História

Língua portuguesa: ela dá o que falar há oitocentos anos

Rosino/Flickr/cc Estudantes da Ilha do Ibo, Moçambique. Cultura da África se encontra com a brasileira dentro do mesmo idioma A certidão de nascimento da língua portuguesa é considerada o testamento […]

Rosino/Flickr/cc

Estudantes da Ilha do Ibo, Moçambique. Cultura da África se encontra com a brasileira dentro do mesmo idioma

A certidão de nascimento da língua portuguesa é considerada o testamento do rei luso Dom Afonso II, em 1214 – o mais antigo documento escrito no idioma, oito séculos atrás. Ele está guardado a sete chaves, na santa paz de um cofre do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, com outro tesouro histórico: a carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral, comunicando ao rei de Portugal o descobrimento do Brasil. Todo o cuidado é pouco com essas inestimáveis relíquias: havia 13 cópias do Testamento de Afonso II, mas apenas duas resistiram (a outra está na Catedral de Toledo, antiga capital espanhola).

É difícil estimar quantos idiomas ou dialetos existiam na Europa antes da invenção da imprensa, no século 16. Estudiosos já identificaram cerca de 3 mil línguas, não contando os dialetos menores que ainda se falam. Daí a importância óbvia da ortografia na fixação das línguas nacionais, chamadas “vernaculares”, em oposição ao latim, que era o inglês daquela época, o idioma internacional (mas sem memes ou smiles). Com o nascimento de sua língua específica, os portugueses pararam de gastar o seu latim.

A origem da língua portuguesa remonta exatamente ao latim vulgar, falado mal e porcamente e assim estropiado por soldados, lavradores e comerciantes do Império Romano, que se instalaram na Península Ibérica entre os séculos 2 antes de Cristo e 5 da era cristã. Depois os chamados bárbaros (germânicos, celtas, godos) deram um chega pra lá nos ibéricos, só para serem acotovelados pelos muçulmanos, que invadiram o território no século 8. Resumo da ópera: além do latim, a língua portuguesa também incluiu as barbaridades dos bárbaros e os arabescos dos árabes (com seus zilhões de palavras começadas por al: álcool, alcachofra, algodão, alicate, álgebra etc.)

Meio milhão de palavras

Dos 2.796 idiomas contemporâneos catalogados pela Academia Francesa, o português é o quinto mais falado do mundo (o primeiro é o chinês, com bem mais de 1 bilhão de falantes). O português é também a terceira no Ocidente e a primeira no hemisfério sul. Segundo a Academia Brasileira de Letras, nosso bom e velho idioma tem cerca de 500 mil palavras. Essas unidades estão todas dicionarizadas no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Mas devagar com o andor, que tem mais: o dicionário ­Houaiss contém 228.500 entradas, 376.500 acepções, 26.400 antônimos e 57.000 palavras arcaicas. Ou seja: não falta munição para jogarmos conversa fora.

O português é o idioma oficial de nove países (por ordem alfabética): Angola, Brasil, Cabo Verde, Timor-Leste, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Juntos, eles constituem uma entidade cuja sigla é CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). E acredite: o português é matéria obrigatória nos currículos escolares da Argentina (e, já que tocamos no assunto, também do Uruguai).

Podemos acrescentar àquele número de falantes a imensa diáspora de cidadãos de nações lusófonas (de língua portuguesa) espalhados pelo mundo, estimados em 10 milhões, 3 milhões dos quais são brasileiros. Segundo estatísticas da Unesco, o português é um dos idiomas que mais crescem entre as línguas europeias, mordendo os calcanhares do inglês e do espanhol.

Por anos e anos a fio, Portugal (que até 1975 incluía várias colônias na África e na Ásia) e Brasil não chegaram a um consenso sobre a legislação do idioma comum, tomando decisões unilateralmente e instituindo duas normas reconhecidas internacionalmente. Assim, o português virou a única língua do mundo ocidental falada por mais de 100 milhões de pessoas com duas ortografias oficiais – o inglês tem diferenças ortográficas ocasionais, mas não ortografias oficiais diferentes.

Até que em 1990 foi aprovado pelos nove países da CPLP um Acordo Ortográfico, para acabar de vez com a lambança e uniformizar a língua. Polêmico e controverso, esse acordo não está completamente aplicado até hoje, um quarto de século depois de sua aprovação. Escritores brasileiros e portugueses, por exemplo, não podem vê-lo nem pintado e juram que, mal por mal, preferiam escrever na língua do P.

Acordos a cumprir

Geralmente se esquece (ou simplesmente se ignora), porém, que houve quatro acordos anteriores: em 1911, 1943, 1945 e 1971. Como o idioma é dinâmico, naturalmente tem de ser calibrado de acordo com a evolução das sociedades, para que não sofra de reumatismo verbal. Reparem uns poucos exemplos dos inúmeros verbetes em que os acordos anteriores aplicaram um botox: alphabeto, alumno (aluno), anonymo (anônimo), architectura, belleza, cahir (cair), chimica (química), civilisação (civilização), ­elle/ella (ele/ela), sciencia.

Seja qual for, uma língua é uma delicada filigrana de regionalismos e universalismos – e, na era da globalização, da internet e das redes sociais, aberta de par em par às influências planetárias. Mas não é só de agora. A expressão “banho-maria”, que parece tão vetustamente lusitana, na verdade pertence ao vocabulário internacional dos alquimistas.

Empregado por 85% dos falantes do português, o padrão brasileiro é hoje o mais falado, escrito, lido e estudado no mundo. As diferenças entre as variedades do português da Europa e do Brasil estão no vocabulário, na pronúncia, na sintaxe e nas gírias – o que não é pouco. Por mais que isso possa revelar provincianismo, alguns dos chamados “lusitanismos” soam cômicos ou desconcertantes aos brasileiros. Como “bicha” (fila), “puto” (menino, moço – Cristiano Ronaldo é conhecido em Portugal como “o puto maravilha”), “autoclismo” (descarga de privada), “cueca” (roupa íntima masculina e feminina).

Ao longo do tempo, uma série de estrangeirismos também foram incorporados ao português cotidiano – uns permanentemente, outros temporariamente. Alguns: abajour (abajur), club (clube), cocktail (coquetel), football (futebol), leader (líder), maillot (maiô), sport (esporte).

O português é ainda língua oficial em várias organizações internacionais, como Mercosul, Organização dos Estados Americanos (OEA), União Africana­ e União Europeia. Terceira nas redes sociais e quinta na internet em geral, a CPLP faz campanha agora para que a língua portuguesa seja integrada aos idiomas oficiais da ONU – que atualmente são seis: árabe, chinês, espanhol, francês, ­inglês e russo. Em nossos dias, a CPLP pode esgrimir trunfos econômicos para puxar a brasa a sua sardinha: 50% dos recursos petrolíferos descobertos na ­última década estão em países nela incluídos. Em meados deste século, o gás e o petróleo produzidos pelo Brasil, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau representarão 30% da produção mundial – o equivalente à do Oriente Médio.

Em março de 2006, foi fundado em São Paulo o Museu da Língua Portuguesa, um espaço interativo sobre o idioma, na cidade com o maior número de falantes do português em todo o mundo (quase tantos como em Portugal todo). Desde 1994 funciona em Curitiba o Bosque de Portugal, com o Memorial da Língua Portuguesa, que homenageia os imigrantes lusófonos – sobretudo em 5 de maio, dia da Língua Portuguesa.

Passos está na ilha

Até hoje, o mais prestigioso prêmio literário internacional – o Nobel – contemplou apenas um autor de língua portuguesa, José Saramago, em 1998. Mas a plasticidade encapetada de nosso idioma está mais do que demonstrada por inúmeros escritores do cânone universal, de Machado de Assis a Guimarães Rosa, de Camões a Mia Couto. E na escrita ou na oralidade cotidiana, um dos indícios fascinantes dessa matéria-prima são os trocadilhos – que, quando bem executados, requerem acrobacias mentais e uma intimidade incestuosa com a língua.

O maior craque em trocadilhos em português foi o poeta curitibano Emílio de Meneses, da estirpe do baiano Gregório de Matos – cuja língua era tão aguçada que ficou conhecido como “Boca do Inferno”. Quando o pernóstico acadêmico Guimarães Passos, autor de um Tratado de Versificação, foi convalescer de uma doença em Florianópolis, Meneses tascou: “Passos está na ilha, onde tem tratado de ver se fica são”.

Num bonde, ao presenciar uma mulher obesa quebrar um banco sob seu peso, exclamou: “É a primeira vez que vejo um banco quebrar por excesso de fundos!” Mas a apoteose de Meneses foi numa feira agrícola. Um desafeto decidiu se vingar do trocadilhista e, quando Emílio estava perto da barraca de milho, berrou: “É milho, é milho!” Meneses não perdeu o rebolado: “Caramba, hoje você está com a veia! É com isso que eu me intrigo!” Ao ver o engraçadinho tentar fugir, Meneses agarrou-o pelo braço: “Não s’evada!” Forçou o outro a ocupar uma cadeira e deu o golpe de misericórdia: “Sentei-o!”

Moral da história: nestes 800 anos de idioma, todos podemos assinar embaixo da frase de Fernando Pessoa: “Minha pátria é a língua portuguesa”. O que nem todos sabem é que até o etéreo poeta dos heterônimos foi publicitário da Coca-Cola e escreveu o primeiro slogan da bebida em Portugal: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Pois é: com as palavras todo o cuidado é pouco. Afinal de contas, o inventor do alfabeto era um analfabeto.