MUNDO

Quando migrar é a única escolha

Acirramento de conflitos, antigas crises não resolvidas e omissão dos países ricos fizeram com que em 2014 o número de refugiados no mundo fosse o maior desde a Segunda Guerra Mundial: 59,5 milhões

THE ITALIAN COASTGUARD/MASSIMO SESTINI

A trajetória do camaronês Njtu Armstrong Atifarq começou há pouco mais de quatro meses, quando ele deixou seu país para viver na República Dominicana. Saiu de casa não em busca de vida melhor, salários mais altos ou para estudar em uma universidade. O objetivo do jovem de 22 anos, que juntou as últimas economias, trancou a faculdade de História e Geografia e partiu para a América era simplesmente salvar sua vida. Só neste ano, Atifarq perdeu diversos familiares e amigos, inclusive o pai e a mãe, devido a conflitos armados do grupo islamita nigeriano Boko Haram, autor de massacres na fronteira entre Camarões e Nigéria. “Estou tentando salvar minha vida aqui. Lá as pessoas estão se matando todos os dias”, diz. “Eu sei que a vida na América Latina também não é fácil, mas no meu país não tinha mais jeito. Pelo menos aqui não fui discriminado por ser africano, negro ou cristão.”

Seu plano original era ir para a República Dominicana encontrar um amigo, em um voo que partiu de seu país, com escalas no Marrocos e em São Paulo. Na última parada, foi impedido por falta de documentos de seguir para o país caribenho. Teve de ficar. Depois de um mês vivendo em uma ala especial do Aeroporto de Guarulhos, chegando a dormir no chão, conseguiu visto de refugiado, por um ano. A documentação definitiva está em análise no Ministério da Justiça. Atifarq vive na Casa do Migrante, no centro de São Paulo, ligada à Igreja Católica. Deixou dois irmãos mais jovens, de 15 e 18 anos, que espera trazer quando juntar dinheiro. “Estou procurando trabalho. Estou feliz por Deus ter me dado esse lugar, mas todos os dias apenas acordo, como e durmo. Preciso estar ocupado, ser produtivo.”

Histórias como a de Atifarq são cada vez mais recorrentes, no Brasil e no mundo. O acirramento de conflitos na Síria, no Iraque, na Ucrânia e na República Centro-Africana, somado a antigas crises ainda não resolvidas, como na Colômbia e na Palestina, fizeram explodir o número de refugiados no mundo. Desde a Segunda Guerra Mundial, o total de pessoas obrigadas a deixar suas casas devido a guerras e conflitos nunca foi tão grande: 59,5 milhões, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Isso acontece em um momento delicado, em que países europeus em crise estão reduzindo os recursos para refugiados e endurecendo os processos migratórios.

No ano passado, 14 milhões de pessoas foram obrigadas a deixar suas cidades pela primeira vez, fugindo de conflitos, desastres naturais ou epidemias – quatro vezes mais do que em 2011. Os países que mais recebem pedidos de refúgio são Rússia, Alemanha, Estados Unidos e Turquia. Mais da metade dos refugiados (53%) são sírios (3,9 milhões), seguidos de afegãos (2,6 milhões) e somalis (1,9 milhão).

“Chegamos a esse ponto por responsabilidade de toda a comunidade internacional, por incapacidade, enquanto conjunto de nações, de prevenir e solucionar conflitos. A responsabilidade é de todos, mas não é incorreto dizer que os países mais desenvolvidos têm maior capacidade de resolver essa situação – por seu poder econômico e pela influência política internacional”, afirma o porta-voz do Acnur, Luiz Fernando Godinho.

“Quem costuma mediar esses conflitos é o Conselho de Segurança da ONU, que se encontra engessado; os países membros têm direito a veto, podem barrar alguma intervenção pacífica para controlar um conflito, como o envio dos capacetes azuis, por interesses econômicos”, diz o professor José Blanes, da Universidade Federal do ABC (UFBAC). “A China e a Rússia tinham negócios com a Síria, o que impediu que o conselho interviesse no início.”

A jurisprudência internacional já admite o conceito de “responsabilidade de proteger”, um movimento que os países ricos devem fazer de intervir em conflitos e acolher refugiados. “A responsabilidade de proteger é uma obrigação dos mais ricos. Que resposta Etiópia ou Ruanda podem oferecer? E a Alemanha ou a França?”

Caminhos do refúgio

A maior presença de refugiados não está nos países ricos. De acordo com o Acnur, 86% das pessoas obrigadas a fugir vão para países menos desenvolvidos. O acirramento do conflito na Síria fez da Turquia o país que mais abriga refugiados no mundo (1,6 milhão), à frente do Paquistão, há anos o primeiro lugar devido aos históricos conflitos políticos no Afeganistão, que antes liderava o êxodo. “Os refugiados saem por suas próprias pernas, carregando suas coisas, para os países vizinhos. Poucos têm como pegar aviões, por exemplo, para o Brasil. Quem consegue um veículo, como uma carona em caminhão, já é sortudo. E rezam para conseguir cruzar a fronteira, senão ficarão acampados até poderem entrar”, diz Blanes.

Os Estados que têm fluxo mais intenso costumam montar nas fronteiras centros de recepção e triagem, onde são identificadas crianças sozinhas, famílias desmembradas e casos de atenção a saúde, nutrição e higiene. Feito esse atendimento, eles são alojados em tendas emergenciais e só depois vão para os campos de refugiados, que ficam em regiões mais distantes das fronteiras por questões de segurança. “Contamos com parcerias com organizações não governamentais para as tarefas e construir barricadas, estradas, abrigos e para fazer os cadastros, o que hoje é muito tecnológico, com pulseiras de identificação e coleta das impressões digitais”, diz Godinho, do Acnur. “Os campos de refugiados funcionam como cidades: há serviço de saúde, escolas e atividades de criação de emprego e renda. Existem campos com 50 mil pessoas ou mais há mais de 15 anos.”

Acolhimento

O crescimento do número de refugiados no mundo não deixou de fora o Brasil: o total de solicitações de refúgios ao governo brasileiro aumentou de 1.165 em 2010 para 25.996 em 2014, segundo o Ministério da Justiça. Vivem em território brasileiro 7.700 mil refugiados de 81 países, vindos sobretudo da Síria, Colômbia, Angola e República Democrática do Congo.

“Os deslocamentos são muito associados à dinâmica dos conflitos. Verifica-se no Brasil a chegada de pessoas da África e do Oriente Médio, mas esse não é um perfil histórico. Por muito tempo, a maior entrada era de pessoas pela fronteira com a Colômbia. É natural que nesse momento São Paulo e Rio de Janeiro, por terem os maiores portos e aeroportos, passem a receber a maior quantidade de refugiados”, diz Godinho. São Paulo soma 3.809 pedidos. O número aumentou 1.000% entre 2010 e 2014. A capital é a cidade com mais solicitantes (3.276), seguida por Campinas (218) e Guarulhos (178).

“Apesar do crescimento, ainda não sabemos o que significa o drama do refúgio. Os refugiados não são os haitianos que chegam pelo Acre, os jovens centro-americanos que tentam cruzar a fronteira dos Estados Unidos. Os refugiados são viúvas, idosos sozinhos, crianças órfãs. São os mais vulneráveis entre os vulneráveis, sem chance de sobreviver se não migrarem”, explica José Blanes, da UFABC. Metade dos refugiados do mundo é formada por crianças e adolescentes até 18 anos.

Para não submeter os filhos de 4 e 6 anos ao desgaste do refúgio no Brasil, o operador de câmera haitiano Jean Roxy Simeon, de 35 anos, decidiu tentar começar a vida sozinho em São Paulo antes de trazer a família da República Dominicana, onde vivem há 18 anos, sem sequer conseguir documentos de permanência – nem para os filhos, que nasceram no país. “Fugimos de gangues paramilitares que assassinam haitianos por preconceito. Em um dia, matam cinco, seis, e ninguém faz nada. Não há nenhuma segurança. Estou aqui muito preocupado com minha mulher e meus filhos”, diz, mostrando uma foto da família no celular. “Todos os haitianos que têm um pouco de condições estão saindo, porque muitos morrem nesses ataques. É muito racismo. Como pode eu viver 18 anos em um país e não ter nenhum documento de lá?”

Simeon aguarda documentação permanente de refugiado a ser expedida pelo Ministério da Justiça, em um processo que pode levar anos. Apesar da postura do Brasil quanto às migrações ser considerada “exemplar” e “muito moderna” pelas Nações Unidas, o crescimento no número de pedidos excedeu a capacidade atual do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça. O órgão consegue atender apenas 15 por dia.

“A obrigação constitucional é nossa e vamos fazer o que é nossa responsabilidade. Existe o problema e nós vamos enfrentar. Neste momento, estamos fazendo uma análise do que pode ser feito. Se você vai para a Alemanha, muitos refugiados ficam reclusos, se para os Estados Unidos, são deportados. É esse tipo de modelo que queremos bancar?”, questiona o diretor-adjunto do Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça, Paulo Guerra, durante debate promovido pelo Acnur em São Paulo.

“A legislação brasileira é avançada e abriga uma declaração ampla de refúgio. Por força da legislação criou-se o Conare em 1997, que faz com que haja uma resposta efetiva do Estado para esses pedidos. O Brasil garante aos refugiados livre acesso ao território nacional e aos serviços universais, como saúde e educação. Isso é muito positivo”, avalia Godinho. “É importante ressaltar o papel que a sociedade tem no acolhimento dos refugiados. Ninguém é um refugiado porque quer. O refugiado é uma pessoa como eu ou você, que trabalhava, estudava e vivia normalmente, e por motivos muito graves foi obrigada a deixar seu país. Essa compreensão é muito importante para que a integração ocorra da melhor forma possível.”

Conflito na Síria

Teve início em 15 de março de 2011, durante a Primavera Árabe. O governo liderado com mãos de ferro pelo partido Baath há quase 50 anos reprimiu os protestos com violência, obrigando os manifestantes a reagir. O regime do presidente Bashar al-Assad passou a controlar as grandes cidades e as estradas mais importantes do país e tem usado a fome e a miséria para punir a população civil.

Em 2012, A Cruz Vermelha e a ONU classificaram os conflitos como guerra civil e começaram a cobrar aplicações do Direito Humanitário Internacional para investigar crimes de guerra. Porém, as missões diplomáticas têm fracassado. De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, no primeiro trimestre de 2014, pelo menos 140 mil pessoas morreram – 7 mil crianças e 5 mil mulheres.

Afeganistão e o refúgio

Há quase 30 anos em conflitos civis, o Afeganistão ainda vive os resquícios da ofensiva dos Estados Unidos, em 2001, sob o governo de George W. Bush, aliado à organização armada muçulmana Aliança do Norte e de outros países ocidentais, como Reino Unido, França e Canadá. O objetivo era derrubar o regime talibã e encontrar Osama bin Laden e líderes da Al-Qaeda, acusados pelos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. A ação militar ocorreu à revelia das Nações Unidas e deixou milhares de mortos.

 

Mapa refugiados

América: A população refugiada diminuiu em torno de 5%, totalizando 769 mil pessoas, sobretudo por uma revisão nos números de colombianos deslocados na Venezuela.
A Colômbia continua sendo um dos recordistas em número de deslocados, somando 6 milhões de pessoas até o final do ano passado.
A violência de gangues urbanas na América Central foi um dos principais motivos de os Estados Unidos receberem no ano passado 36,8 mil pedidos de refúgio a mais do que em 2013, totalizando 121,2 mil – crescimento de 44%.

Oriente Médio e África do Norte: O agravamento do conflito na Síria fez do Oriente Médio a principal região do mundo de origem e recebimento de populações deslocadas por conflitos e perseguições.
A guerra na Síria obrigou 7,6 milhões de pessoas a se deslocar dentro do país e 3,88 milhões a buscar abrigo em países vizinhos.
O Iraque registrou 2,6 milhões de novos deslocados internos, totalizando 3,6 milhões de pessoas no final de 2014.

Europa: O número de refugiados que se deslocaram para a Europa totalizou 6,7 milhões no final de 2014, crescimento de 52,3% em um ano.
O continente atingiu o recorde de refugiados que atravessaram o Mediterrâneo, sempre em condições precárias: 219 mil pessoas.
Quase 25% dos refugiados da Europa são sírios e estão na Turquia. Os conflitos na região oriental da Ucrânia levaram 800 mil pessoas a se deslocar dentro do país e outras 271,2 mil a solicitar refúgio para a Rússia.
Alemanha e Suécia recebem a maioria das solicitações de refúgio da União Europeia.

Ásia: É uma das principais regiões do mundo em termos de deslocamento forçado. Só em 2014, foram registradas 9 milhões de pessoas deslocadas, 31% a mais que em 2013.
A Síria ultrapassou o Afeganistão e se tornou o principal país de origem de refugiados no
mundo.
Mianmar registrou deslocamentos contínuos ao longo de 2014, alcançando 479 mil pessoas.
Irã e Paquistão são dois dos principais países em recepção de refugiados.

África Subsaariana: Somou 3,7 milhões de refugiados e 11,4 milhões de deslocados internos, sendo 4,5 milhões deles só em 2014. Os principais países de origem são República Centro Africana, Sudão do Sul, Somália, Nigéria e República Democrática do Congo. A Etiópia substituiu o Quênia como principal destino de refugiados na região, e é agora o quinto maior no mundo.

O Brasil: O país tem hoje 7,7 mil pessoas refugiadas, de 81 países. O número de solicitação de refúgios ao governo brasileiro chegou a 25.996 em 2014. A maioria vem da Síria, seguida por Colômbia, Angola e República Democrática do Congo.