SOCIEDADE

Os esquecidos

Idosos, pessoas doentes ou com deficiências cognitivas esperam para ser encontradas por suas famílias. Que nem sempre estão à procura

Lázara vive num centro especial para idosos na Casa Verde, em São Paulo <span>(PAULO PEPE/RBA)</span>Claudio Gaspar, 62 anos, vive em uma casa de repouso e não vê a filha há mais de dez anos <span>(PAULO PEPE/RBA)</span>José Carlos e Margherita, do Lar Bom Repouso: atendimento a pessoas com deficiências cognitivas <span>(PAULO PEPE/RBA)</span>Alipio, 66 anos, se desentendeu com a família e foi para um centro de acolhida: “Queria que Victor e Leo ouvissem minha música” <span>(PAULO PEPE/RBA)</span>Maciel não quis abandonar o “seu castelo” <span>(PAULO PEPE/RBA)</span>Edson Nunes: “Em alguns casos os pacientes foram internados por familiares que deixaram informações, como telefone de contato ou endereço, inverídicas” <span>(Maurício Bazílio/Divulgação SES)</span>

“Não sei se ela ainda está me procurando e nem o que faria se a encontrasse hoje. Gostaria apenas de manter contato”, lamenta o gráfico aposentado Claudio Gaspar, de 62 anos, ao referir-se à filha Alexsandra, de 42, que não vê há mais de uma década. Seu sorriso largo, voz tranquila e gestos elegantes não deixam transparecer nenhum sinal de amargura pelo passado ou solavancos da vida. “Eu me sinto bem aqui.”

Há dez anos ele vive no Lar Bom Repouso, uma instituição assistencial espírita de São Caetano do Sul, no ABC paulista. Lá ele é conhecido como “o jornalista”. Recebe refeições, acolhida e uma cama num quarto com outras dezenas de pessoas. Claudio trabalhou para muitas revistas e jornais. Mas sua atividade foi sendo, aos poucos, engolida pela tecnologia.

Após anos revisando e diagramando, uma atrofia no nervo ocular enfraqueceu seu atento olhar. Não pôde mais ler os textos – o que lhe causa grande tristeza – e sua situação econômica piorou. A morte da esposa, em 1999, o fez “perder o rumo” de vez. A antiga casa, onde vivia na zona leste da capital paulista com a mulher e a filha, passou a ser habitada por fantasmas. “Eu via a imagem dela em todo o lugar. Decidi sair e fui morar num barraco de uma favela próxima, na Vila Nhocuné.” A filha mudou-se também, mas para Curitiba, onde casou e teve dois filhos. Desde então, nunca mais a viu.

Em 2004, ele foi encontrado sozinho no barraco, já quase sem vida, castigado por uma tuberculose. Ficou internado por três meses. “O médico me disse que rasgou duas vezes meu atestado de óbito”, ri, enquanto ouve da assistente social Aladia Rodrigues explicações por não ter conseguido ainda encontrar sua filha. “Ela provavelmente não mora mais no Paraná. Aí o fio da meada se rompeu”, conclui Claudio.

Aladia realiza um trabalho difícil. A casa, fundada em 1974 pelo casal de industriais do setor têxtil Margherita Biasi Corsi, 72, e José Carlos Corsi, 71, possui quatro pavimentos e acolhe pouco mais de 130 homens, público majoritariamente formado por pessoas com deficiências cognitivas, idosos e sem vínculo familiar. “Creio que 90% não possuem nenhum tipo de contato com as famílias”, observa.

Para encontrar os parentes, a assistente social usa a internet, faz buscas nas redes sociais, em cartórios eleitorais e delegacias. Foi assim que, após cinco meses de investigação, encontrou, por acaso, os familiares do metalúrgico Mauricio Medina Maciel, de 55, anos. Vitima de esquizofrenia, perda de memória e sem nenhum documento, Mauricio desapareceu de sua casa em Mauá, também no ABC, no mês de março de 2005, vestindo calça jeans, blusa e tênis azul. Após vagar pelas ruas, chegou ao abrigo espírita em 2007. Cinco anos mais tarde, a assistente social encontrou um sobrenome parecido na lista telefônica e resolveu arriscar. Era o de sua casa. A comoção do outro lado da linha foi enorme. “Elas achavam que ele já estivesse morto.”

A família foi visitá-lo, festejou, mas não puderam levá-lo de volta ao que ele insiste em chamar de “seu próprio castelo”, um sobrado construído por ele quando ainda estava bem de saúde. “Sua ex-esposa já havia se casado novamente e, além disso, sua irmã tinha um filho com deficiência mental e que precisava de muitos cuidados. Não tinham como assumi-lo.” Mauricio, então, permaneceu no Bom Repouso. Lá cantarola pelos corredores e recebe, ocasionalmente, visita dos irmãos e do filho.

Procura-se

No site da Polícia Civil paulista, ao lado de nomes e fotos de desaparecidos, há outra lista. A de pessoas em abrigos que estão à procura de suas famílias. São mais de 200 perfis. Vítimas de acidentes, pessoas com dificuldades cognitivas e idosos. A Secretaria estadual da Saúde de São Paulo mantém um número ainda maior. São quase 700 pacientes não identificados em unidades de saúde. Gente que aguarda ser resgatada por algum rosto familiar.

Segundo o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 2003), no seu artigo 98, abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado pode resultar em detenção de seis meses a três anos e multa. Mesmo assim, no Hospital Estadual Geriátrico Eduardo Rabello, no município do Rio de Janeiro, cerca de 7% dos pacientes que já receberam alta hospitalar não podem deixar a unidade de saúde por não ter para onde ir.

“Em alguns casos os pacientes foram internados por familiares que deixaram informações, como telefone ou endereço, inverídicas. Essas pessoas não são localizadas depois, quando o idoso recebe a alta”, denuncia o diretor geral da instituição, o médico Edson Mendes Nunes. “Eu acredito que o abandono se repita nas outras unidades geriátricas.”

Além das doenças emocionais, causadas pelo abandono, o período de internação hospitalar ­desnecessário pode resultar em novas infecções. “O hospital é um ambiente insalubre para quem não precisa estar ali. E também ficamos impedidos de abrir novas vagas para outros pacientes que estão necessitando do atendimento.”

Quando isso ocorre, o departamento de serviço social do Hospital Eduardo Rabello recebe a tarefa de tentar localizar as famílias e cobrá-las de suas responsabilidades. Se não houver resultados, o caso segue ao Ministério Público. Ainda segundo o Estatuto do Idoso, é o Ministério Público o responsável por acionar os eventuais responsáveis e também dar uma destinação adequada ao idoso desamparado.

Apoio às famílias

De acordo com Marisa Accioly Rodrigues da Costa Domingues, docente no curso de Gerontologia da Universidade de São Paulo (USP), o abandono “não acontece apenas nessa fase mais longeva, mas vem de muitos anos de dificuldades e esgarçamento das relações, que se agravam ao ponto de, quando há necessidade do idoso contar com a família, essa já não o reconhece”.

Assistente social de formação, tendo atuado por vários anos no Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP, Marisa acredita que se houvesse maior apoio às famílias, o resultado seria menos dramático. “Algumas estão pedindo socorro. Se tivessem algum tipo de ajuda, não abandonariam. Mas essas pessoas não têm, muitas vezes, nem condições de cuidar da vida delas. Então vão deixando os idosos nas instituições, as visitas vão rareando e, por fim, acontece o abandono.”

Como exemplo de boas ações, a professora cita o Programa Acompanhante de Idosos (PAI), da prefeitura de São Paulo. Os idosos vinculados às Unidades Básicas de Saúde (UBSs) recebem até cinco visitas de acompanhantes, que têm a responsabilidade de ajudar nas tarefas cotidianas, como fazer compras, ir ao médico ou nalguma atividade doméstica.

O atendimento já atinge 2,5 mil pessoas na cidade. “O cuidado melhora, as pessoas se sentem acolhidas e há uma resposta positiva. Não resolve 100% dos casos. Nem todos seguem o mesmo padrão. Mas costuma ser uma forma melhor de atendimento, fazendo com que o idoso fique mais tempo em sua casa, sem a necessidade de utilizar equipamentos para longa permanência”, explica a pesquisadora. Ela destaca ainda outras iniciativas, como o Núcleo de Atendimento Domiciliar (Nadi), do Hospital das Clínicas da USP, e o Programa de Atendimento Domiciliar (Padi), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

A cidade de São Paulo dispõe de seis Centros de Acolhida Especial para Idosos, com abrigamento provisório para 670 pessoas e outras nove instituições de Longa Permanência (Ilpis), com mais 300 vagas pela capital, onde não há prazo para ir embora. Na Casa Verde, zona norte, 60 idosos se dividem entre o abrigo provisório e o de longa permanência, que se avizinham, sendo separados apenas por um portão de ferro.

Há seis meses, ali é o lar da aposentada e ex-empregada doméstica Lázara Rodrigues de Lima, de 69 anos. Solteira, sem filhos e adotada por um casal já falecido, ela passou os últimos anos vivendo com dois cachorros numa casa alugada próxima dali, onde desenvolveu o hábito de acumular objetos. “O pessoal falou que eu juntava muita coisa em casa, mas não era isso. Eu só pegava na rua o que achava que poderia servir.” Entre os achados, uma coleção de livros que hoje serve de distração a ela e outros moradores do local.

Lázara conta que foi morar, ainda na infância, com uma família adotiva em Jacutinga, sul de Minas Gerais. Sua mãe natural era muito pobre e não tinha condições de cuidar dela e de seu irmão mais velho, que foi entregue a um orfanato, o Lar Américo Prado. “Ele ia me ver, subia num morrinho, me beijava e dizia: ‘Olha a minha irmã!’ Esse era o Geraldo Rodrigues de Lima.”

A aposentada conta que ‘ouvia histórias’ de que sua mãe teria se mudado para Santos, no litoral sul paulista, onde namorou um imigrante japonês, dono de uma lanchonete. “Eu devo ter irmãos japoneses também”, ri, divertindo-se da sorte. “Eu me lembro de toda a minha família. Tem muita gente lá em Jacutinga. Mas ninguém sabe que estou aqui. Eu gostaria de ver meus primos, tias e meu irmão, que já deve estar bem velho.”

No prédio ao lado, onde funciona o Centro de Acolhida Especial para Idosos, mora Alipio Mendes da Silva, de 66 anos. É o músico do local, sempre dedilhando seu violão. “Queria que Victor e Leo (dupla sertaneja) ouvissem minha música.” Ao contrário de sua vizinha, Lázara, Alipio teve uma vida econômica pregressa mais tranquila. Foi casado e teve três filhas, até que uma desavença pôs fim ao casamento de 15 anos, um acidente lhe tirou a firmeza nas pernas, obrigando a se amparar numa muleta e a doença e consequente morte da mãe o fez gastar tudo que tinha. Já são 11 anos sem teto.

“Vim de outro equipamento, não tão bom como esse. Aqui é bem melhor, com uma estrutura equalizada mediante aos fatores das pessoas que têm uma idade mais avançada”, diz, demonstrando a erudição conquistada pelas duas faculdades cursadas e o trabalho como representante comercial.

Sua família, que se mudou para Curitiba, não sabe onde ele está. Ele também, admite, prefere não ser localizado. “Não tenho nem fotos delas. Não sei o que é dia dos pais ou Natal. Sinto falta da minha filha mais nova, que casou e mora no Canadá. Se ela me chamasse para ir para lá, eu não pensaria duas vezes.”

O Centro de Acolhida onde está Alipio funciona há um ano. “Atendemos idosos que possuem um pouco mais de independência. Mas eles só podem ficar até o prazo máximo de um ano e meio”, explica a gerente de serviço e gerontóloga Tatiane Andrade, de 27 anos. “São pessoas que estão com o vínculo familiar rompido, às vezes nem totalmente, mas já não conseguem morar mais com os familiares.”

Reencontro

Nem todas as histórias têm final triste. O vendedorJosé Carlos Laguna, de 57, saiu de sua casa em Campina Grande do Sul (PR), em janeiro de 1990, quando tinha 34 anos. Deixou para trás a família perplexa, principalmente sua mãe, Iracema Laguna, que morreu em 2012 sem nunca aceitar o sumiço do filho. “Ela dizia que a gente ainda o encontraria. Pena que morreu antes de ver realizado seu sonho.”

No ano passado, em outubro, a família Laguna recebeu um telefonema do Abrigo Cristo Redentor, em São Gonçalo (RJ). Entre os 200 asilados do pioneiro abrigo a trabalhar gratuitamente com idosos, estava um tal “Carlos Caloi, de 70 anos”, mas que desconfiavam se tratar do desaparecido José Carlos. Uma foto foi encaminhada para o e-mail da família, no Sul. “Eu sei que homem não chora, mas não teve jeito”, conta o pedreiro Antonio Carlos, de 54, irmão de José.

Ele e outro irmão foram até o Rio de Janeiro, onde resgataram José Carlos. “Ele não sabe dizer por onde andou, mas deu para perceber que sofreu nas ruas. Uma de suas orelhas tinha sido cortada. Ele acha que ainda tem 17 anos”, conta Antonio.
Foi na juventude que José Carlos viveu seus melhores dias. Despontava como habilidoso meia-esquerda nos campos de futebol de Curitiba. “Isso foi antes dos vícios no álcool, da perda de memória. Ele teve muitas oportunidades de ser profissional. Jogou até contra o Atlético Paranaense”.

Para celebrar o reencontro foi organizado um churrasco no início desse ano, num bar onde costumavam se reunir no passado. Amigos de longa data tocavam pagode e, entre abraços e afetos, José Carlos sentia-se, enfim, em casa. “É uma história triste, porque minha mãe sofreu muito. Mas ficamos muito felizes ao encontrá-lo de novo.”