Ambiente

Itu, interior de São Paulo: seca e descaso sem tamanho

Falta de chuva – e de planejamento, investimentos e respeito – leva população de Itu, no interior de São Paulo, a viver em busca de água

Danilo Ramos/RBA

Moradores de Itu acumulam água de todas as formas possíveis para enfrentar o desabastecimento

A vida em Itu, a 100 quilômetros da capital paulista e uma das mais importantes cidades do estado entre 1850 e 1935, já girou em torno da produção de açúcar e do café. Depois disso, abriu-se para a produção de cerâmica vermelha e também para o turismo motivado pela chamada “cidade do exagero”. Suvenires de objetos gigantes fizeram sucesso nas lojas locais na segunda metade do século passado. Nos últimos meses, porém, Itu ganhou o noticiário nacional em razão da seca. A população termina o ano consumindo muita energia e dinheiro em busca de água potável.

O aposentado José Bernardo, de 70 anos, vendeu um carro que valia R$ 33 mil por R$ 15 mil. Comprou uma caminhonete usada por R$ 39 mil, assumindo 48 parcelas de R$ 500. Acoplou ao veículo uma caixa de água de 500 litros, mais uma bomba d’água com uma extensão elétrica e uma mangueira de 35 metros. Essa parte ao custo de R$ 1.200. Isso sem contar o gasto com combustível. O objetivo? Conseguir água.

“A gente passa muito aperto. Não só pela falta da água, mas porque temos um parente que requer cuidados de higiene complexos. A gente tem de se virar”, desabafa Bernardo, que passa parte do dia indo e vindo da fábrica de cerveja Brasil Kirin, a sete quilômetros de casa, onde pessoas varam a noite pegando água na bica. Ao voltar para casa, Bernardo tem de subir no telhado levando a mangueira para abastecer a caixa de mil litros.

Um decreto da prefeitura determinou a liberação de poços artesianos privados para a população. Além disso, desde fevereiro a cidade decretou racionamento, prevendo a chegada da água da rua em dias alternados. Mas desde setembro muitas torneiras estão secas. O cunhado de Bernardo, Ocimar de Souza Leite, de 60 anos, tem um problema de saúde que o deixa vulnerável a infecções. Precisa de pelo menos dois banhos diários. Mas faltava água havia 30 dias no final de outubro, quando recebeu a reportagem. “Ninguém nos apresenta uma solução”, protesta Ocimar.

Cadeirante, ele teria preferência no atendimento dos caminhões-pipa, que distribuem água emergencialmente. Até 30 de outubro, 40 veículos faziam o abastecimento. No mesmo dia, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) ofereceu apoio de mais 20, contratados pela Defesa Civil. “Não sei para onde vão os caminhões. Ninguém sabe, na verdade. Aqui eles não chegam”, reclama Ocimar.

Improvisos e incertezas

itu(sp)As dificuldades na vida dos ituanos em consequência da seca afetaram hábitos e orçamentos. O valor de uma caixa de água de mil litros passava de R$ 800 nas casas de material para construção que a dispunham. Um galão com 20 litros não sai por menos de R$ 28. Na capital, custa de R$ 8 a R$ 15. Mesmo assim, a maior parte das revendedoras de água está fechada, com cartazes simbólicos: “Acabou a água”.

Comprar mil litros de água de um caminhão-pipa se tornou artigo de luxo. O custo médio é de R$ 130. Em uma casa com quatro pessoas, essa quantidade é consumida em três dias, de acordo com parâmetros da Organização das Nações Unidas (ONU), de 110 litros por pessoa por dia para uma utilização saudável da água. Em condições normais, as pessoas pagam R$ 27,80 para a concessionária Águas de Itu por 10 mil litros de água por mês. Esse pagamento – equivalente à tarifa mínima da Sabesp na capital paulista – é outro motivo de revolta da população. Mesmo com as torneiras quase sempre secas, muita gente recebia contas com a cobrança do valor mínimo.

A dificuldade mexeu também com os nervos. “A gente não dorme mais. Estamos sempre esperando alguma água chegar nas torneiras. Quem trabalha durante o dia tem de ir nas bicas de noite. E só depois fazer alguma coisa em casa. Quem não tem carro tem de contar com a boa vontade dos outros”, lamenta a dona de casa Solange Rodrigues Belon, de 55 anos. Segundo Solange, é impossível localizar os caminhões-pipa, pois a empresa Águas de Itu não informa. Mesmo no site do Comitê de Gestão da Água, criado em setembro para definir ações prioritárias e acompanhar a atuação da empresa, não havia informações claras sobre onde o caminhão estaria. Sabia-se apenas onde já estivera.

Do caos surge a criatividade. A população ituana tem feito desde alterações simples, como tirar o carro da garagem para dar espaço a uma caixa d’água, a ter tambores diferentes para os diversos tipos de água – para beber, para lavar roupa ou para limpeza – e engenhocas. O aposentado José Manoel Sobrinho, de 73 anos, e a mulher Clarisse Cardoso, de 68, montaram vários sistemas com garrafões instalados na pia e no banheiro para garantir uma estrutura mínima para banho e lavagem de louça. Como não pode carregar os galões de 200 litros que mantém no carro, Manoel também providenciou um sistema para bombear água do veículo para um galão no quintal e dali para a caixa d’água da casa. “Assim não preciso mais subir no telhado. Só que a gente já nota uma diferença na conta de energia elétrica, pois usamos a bomba muitas vezes”, relata.

A fila na fábrica da Brasil Kirin tem uma espera de cerca de uma hora durante o dia, mas à noite as pessoas ficam mais tempo. “Se você vier aqui às 20h, vai passar três horas. Se vier às 3h da manhã, ainda vai ter gente na fila”, diz o analista de qualidade Rafael Alexandre dos Santos, de 31 anos. Ele e outras dez pessoas estavam no local com seus carros, todos adaptados para carregar o maior volume possível. Quem não tem carro carrega garrafas e galões em carrinhos de mão, de feira ou no braço.

“Vendo essa situação a gente até já pensa em voltar”, diz Juno dos Santos Silva, recém-chegado da Paraíba junto com o irmão Fábio para trabalhar na cidade. Sem carro e morando longe das principais bicas, os dois pegavam água de uma mina da qual não se conhece a procedência. “A gente não vai beber nem cozinhar. Mas para banho, lavar roupa e limpar casa, depois de ferver, acho que não tem problema”, acredita Juno. Os dois têm de carregar galões nos ombros até o Jardim Eliane, a dois quilômetros da mina.

Os pontos de distribuição da Águas de Itu foram ampliados com a instalação de sete caixas de 20 mil litros em algumas praças da cidade, e mesmo assim os moradores têm dificuldades. “É muita gente para pegar água, então acaba rápido. E daí as caixas demoram para ser reabastecidas”, reclama a assistente administrativa Rosana Metzner, de 50 anos.

Moradora do Jardim São Camilo, Rosana não cozinha mais. Sem água há quase dois meses na torneira, ela e o marido passaram a comprar marmitex no almoço e no jantar, de preferência acompanhada de talheres descartáveis. “Nós dois trabalhamos e não temos muito tempo para conseguir água. O que conseguimos serve para banho e para beber”, conta.

Os fins de semana de Rosana são passados em Indaiatuba, a 25 quilômetros, na casa da mãe. Segundo ela, é a forma mais “tranquila” de lavar roupa e conseguir mais alguma água. “A gente tenta sujar a menor quantidade de roupa possível. Usa peças escuras. Vai segurando como dá”, explica. Além disso, as visitas em sua casa estão proibidas. “Como eu vou receber alguém na minha casa nessas condições?”, questiona.

Danilo Ramos/RbaItu SP
Wilson tentou a Justiça para fazer valer decreto de racionamento. Mas o caminhão-pipa só apareceu uma vez

Vizinho de Rosana, o assistente administrativo Wilson Luís Boff, de 38 anos, tentou o caminho da Justiça, mas até agora só conseguiu arquivar dezenas de documentos.

“Reclamei na Ouvidoria, na Câmara de Vereadores, na prefeitura e no juizado de pequenas causas. Neste último foi determinado que a cada 48 horas um caminhão-pipa fizesse o abastecimento, conforme determina o decreto de racionamento. Mas só vieram uma vez”, conta.

Donos de lojas e restaurantes de Itu temem ter de fechar as portas, caso a crise persista, e que o próximo problema a se abater sobre a cidade sejam falências e desemprego. Uma lojista da região central, que pediu para não ser identificada, revelou que os empresários não sabem o que fazer em relação às festas de fim de ano. “A gente não sabe se compra produtos. Do jeito que está hoje, com as pessoas saindo da cidade no fim de semana, pode ser que no Natal e no Ano Novo ninguém queira ficar aqui. Vai ser um desastre”, lamentou.

Um dono de restaurante contou que tem de comprar água de caminhões-pipa toda semana para manter o estabelecimento. “Meu custo em três semanas foi de R$ 600 só com água para fazer comida. Não sei quanto tempo a gente aguenta nessa situação”, afirma. Ele tem servido os clientes com copos, pratos e talheres de plástico, o que também aumenta os custos. “Tem de ser um produto minimamente resistente, se não causa um constrangimento”, explica. Outro problema é que nenhum estabelecimento libera seus banheiros a clientes.

Intervenção

Os moradores já organizaram abaixo-assinados pedindo que a prefeitura decrete estado de calamidade pública. E apoiam pedido de intervenção na cidade feito pelo Ministério Público (MP) em Itu. Se assim fosse, o governo paulista teria de indicar um interventor para atuar na cidade no lugar do atual prefeito Antônio Luiz Carvalho Gomes, o Tuíze (PSD). O prefeito não falou com a reportagem, que foi atendida pelo coordenador da Defesa Civil municipal e coronel reformado da Polícia Militar, Marco Antônio Augusto, na sede da Guarda Metropolitana.

Augusto admitiu que há dificuldades para atender a população e que os caminhões-pipa não dão conta de retornar às casas em 48 horas. Além disso, o próprio modelo de abastecimento não contribuía para equilibrar a distribuição. “Algumas pessoas tinham grandes reservações e, com isso, o abastecimento ficava em poucas casas. Determinamos que não seria mais permitido abastecer mais que mil litros em uma mesma residência, mas isso ainda leva algum tempo para normalizar”, explica.

O porta-voz responsabilizou a empresa Águas de Itu, concessionária do serviço há sete anos, por não ter realizado obras, como o desassoreamento dos mananciais e o aumento da disponibilidade hídrica. Ponderou que isso não impediria a crise, mas que a situação poderia estar diferente: “Problemas com a água nós iríamos ter de qualquer jeito em virtude da estiagem. Mas se tivesse sido feito, por exemplo, o desassoreamento dos mananciais, teríamos mais água armazenada”.

A prefeitura multou a empresa em cerca de R$ 10 milhões por ações previstas em contrato que não foram realizadas. O aumento da disponibilidade está sendo feito agora no Ribeirão Mombaça, que passa a 22 quilômetros da cidade. As ações para captação pretendem trazer 280 litros de água por segundo, para abastecer cerca de 100 mil pessoas na região central da cidade. Essa obra, no entanto, deve ficar pronta somente em janeiro de 2015.

Os mananciais de Itu são abastecidos basicamente por chuvas. A cidade não tem grandes rios, somente alguns ribeirões, cujo volume de água é menor. “No último ano choveu 600 milímetros, o que é nada em termos de captação. Nossa região é característica de uma situação de escassez, mas sempre foi suficiente para manter o abastecimento normal de 24 horas por dia. Neste ano, não”, observa Augusto.

Danilo Ramos/RBAItu (SP)
Moradores recolhem água de uma mina suspeita

Perguntado sobre por que não decretar estado de emergência ou de calamidade, o coronel diz que a medida não está descartada, mas que hoje não seria aceita pelo governo estadual. “Itu não tem como ser reconhecido como situação de calamidade”, pontua.

Segundo ele, seria preciso haver incolumidade pública, ou seja, descontinuidade dos serviços de saúde ou educação, por exemplo, ou risco de morte de pessoas. A Águas de Itu tem fornecido água aos estabelecimentos públicos entre 20h e 3h. Também poderia ser considerado emergência se a cidade tivesse de usar pelo menos 3% dos recursos orçamentários para comprar água. “Mas hoje não colocamos dinheiro nenhum, porque é a empresa privada que precisa comprar a água e fazer as obras”, explica.

Questionado sobre as pessoas com deficiência física que não estão recebendo água dos caminhões-pipa, o porta-voz da Defesa Civil argumenta que elas precisam entrar com contato com a Secretaria da Saúde. “Se elas estão cadastradas e não estão recebendo, precisam reclamar na agência reguladora.”

Apesar da crise e de admitir que a empresa deixou a desejar no cumprimento do contrato, Augusto não considera que isso seja um problema e vê um caminho de maior valoração econômica da água como resposta ao momento vivido em São Paulo. “Eu estive no Japão há três anos e pedi um copo de água. Me mostraram uma máquina que vendia garrafinhas de água por 50 centavos de iene. Lá a água não é dada. Vai chegar um momento no Brasil em que a água terá de ser comprada. Porque ela é finita.”