Mouzar Benedito

De aranhas, caranguejos; Ary Barroso e aquarelas

Vicente Mendonça Em Minas Gerais, durante a chamada “República Velha”, que terminou com a Revolução de 1930, um único partido dominava a política estadual. Era o Partido Republicano Mineiro (PRM). […]

Vicente Mendonça

Em Minas Gerais, durante a chamada “República Velha”, que terminou com a Revolução de 1930, um único partido dominava a política estadual. Era o Partido Republicano Mineiro (PRM). Mas, espertamente, ele criou sua própria oposição. Os políticos manhosos sabiam que no interior muitas famílias não se bicam, e era impossível que elas convivessem num mesmo partido.

Foi o mesmo que os militares fizeram depois de 1964, quando criaram a Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido do governo, “deixando” funcionar um partido menor, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), que fazia uma oposição chocha, embora tivesse muitos membros que se podia levar a sério.

Os oportunistas de sempre, que não queriam ficar fora do poder, não poderiam ficar fora do partido governista. Só que havia divergências entre eles. Meras questões locais, na maioria das vezes, mas que impossibilitavam o convívio. Então, o que fazer?

Acho que eles recorreram às lembranças do PRM: criaram a possibilidade de concorrer mais de um candidato ao mesmo cargo, pelo mesmo partido. Permitia-se até três tendências: Arena-1, Arena-2 e Arena-3. Em certos lugares, havia uma briga quase mortal entre essas tendências. Mas, no caso de parlamentares eleitos por elas, eram todos arenistas, que estavam na mesma canoa, dando sustentação ao poder constituído.

Bom, em Minas, nos tempos do PRM, não havia PRM-1 e PRM-2. Dava-se nomes de bichos às tendências. Por exemplo: em Muzambinho, eram periquitos e papagaios; em Passos, patos e perus; e em Nova Resende, minha terra, aranhas e caranguejos. Em Nova Resende, cidade minúscula na época, havia uma praça e duas ruas que saíam dela. Uma rua era dos aranhas e a outra dos caranguejos. A praça Santa Rita era onde se encontravam aranhas e caranguejos. E geralmente não eram encontros saudáveis, com frequência acabavam em tiroteios.

Eu brinco lembrando que a única consequência positiva dessa violência besta foi a música Aquarela do Brasil. Há quem goze e não acredite. Mas vejam: Ary Barroso acabava de se formar em Direito e foi nomeado juiz municipal em Nova Resende. Dizem que ele passou uns 15 dias na cidade, hospedado num hoteleco da praça, e presenciou três tiroteios. Por isso, desistiu de ser juiz, foi para Poços de Caldas, onde ganhou uma grana tocando em cassinos, e voltou para o Rio de Janeiro.

Se tivesse chegado em Nova Resende e encontrasse uma cidade calma e agradável, talvez tivesse ficado por lá e provavelmente sua genialidade musical seria meio travada. Talvez compusesse o hino da cidade. Mas voltou para o Rio e se dedicou à música. Então, compôs, entre outras, a música que muita gente gostaria que fosse o hino nacional brasileiro.

Nas eleições de 2014, lembrei-me dos aranhas e caranguejos. Claro, guardadas as proporções históricas. Não acho que os projetos dos dois partidos que mais rivalizam hoje sejam iguais, tampouco que os parlamentares eleitos por um e por outro vão se abraçar em Brasília. Acho até que vão até brigar mais do que deveriam. E diante de um mesmo modelo político que, se não for mudado, tende a piorar as coisas.

Neste ano, velhas amizades foram para o brejo, famílias racharam, houve muita encrenca. As redes sociais se transformaram em espaços de destilação de ódio, e até casos de ameaça de morte se viram por causa de opções diferentes. Mas mesmo fora delas houve manifestações de racismo e de outros preconceitos. Será que vale a pena alimentar essa divisão? Será impossível cada força defender seus ideais e, respeitando as diferenças, construir um país melhor que olhe para sua gente? Ou alguém acha que como resultado dessa briga surja um novo Ary Barroso? Vi, adotei e recomendo um conselho que li pichado num muro: “Odeie seu ódio”.