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Feira de São Cristóvão. Sotaque nordestino no Rio

Apesar de ameaças de descaracterização, a feira é ponto de encontro de nordestinos há 69 anos. E preserva sotaques, sabores, ritmos e raízes

A feira se espalha por 156 mil metros quadrados, abriga dois palcos para shows, quatro praças de forró e uma dedicada aos repentistas <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>Feira de São Cristovão <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>Feira de São Cristovão <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>Feira de São Cristovão <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>Feira de São Cristovão <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>Feira de São Cristovão <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>Em junho, a feira comemora a rigor o dia de cada santo <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>Zé das Bandeiras calcula que posa para mais de 200 fotos a cada final de semana <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span> O xilógrafo Erivaldo: shopping nordestino <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>Repente Miguel Bezerra trava um desafio com José Duda: o melhor, sem contestação <span>(Jesus Carlos/Imagemglobal)</span>

A influência nordestina está por toda parte no Rio de Janeiro. Nas palavras, na música, na gastronomia, na construção civil, nas ruas. Mas há um lugar onde ela é a essência de tudo e ponto de encontro dos filhos e netos dos nove estados da região: a Feira de São Cristóvão, há quase 11 anos rebatizada de Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas e ainda hoje chamada por muitos de Feira dos Paraíbas. A dez minutos de carro do centro do Rio, a maior feira do gênero fora do Nordeste funciona há 69 anos.

Tem 156 mil metros quadrados, abriga dois palcos para shows e quatro praças de forró e uma dedicada aos repentistas. Tudo em meio a 690 barracas, entre restaurantes e bares, doces, farinhas, ervas, temperos, carnes, queijos, legumes e produtos típicos e artesanais, como redes e roupas – embora não esteja imune à invasão de bugigangas chinesas e de praças afins.

Por muito tempo, a feira funcionou apenas aos domingos. Agora, só fecha às segundas. Mas é a partir da manhã de sexta-feira, quando funciona ininterruptamente até as 22h de domingo e pega fogo­ à noite, que ela se transforma num dos pontos de encontro que mais atraem gente no Rio. O dia mais tradicional, porém, segue o mesmo. “A feira é domingo”, resume o sergipano Leônidas Cardoso, que há dez anos – em um “momento de loucura”, como diz – abriu uma livraria numa das ruas da feira.

Pela manhã, é o mercado que atrai frequentadores – nessa hora, café da manhã com tapioca é boa pedida. É possível caminhar por ruas ainda tranquilas e fazer compras. É o momento mais família também. O pernambucano José da Silva, 83 anos, vestido como “Zé das Bandeiras”, espécie de vaqueiro verde e amarelo, já está lá, vendendo algodão-doce e brinquedos e atendendo a pedidos para fotos.

Ele frequenta o local desde 1958. Naquele ano, deixara Surubim, no agreste de Pernambuco, “capital da vaquejada”, num pau de arara rumo ao Rio. Chegou duas semanas depois, com planos de trabalhar como servente em obras e “ganhar salário mínimo”. A feira já era ponto de chegada e partida dos caminhões que levavam o migrante para o sul. Zé nunca mais a abandonou. Para ele, é a expressão da cultura nordestina que atrai tanta gente. Faz as contas e diz que num fim de semana posa para mais de 200 fotos ao lado de visitantes. A maioria não compra nada, mas ele gosta e diz que jamais pensou em lucrar com isso: “Pra quê, se eu morro e não levo nada?”.

A cultura é a essência

O dia avança, o burburinho cresce. Mais gente chega. Os restaurantes e bares ganham vida. A música – ora agradável, ora estridente – vai dominando o ambiente. As atrações culturais ganham peso. O forró já toca na Praça Câmara Cascudo e faz muitos pares dançarem. Começam os desafios na Praça Catolé do Rocha, área central e polo cultural mais tradicional.

Mal a reportagem se aproxima é provocada por Miguel Bezerra, que travava um desafio com José Duda. “Aquele camarada/ com caderno na mão/ escreve alguma coisa/ sobre a minha profissão/ eu sou cabeça chata/ repentista do sertão”, canta o violeiro. Pouco depois, se apresenta: “Nasci no Ceará, me criei no Rio Grande do Norte e moro no Rio de Janeiro desde 1974”. Afirma ser o melhor repentista da feira – e não há quem o conteste. Bezerra do Ceará, como é conhecido, tem 62 anos e criou a família “à custa da viola, do repente e do improviso”.

Ele explica que desafio é a disputa entre dois violeiros com versos improvisados – rimados de seis frases que saem de repente. Diz que gosta de desafios “quentes”, “pegados a dente de cachorro”, sem combinação prévia. “A gente sente o bom repentista pela plateia”, diz. Afinal, vivem de rodar o chapéu. Na noite anterior, Bezerra arrecadou R$ 700 entre 21h e 2h da manhã. O violeiro é presença­ certa aos sábados e domingos em São Cristóvão. “É uma tradição, é não deixar cair a cultura”, afirmar.

A divisão da feira em ruas bem delimitadas e simétricas, como é hoje, é relativamente recente. Por muito tempo, foi um labirinto de barracas que misturavam produtos, comidas, cheiros, música, dança e poesia. Ganhou o formato atual – com mais estrutura, higiene e roletas que cobram ingresso de R$ 3 no fim de semana – faz pouco mais de uma década. Agregou conforto, mas para alguns perdeu as raízes. “Toda evolução vai perdendo a sua essência, a característica de feira não existe mais. Eu diria que é um shopping nordestino”, diz o xilógrafo Erivaldo Ferreira. “Precisamos de uma mudança de comportamento, preservar as tradições, a cultura é a ­essência. Se for só pela gastronomia, isso tem em qualquer canto do Rio”, defende.

Com uma pequena barraca na praça dos repentistas, Erivaldo faz ali mesmo as xilogravuras, arte característica do Nordeste. Aos 48 anos, frequenta a feira desde­ os 14. Aprendeu o ofício com o pai, Expedito Silva, e foi pessoalmente incentivado por dois mestres da arte: o pernambucano J. Borges e o paraibano Ciro Fernandes. As xilogravuras de Erivaldo já compuseram a abertura de novelas como Cordel Encantado e A Indomada.

O livreiro Leônidas Cardoso, de 58 anos, também teme pela cultura tradicional. Ele mantém a livraria há 11 anos, única em todo o bairro. Livros, pouco vende. São os cordéis, folhetos que saem a R$ 3, que sustentam o negócio. “A feira vive um conflito, e as mudanças acirraram a luta de classes”, polemiza, referindo-se às diferenças cada vez maiores entre os grandes e pequenos barraqueiros. Mas ressalva que a criação do centro de tradições foi um inegável reconhecimento da cidade aos nordestinos. “Aos domingos, a feira atrai uma massa humana em busca de comida, cerveja, de uma música eletrônica que não gosto, mas também em busca da raiz, de uma alma nordestina, que de alguma forma o pai, a avó, impregnaram nessas pessoas”, resume.

Descaracterizada ou não, ela mantém reservas dessa raiz cultural. Como José Duda, de 80 anos, violeiro paraibano de Campina Grande, desde 1954 na área. Após 60 anos e tantas transformações, diz que hoje o que mais gosta na feira é o povo. “De primeiro, era muito preconceito com o nordestino. Hoje está todo mundo misturado aqui”, diz.
A noite chega. Não há mais desafios naquele final de domingo. José Duda se despede. Pega a viola e ruma para casa, na favela Nova Holanda, também na zona norte, onde a família o aguarda. Na semana que vem, estará de novo encantando com seus versos no palco da Praça Catolé do Rocha.

 

Ponto de chegada

Na mais célebre frase de Os Sertões, clássico da literatura brasileira, Euclides da Cunha afirma: “O sertanejo é acima de tudo um forte”. A definição se encaixa na história de resistência da Feira de São Cristóvão. É o que garante o paraibano José Pereira de Souza, o Deda do Gás, um dos mais antigos feirantes. “Os paraíbas são guerreiros, vieram dispostos a vencer. Se a feira continua aqui, é porque aqui é cheio de guerreiros. Mas a guerra permanece.”

Nascida na segunda metade da década de 1940, a partir de um ponto de chegada e partida de paus de arara que transportavam o migrante nordestino, a feira fincou suas bases no bairro. Ao longo de décadas, teve a sua permanência contestada por autoridades. “A feira era só aos domingos e a gente desmontava a barraca na dúvida se na outra semana continuava”, recorda Deda, ali desde 1950.

A história da feira está registrada em estudos e em cordéis, como nos versos de José João dos Santos, o Mestre Azulão: “O Campo de São Cristovão/ Foi palco de tradição/ Dos primeiros nordestinos/ Que deixaram seu torrão/ Sua família querida / Vieram tentar a vida / Viajando em caminhão/ Depois de dez doze dias/ Numa viagem sofrida/ O Campo de São Cristovão/ Era o ponto de descida/ Onde cada nordestino/ Procurava seu destino/ Em busca de nova vida/ Iam para as construções/ Onde outros trabalhavam”.

Informal por mais de 35 anos, o espaço só foi reconhecido pela prefeitura em 1982. Depois de três décadas, as barracas dos domingos ganharam também os sábados e, posteriormente, as sextas. Ganhou o perfil atual, permanente e fechado, em 2003, quando os feirantes conseguiram transferi-la para o Pavilhão de São Cristóvão, antigo prédio que abrigava exposições, após uma grande mobilização.

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