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Tudo junto e misturado

Site de entrevistas exclusivas com nomes da música brasileira tem histórias inéditas e curiosas

Luiz Melodia: “Maria das Graças, aquela gostosinha!” <span>(Dafne sampaio/gafieiras)</span>Thaíde: “A gente acreditava menos que podia passar dos 30. Hoje não, a gente quer passar dos 60” <span>(Mauricio hirata/gafieiras)</span>Sivuca: entrevistas obrigatórias para biógrafos <span>(Dafne sampaio/gafieiras)</span>Lindomar Castilho: assassinato e prisão <span>(Dafne sampaio/gafieiras)</span>Equipe do site entrevista Gaby Amarantos <span>(Renato Nascimento/gafieiras)</span>Jards Macalé <span>(flávio serafini/gafieiras)</span>Lenine: coleção com 6 mil plantas <span>(jefferson dias/gafieiras)</span>Frank Aguiar: “Quando meu olho direito treme é fatal, é coisa boa” <span>(jefferson dias/gafieiras)</span>

Quem acessa o site Gafieiras.com.br pode ser surpreendido inicialmente pela mistura de gêneros e nomes da música brasileira que são destaque em sua primeira página. Compositores como Lenine e Jards ­Macalé dividem espaço com Frank Aguiar, o grupo Los Hermanos, a folclorista Inezita­ Barroso e o rei do bolero, Lindomar Castilho. Notórios da MPB como Chico César e Luiz Melodia têm frases entremeadas com nomes não menos importantes, mas menos conhecidos do grande público, como Dona Inah, Mônica Salmaso, Moacyr Luz e Noite Ilustrada. Ainda entram no balaio os sanfoneiros Sivuca e Dominguinhos, o performático André Abujamra, o infantil Palavra Cantada, o lúdico Cordel do Fogo Encantado e o pop Ritchie.

O que esses artistas têm em comum, num primeiro momento, é terem concedido grandes (e exclusivas) entrevistas ao site, nas quais abordam temas incomuns em reportagens de menor fôlego, ou nas que se limitam a divulgar o disco da vez. De lembranças profundas da infância a revelações sobre a carreira, parcerias e sonhos para o futuro, tudo está transcrito no site.

Lenine, por exemplo, fala de sua coleção de orquídeas, e mostra um lado colecionista que remete à infância e dialoga com seu trabalho como artista. “Tenho as turnês em forma de planta”, diz o músico, que contabiliza 6 mil em sua coleção, com mais de 600 espécies de orquídeas. “O que mais me fascina nas orquídeas é essa diversidade.”

Por trás de declarações inusitadas como essa, disponíveis gratuitamente na internet, está um grupo de amigos formado por produtores culturais, jornalistas, fotógrafos e documentaristas que, em 2001, resolveu criar um material sobre música brasileira baseado em longas entrevistas. A ideia inicial, do produtor cultural ­Ricardo Tacioli, foi acolhida imediatamente por outros companheiros, como o jornalista Dafne Sampaio, o documentarista Max Eluard e o ­designer Flávio Rosselli (responsável pela elaboração do site), além de vários fotógrafos que se alternam registrando os encontros.

Max Eluard conta que a primeira entrevista do Gafieiras – com o compositor Eduardo Gudin – foi publicada num blog e, no ano seguinte, 2002, o material passou para um site. O nome escolhido pelo grupo surge porque, por definição, uma gafieira é um baile onde se toca todo tipo de música. “Colocamos no plural para que a ideia ampliasse ainda mais esse espectro da diversidade da cultura brasileira”, afirma. Em mais de uma década de atividades, o site já publicou 43 entrevistas, e possui outras nove prontas, a serem compartilhadas em breve. Entre elas de Ney Matogrosso, Gaby Amarantos, Odair José, Alaíde Costa, Ângela Maria e Guinga.

Diversidade

É nessa aparente salada musical, que reúne nomes tão distintos, que está a proposta do site Gafieiras. “A intenção é mostrar que o que liga toda essa diversidade é justamente o fato de serem todos música brasileira, de terem em comum uma raiz que mistura o tambor africano, o bandolim português e o toré dos índios”, explica Max.

A partir desse eixo, seguem-se narrativas distintas, de situações engraçadas a trágicas, urbanas e rurais, de histórias cotidianas a episódios antológicos. Um exemplo é o primeiro encontro de Luiz Melodia com Gal Costa, ainda chamada por seu nome de batismo, Maria da Graça, no início da década de 1970. “Fui à casa dela – morava ali em Ipanema e conheci a dona Mariá, a mãe, aquela chata (risos), que cortava tudo. Tinha até razão, porque era muita  gente em cima da filha dela. Maria das Graças, aquela gostosinha! Cheguei lá, mostrei o trabalho. E muita Coca-Cola. Ela tomava Coca-Cola pra caralho! E não teve outra, velho! Ficamos muito amigos!”, conta o músico, que deve à baiana o ingresso de Pérola Negra no rol dos clássicos brasileiros.

Já o músico Frank Aguiar conta sobre sua intuição para fatos que vão ocorrer. “Quando meu olho direito treme é fatal, é coisa boa”, afirma. Mistura-se ainda a infância de Sivuca, filho de lavradores, nascido e criado em Itabaiana, sertão da Paraíba, com a de Thaíde, paulistano da Cidade Ademar, na periférica zona sul da maior cidade do país. “Não sabia que ia chegar aos 40, porque a estatística era muito mais complicada que hoje. A gente acreditava menos que podia passar dos 30. Hoje não, a gente quer passar dos 60. Isso é maravilhoso”, diz um dos pioneiros do hip hop nacional.

Entre histórias há temas recorrentes, que ajudam a criar uma unidade entre as entrevistas. O futebol, por exemplo, aparece com força na vida de vários compositores distintos, como Lindomar Castilho, Luiz Melodia e Itamar Assumpção, que vislumbraram no esporte uma grande carreira, mas optaram pela música. As primeiras composições, as parcerias e os ídolos também estão entre os temas que ajudam a formar a teia imaginária sobre a música brasileira.

Para o jornalista e pesquisador Celso de Campos Júnior, autor do livro Adoniran, uma Biografia (2004), o trabalho desenvolvido pelo site Gafieiras serve como documento e tornou-se imprescindível para pesquisadores e biógrafos. “Hoje, quem quiser fazer uma biografia do Sivuca, por exemplo, tem de ler essa entrevista”, diz o pesquisador.

Grandes entrevistas x entrevistas grandes

Um dos grandes trunfos (e exigências) do Gafieiras é propor sempre entrevistas de fôlego, a maioria com mais de duas horas de duração, algumas com até quatro horas, algo cada vez mais raro no meio jornalístico. Nem entrevistados nem entrevistadores têm mais tanto tempo assim. “Tal disponibilidade permite uma viagem mais profunda pela vida dos artistas, indo a lugares antes impensáveis em suas memórias. O artista tem a chance de sair das respostas que estão no piloto automático, geralmente quando estão divulgando um disco ou em turnê”, diz Tacioli. “Quando o artista percebe que é um momento dele, para falar do que ele quiser, de recontar sua vida, aí ele se desarma, se entrega”, acrescenta Max.

Lindomar Castilho fala abertamente sobre o fato de ter assassinado sua mulher, a cantora Eliane de Grammont, em 1981, e ter permanecido preso por sete anos. Um assunto tabu na vida do autor de Você é Doida Demais, da década de 1970, e que virou tema do seriado Os Normais, da Rede Globo.

Segundo os integrantes do site, é comum os artistas dizerem que nunca haviam dado certas declarações em entrevistas. “Encontrei Moacyr Luz tempos depois da nossa entrevista, que teve mais de quatro horas, e ele me contou que havia começado a fazer terapia e que quando o terapeuta perguntou sobre a infância ele sugeriu que lesse a entrevista do Gafieiras”, conta Ricardo Tacioli.

O site garante, ainda, que tudo que é dito é publicado. “Quando iniciamos as entrevistas, os artistas são avisados dessa questão. Algumas vezes ocorre de um ou outro pedir pra não colocar algo que falou e se arrependeu, o que é respeitado, mas, de forma geral são sempre publicadas na íntegra”, acrescenta Tacioli.

Projetos

O grupo mantém projetos além do site. Em 2002, reverenciaram Adoniran Barbosa com uma série de iniciativas intituladas “Adoniran foi embora”, que incluíam uma Kombi com sistema de alto-falante para divulgar depoimentos sobre o compositor. Em 2009 foi a vez de Pioneiras, projeto no qual sete fotógrafos registraram cantoras como Alaíde Costa, Cláudia Morena e Inezita Barroso, entre outras divas da música que se destacaram entre as décadas de 1940 e 1960. As imagens fizeram parte de um site (www.pioneiras.com.br) e foram exibidas em mídias indoor, como metrôs (TV Minuto) e ônibus (TVO) da capital paulista.

Com todo esse material valioso em mãos, o grupo trabalha quase que exclusivamente com dinheiro dos próprios integrantes. Desde 2005 tornaram-se uma associação cultural sem fins lucrativos, com estatuto e personalidade jurídica. Com mais de uma década de trabalho, seguem acumulando histórias contadas por protagonistas da nossa música.
Basta acessar.