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A música não pode parar

Prestes a completar 20 anos, a Orquestra de Cordas da Grota enfrenta uma crise de financiamento que ameaça o seu futuro

A Orquestra de Cordas da Grota: patrocínios são pontuais, para ações como a compra de instrumentos e a construção da sede <span></span>Katunga: “Não consigo entender esse preconceito com a música clássica. Para mim é natural, meu filho de 3 anos também fica à vontade ouvindo” <span></span>Carlos: “Minha vizinha tocava violino. Me acostumei a escutar música clássica e quis aprender a tocar” <span></span>A maior conquista do projeto tem sido mudar as vidas das crianças e jovens atendidos <span></span>Coordenadores da Orquestra de Cordas da Grota, Lenora Mendes e Márcio Selles <span></span>Ricardo Vidal: experiência e bom currículo musical não garantem o sustento <span></span>

Jovens e crianças com estojos de violinos e violoncelos, a música clássica ecoando pelas vielas. Nada disso causa admiração na comunidade da Grota do Surucucu, em Niterói, ao lado da cidade do Rio de Janeiro. Mas esta familiaridade com instrumentos e sons eruditos pode acabar.

A Orquestra de Cordas da Grota é conceituada e, ao longo dos anos, foi ganhando a estrutura necessária para desenvolver o trabalho. Mas os patrocínios são pontuais, para ações como a compra de instrumentos e a construção da sede, e o dia a dia consome dinheiro. Além das despesas estruturais, é preciso levantar verba para oferecer ajuda de custo aos músicos e monitores.

No início de 2014, a OCG se viu sem patrocínio. Com empenho dos alunos, professores e voluntários e vários cortes nas despesas, o projeto continuou. Mas, no fim do ano, veio a constatação dramática: se até o final de fevereiro não tiver sido captada pelo menos parte da verba necessária para cobrir os custos fixos em 2015, as aulas e atividades regulares não serão retomadas em março.

Para tentar levantar o dinheiro, a OCG iniciou uma campanha de doações por meio do site de financiamento coletivo Vakinha. A venda de CDs da orquestra também está sendo intensificada, e a conta para depósito de doações regulares tem sido amplamente divulgada.

Os voluntários não só trabalham sem ajuda de custo, como também são os doadores mais regulares. Márcio Selles e Lenora Mendes são os coordenadores, dando aulas e organizando todo o trabalho. Nayran Pessanha, violista do Quarteto de Cordas da Universidade Federal Fluminense e professor do Centro de Estudo e Iniciação Musical da mesma universidade, é o regente da orquestra principal. Todos contribuem mensalmente.

Horta e aulas

A história do projeto, que inicialmente não tinha nenhuma relação com a música, começa nos anos 1980. A professora aposentada Otávia Paes Selles começou a plantar uma horta no terreno ainda vazio e, aos poucos, foi atraindo as crianças que jogavam no campinho de futebol vizinho. Dona Otávia oferecia também aulas de reforço escolar, oficina de leitura e diversas atividades de artesanato. Remanescentes desta época, os irmãos Katunga e Nem – José Carlos e Ricardo Vidal – e a amiga Raquel Terra lembram, nostálgicos, das tardes de aula, cultivo e artesanato, dos almoços de sábado em que eram servidos legumes e verduras colhidos da horta e de quando ajudaram a construir a cisterna e a “casinha”, primeira edificação do espaço.

Mas a saudade maior é de dona Otávia, que morreu em 1988. “Ela levava a gente para a casa dela para fazer chocolate, que depois vendia em bazares. Vendia também as peças de artesanato. Fiz muito sapatinho de tricô, muito pano de prato. Mas eu acho que era ela mesma que comprava tudo”, recorda Raquel. “E tinha também os shortinhos. Ela costurava shorts para as crianças, mas o tamanho era um só. Tinha que servir para todo mundo”,  lembra Ricardo. Quando o espaço foi reformado, em 1997, foi mantido um fragmento do antigo edifício, onde foi afixada uma placa em homenagem à fundadora do projeto.

Sem descuidar da horta, do reforço escolar e das atividades artesanais, dona Otávia convenceu o filho, Márcio, a ensinar música às crianças. Recém-chegado dos Estados Unidos – onde ele e a mulher, Lenora Mendes, cursaram mestrado na Sarah Lawrence College –, o músico, inicialmente, resistiu à ideia. Dona Otávia insistiu e Márcio assumiu o ensino de música e fundou a Orquestra, em 1995. Mais tarde, Lenora se uniu ao projeto e se encarregou das aulas de teoria musical e flauta doce.

Novo rumo

O projeto atende, hoje, cerca de 500 crianças e jovens, espalhados pela sede operacional, na Grota, pelos núcleos em outras comunidades – Jurujuba, Ititioca, Morro do Cavalão, Morro do Estado e Badu – e nos municípios de Maricá e Itaboraí. Quantos já passaram pela orquestra, ninguém consegue contar. “Não temos o número certo, porque não temos muito controle sobre estas informações. Sempre tivemos problemas com a parte administrativa. E isso atrapalha, porque, apesar de o projeto ser reconhecido e considerado sério, esta falha na organização dificulta a captação de patrocínio”, lamenta Lenora.

Além das aulas de música, o Espaço Cultural da Grota também abriga uma biblioteca com 500 títulos, mantendo a tradição das oficinas de leitura. Há ainda aulas de desenho, reforço escolar, oficinas de alguns instrumentos e cursos de artesanato. Isso sem contar a orientação atenta e constante de Lenora. “Em geral, oriento quanto à escolha do curso superior, principalmente na área de música. Quase sempre recomendamos que o aluno faça licenciatura, porque ele já sai da faculdade apto a dar aulas. Se quiser depois complementar a formação, apoiamos no que podemos”, esclarece. Mas há também orientações quanto a decisões que dizem respeito à vida pessoal das crianças e jovens. “Quando percebo que alguém está bebendo, fumando, ou quer sair da escola, por exemplo, vou até esta pessoa e chamo para uma conversa. Afinal, a vida será o que a gente construir”, acrescenta.

Retorno

Os alunos mais experientes se tornam professores e monitores. Hoje produtora, Alexandra Seabra iniciou a monitoria aos 13 anos, com apenas três de aprendizado. “Eu ajudava a Lenora com os pequenos”, lembra. Mais recentemente, sofrendo de tendinite, deixou a orquestra principal, mas, formada em licenciatura pelo Conservatório de Música – fez parte do primeiro grupo de bolsistas –, continua dando aulas. Além de lecionar na Grota, Alexandra também dá aulas de musicalização para as crianças de um tradicional colégio particular de Niterói. Paralelamente, integra um grupo, todo de músicos da OCG, que toca em casamentos, festas e eventos.

Para poder diversificar suas opções de trabalho, todos os integrantes da orquestra principal têm CNPJ próprio e emitem nota fiscal, registrados como microempreendedores individuais. Manoel Ferreira, violista, além de cursar licenciatura em Música na UFRJ, é um bom exemplo de versatilidade. Por influência de uma professora da faculdade, Patrícia Michelini, o jovem de 24 anos voltou a tocar flauta doce – primeiro instrumento de todos os alunos da OCG –, entrou para a Orquestra Barroca da UFRJ e uniu-se ao cravista Eduardo Antonello, com quem toca um repertório de música barroca. Fora o trabalho musical, Manoel tem trabalhado com fotografia e vídeo – é quem registra as apresentações da orquestra e, depois de editar o material, publica na internet, ajudando na divulgação. O músico atua ainda como produtor numa produtora de eventos.

Outro futuro é possível

Mesmo com reconhecimento nacional e internacional, a maior conquista do projeto tem sido mudar as vidas das crianças e jovens que atende. Embora as casas da ladeira de acesso não sugiram isso, a Grota sofre com as mazelas comuns às periferias: não há saneamento básico e coleta de lixo em algumas áreas, as chuvas derrubam casas, há violência.

Com tantos obstáculos, era esperado que os jovens da comunidade estudassem precariamente ou largassem os estudos, seguindo uma vida laboral de subempregos e informalidade. Mas a influência do trabalho da OCG mudou esse futuro. Dos jovens atendidos, 50 cursam ou já concluíram a universidade. Muitos estudaram música, enquanto alguns cursaram Direito, Educação Física, Geografia, Física, entre outras carreiras.

A veterana Raquel Terra é um caso exemplar, já que teve o rumo da vida modificado duas vezes. Chegou à horta de dona Otávia defasada em relação à série que cursava e com muitas deficiências. “Eu aprendi a ler, mesmo, aqui”, relata a violoncelista. Melhorou na escola, aprendeu a tocar, participou da Orquestra desde sua fundação. Mas a família se mudou para o município vizinho de São Gonçalo e a menina, aos 11 anos, não podia ir sozinha para as aulas na Grota. Algum tempo depois, já com 17 anos, retornou. Havia deixado a escola, mas voltou a estudar. E acabou contemplada com uma bolsa para cursar licenciatura no Conservatório Brasileiro de Música. Hoje, formada, dá aulas na Orquestra.

Sonhos em risco

Raquel é também um exemplo de como a falta de financiamento põe em risco os benefícios sociais do projeto. Com a crise de financiamento, foi suspensa a ajuda de custo aos músicos, instrutores e monitores. Raquel teve sua renda comprometida e se viu obrigada a procurar emprego. Hoje trabalha como ajudante de cozinha em um restaurante.

Ouvindo Raquel falar sobre o emprego, Ricardo Vidal perguntou à amiga se há vagas abertas no restaurante. Com quase 20 anos de carreira na música, apresentações internacionais no currículo e instrutor de três núcleos da OCG – Badu, Jurujuba e Maricá – o violinista se vê forçado a buscar uma forma de complementar a renda.

Katunga: “Não consigo entender esse preconceito com a música clássica. Para mim é natural, meu filho de 3 anos também fica à vontade ouvindo”

Já Katunga Vidal não depende exclusivamente da OCG. Entre outros trabalhos, dá aulas de música no Afroreggae e toca em festas e eventos. Mas, além de ser um dos mais experientes integrantes da orquestra A, o músico tem um motivo a mais para desejar que o projeto continue: seu filho, Antônio, de 3 anos, já brinca com pandeiros e flautas e está mais do que familiarizado com peças eruditas. “Não consigo entender esse preconceito com a música clássica, as pessoas dizerem que é uma música difícil. Para mim é natural, meu filho também fica à vontade ouvindo.” O desejo do pai é que o pequeno também entre para a OCG.

Carlos: “Minha vizinha tocava violino. Me acostumei a escutar música clássica e quis aprender a tocar”

Aos 14 anos, o violinista e flautista Carlos Rodrigues já tem sete de OCG e a previsão é de que comece a dar aulas de teoria em 2015. O jovem fazia parte da banda do Colégio São Vicente, onde era bolsista, e já tocava quando chegou à orquestra. Mas foi por causa do projeto que quis se tornar músico. “Minha vizinha tocava violino aqui e eu ouvia os ensaios dela. Desde os 2 anos acostumei a escutar música clássica e quis aprender a tocar”, conta. Decidido a seguir carreira como instrumentista, o rapaz estuda com afinco e nutre o desejo de tocar com a Filarmônica de Berlim, uma das orquestras mais conceituadas e famosas do mundo. Hoje, o maior obstáculo para a realização do sonho de Carlos é a falta de financiamento.