, defende.

Fito, como é conhecido, ressalta ainda que a CTA apresentou aos candidatos as demandas dos trabalhadores para os próximos anos, e que não têm relação apenas com o sistema laboral, mas com a qualidade de vida das pessoas. “A Argentina é um país rico e tem grande importância no Cone Sul, assim como o Brasil. Temos de potencializar a vida democrática tanto com o voto como no cotidiano”, explica, defendendo o diálogo entre governos e atores sociais como prática imprescindível para a definição de um ambiente pós-neoliberal sustentável política, social e economicamente. A central enfatiza a necessidade de se avançar na integração do continente, para além do Mercosul. “Não adianta ganhar reconhecimento internacional sobre possíveis mudanças no modo de como pagar as dívidas, porque não é justo que o povo pague dívidas imorais e ilegítimas”, diz.

Miguel Cortés acredita que esse entendimento está presente no kirchnerismo. “Enquanto o mundo ocidental seguia na direção de sua autodestruição social e política, a Argentina, pela voz de Cristina Kirchner, viu no G20 a necessidade de consolidar o nosso mercado interno”, explica. “Para isso, criou fundos contracíclicos e apoiou de imediato as pequenas e médias empresas, como garantia de oferta de mão de obra, com salários orientados a proporcionar uma vida digna às famílias dos trabalhadores e à classe média nas áreas de serviço e intermediação produtiva.” Cortés diz ainda que, como parte desta estratégia, foi impulsionada uma maior participação de bancos privados na concessão de crédito a essas empresas que quisessem investir e a pessoas físicas. “A política industrial propiciou tanto a fabricação de materiais e ferramentas quanto a necessidade de mão de obra intensiva e especializada”, avalia.

O professor menciona, nessa direção, a recente aprovação pela Organização das Nações Unidas (ONU) de uma iniciativa proposta pela Argentina a partir da guerra­ com os fundos abutres, que operaram para inviabilizar um acordo de refinaciamento da dívida pública e carimbar no país o rótulo de caloteiro – o que num mundo dominado pelo sistema financeiro e as agências de classificação de risco poderia arrasar qualquer política de investimentos. “Os fundos converteram o país em referência na luta contra a financeirização imposta pelos centros mundiais de poder hegemônico”, diz.

Resolução aprovada pela ONU estabeleceu princípios básicos para guiar a reestruturação de dívidas soberanas, resultado de mais de um ano de atuação diplomática. Ainda no campo da política externa, Cortés cita como “histórica” a liderança dos governos pós-neoliberais do continente na criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), surgida de maneira incipiente desde a década passada, e que em dezembro do ano passado inaugurou sua sede em Quito, no Equador. O bloco regional havia perdido vigor nos últimos tempos, mas voltou a ganhar impulso tendo como proposta a consolidação de um parlamento continental, instalado em Cochabamba, Bolívia, e um banco de fomento, o Banco do Sul, com sede em Caracas.

“Trata-se de um movimento na direção de uma cidadania sul-americana para 400 milhões de pessoas. Isso inclui direito a passaporte único, a trabalho, a homologação de títulos universitários, e a proteção jurídica”, destaca o professor. “Enquanto a política tiver domínio sobre a economia, existem possibilidades de inserir aspectos que promovam a evolução e o crescimento democrático das nações. Quando é a economia que governa, tudo se subjuga a ela – é assim, por exemplo, com o caso dos imigrantes, seres humanos que são coisificados e tratados como um contingente.”