Tradição

O samba caipira resiste em Quadra, no interior de São Paulo

Descendentes dos antigos sambeiros preservam ritmo e criação. A Quadra do Bom Jesus/ Cidade que o povo adora/ É na cidade de Quadra/ Que o Samba Caipira mora (João de Ditão)

Adriano Ávila

“O meu pai cantava samba/ Sambeiro o seu filho é/ Eu trouxe herança dos meus pais/ Eu sei que o samba não cai/ Enquanto eu tiver de pé” (João de Ditão)

O batuque corria nos passos dos casais. Eram mais ou menos 40 pares atravessando dias de festa, noite e dia no bailado. No palco improvisado os grupos se revezavam, vindo dos mais diferentes lugares: de Areia Branca, do bairro da Estância, do Varzeão, do Guaraná e mesmo de outras cidades, como Itapetininga e Guareí. A música era o samba caipira, tocado nas caixas, no sambão, no reque-reque, nas palmas e na voz. Os versos eram dos sambeiros mesmo, às vezes já compostos, às vezes tocados no improviso.

Era mais ou menos assim que o samba acontecia, até meados dos anos 1960 em Quadra, localizada a 166 km a oeste da capital. Hoje os lugares de encontro são outros, mas ainda sobrevive ali um tom idílico de passado recente. Ao chegar à cidade, as barracas já se armavam na bela praça central. Na disposição espacial do comércio festeiro, estruturas metálicas se mesclavam com as armações de madeira, num prenúncio de transição: o atual e o tradicional vivendo em suave tensão. Era a quermesse se armando. Mais à noite, quando já ocorria a festa, o contraste podia ser sentido na pele. Um delicioso bolinho caipira, feito à base de farinha de milho e frango de roça, leitoas e costelas assadas eram degustados ao som mecânico do sertanejo moderno e do funk carioca. É. Pelo menos ali, o samba caipira não era mais bola da vez.

Sambeiros muito vivos

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Não se engane, não. Muito longe de acabar, o samba caipira continua em Quadra. Os responsáveis pela longevidade do samba são descendentes diretos de antigos sambeiros — conforme eles mesmos se denominam. Ser filho de sambeiro é coisa séria. Do mesmo modo que os antigos gregos dos livros de Homero, a menção ao pai se carrega no nome: João, filho de Ditão; José, filho de Abel.

João forma com o seu cunhado Francisco Soares, o Preto, de 72 anos, José Carlos Soares, conhecido como Zé do Abel, 54, e com o Francisco Domingos de Arruda Campos, o Chicão, 53, o grupo Os Filhos de Quadra. Membros de uma estirpe que está rareando, são muito ciosos de seu valor e de sua importância. João de Ditão é o grande guardião do samba caipira. Improvisador nato, dono de estilo próprio, conta que tem mais de mil versos registrados.

O samba de antes se fazia batendo na caixa, mas era repicado. Qualquer verso que vinha dava certo. Agora, o do João não dá. Cada currimaço de verso é uma toada. Vai pra outro currimaço, já é outra toada”, fala Preto de seu parceiro, a quem considera um irmão. Até onde entendemos, toada corresponde a um conjunto melódico, e currimaço é como se denominaria uma estrofe ou um conjunto de versos.

Dá para dizer que um importante braço do samba de Quadra começou no interior da família de João de Ditão: “Meu avô, pai do meu pai, que se chamava Dezidério José de Andrade, nasceu em 1850 na cidade de Avaré, e desde menino foi empregado de fazenda de escravos do senhor José de Campo, no bairro da Estância, aqui em Quadra. Lá meu avô trabalhava de carreiro transportava lenha, café e cereais com o seu carro de boi. Todos os sábados ele ia até os batuques dos escravos, que ensinaram o meu avô a cantar o que hoje é conhecido como samba caipira”, conta.

A transmissão da tradição, do pai para os filhos, marcou profundamente as origens do gênero: “No ano de 1920 foi que meu avô ensinou meu pai Benedito de Dezidério e meus tios Cornélio e Brasilio o samba caipira”. Esses dois relatos foram extraídos do Livro de Samba Caipira dos Filhos de Quadra, de autoria de Francisco Domingos de Arruda Campos, o Chicão, que além de cantador é jornalista e historiador.

Apaixonado desde pequeno pelo samba, Chicão conta a origem dos instrumentos: “Foi mantida a tradição no jeito de se usar os instrumentos. Por volta de 1870, os escravos fabricavam seus próprios pandeiros, o reque-reque de bambu e o sambão. Eles pegavam os couros dos bichos que os patrões matavam e faziam os instrumentos. Esse sambão tem uns 70 anos. Pra afinar, acende uma fogueira e esquenta o couro no calor. As caixas eram amarradas com cipó”.

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Muchirão e Palizado

Uma das razões do declínio do samba caipira foi o avanço dos lazeres urbanos. Como já disseram tantos estudiosos da cultura caipira – como o sociólogo Antonio Candido, literato e professor aposentado da USP –, ela tem entranhada em seu ethos a noção do lazer. Antes do advento da televisão e do rádio, os bailes eram muito apreciados. “O pessoal dançava aos montes porque era uma das poucas diversões que tinha. Era malha, corrida de cavalo, rinha de galo, futebol e o samba”, diz Chicão.

Preto explica que isso acontecia em virtude das ações de ajuda mútua entre os vizinhos: “A gente fazia o muchirão quando tinha que limpá a roça ou senão recolher (colheita). Reunia os vizinhos do bairro e fazia uma troca de dia. Vamos supor que você tem uma lavoura e eu outra. Daí você diz: ‘Preto, dá pra você ir carpir pra mim em tal dia?’ Aí a gente fazia uma reunida pra carpir”.

Para compensar todo esforço despendido, vinha a boia farta, oferecida por quem solicitava o trabalho: “Quando se reunia, sempre quem pediu oferecia almoço. A noite tinha uns bolinho de arroz e trigo, fritinho. Também tinha carne de leitoa, frango. Chamava umas 15 pessoas pra carpir um alqueire que tava perdido no mato e pra dá de comer pra esse pessoal tinha que matá uma leitoa. O almoço era umas nove da manhã e a janta às três da tarde”.

Era no prolongamento desses mutirões que aconteciam os bailes. Eles eram realizados no interior de armações de mastros e forradas com palha. Chicão explica: “Os palizados eram feitos com cinco paus fincados (um no meio), coberto com vassoureira, que era uma espécie de arbusto próprio pra fazer as vassoura que varria os terreiro. Era mais de 15 par dançando animado. E o pó do chão de terra que subia com tanta animação”.

Hoje, contudo, as apresentações do samba são feitas para a preservação da tradição caipira, em seu batuque de estilo único, nascido e criado ali, na região de Quadra.

Recomenda das Almas

Terra de samba também é terra de devoção. Os mesmos sambeiros que fazem a batucada se reúnem na quaresma para a Recomenda das Almas, ação de oração em prol das almas do purgatório. À medida que avança o crepúsculo, o grupo da Recomenda já sai para a rua, a fim de fazer suas visitas. Preto fala da dificuldade de se fazer a Recomenda na cidade: “Pra fazer, você tem que avisar o dono da casa. Porque senão a gente vai lá e o portão tá chaveado. Antigamente não tinha isso. Tinha cerca em volta da casa, mas era de arame”.

Há todo um ritual em respeito das almas: “Quando o pessoal da Recomenda chega, se vê que os dono da casa que tão ali por fora entram correndo, fecham as janela, as porta, apaga as luz e fica tudo no escuro, esperando a cantoria começar. Depois, abre as portas, acende as luzes e convidam ‘vem tomá um café’. Na hora que vai embora, antes de bater a matraca, fecha a casa de novo. Isso tudo pra respeitá as alma”, conta Preto. E as coisas mais curiosas acontecem. João de Ditão completa: “Até o cachorro mais bravo não morde o cantador”.

Seja no batuque ou na fé, o que impressiona é a força desses sambeiros, que carregam o orgulho da tradição da cultura caipira, no seu dia a dia, em cada uma de suas ações. Como diz João de Ditão:

Assim é a vida na roça
Hoje eu moro na paióça
Arranjei uma carroça
Pra ser minha condução
Na cidade arguma história é poco
Se eu fico lá eu fico louco
Porque meu nome é caboclo
E quero os meio da plantação