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Explosões e omissões

Associação contabiliza dezenas de explosões decorrentes de defeitos do Vectra, da GM; alguns resultaram em dramas familiares e mortes. Montadora não se responsabiliza e ações se arrastam na Justiça

Faz quase seis anos. E o feixe de luz que entra pela fresta da porta da sala ilumina o olhar marejado de Lucineia Rodrigues dos Santos Silva quando ela lembra do automóvel Vectra GLS, cor prata, ano 1997, responsável pela morte da pequena Raíssa. Era 24 de julho de 2008 no município de Três Lagoas (MS), a 338 quilômetros da capital Campo Grande.

Lucineia chegou em casa com Raíssa e o filho Edson, à época com 6 anos. Às 9h45, estacionou o carro na garagem. Mãe e filho desceram enquanto Raíssa dormia. Ela foi abrir a porta da casa para depois retirá-la a menina da cadeirinha. Não houve tempo. Um estrondo anunciou a tragédia.

“Foi coisa de segundos. A fumaça e o fogo se espalharam muito rápido”, conta. A mãe conseguiu abrir a porta traseira e tirar a menina do carro. Desesperada, viu os olhos da bebê fechados. A pele se desprendia do rosto. Lucineia e a criança foram levados  ao Hospital Nossa Senhora Auxiliadora, no centro da cidade. Chegaram às 10h02. “A Raíssa tinha queimaduras de 2º e 3º graus no rosto, braços, tórax e pernas. Em Três Lagoas, só havia condições de fornecer os primeiros-socorros”, lembra. Saem às 16h05. Três horas depois, chegam à Santa Casa de Campo Grande. Conseguiram internação à meia-noite no Centro de Tratamento Intensivo, onde viveram mais 34 dias de agonia. “E eu ainda a amamentava.”

As vias respiratórias da criança, bastante afetadas, agravam as condições de saúde. Para piorar, vem uma forte infecção. No dia 28 de agosto de 2008, com 7 meses e 14 dias de idade, Raíssa morreu.

“Como mãe, senti culpa”, diz Lucineia. O trauma a paralisou por dias, deprimiu-a. O inconformismo foi mais forte quando teve nas mãos a perícia do Núcleo de Criminalística Regional da Polícia Civil, que apontava defeito elétrico no Vectra como a causa da explosão.

O laudo, de número 10.985, foi concluído em 22 de agosto de 2008. Era a base para o processo, que se fundamenta, também, em relatos de outros Vectra que se incendiaram ou explodiram pelo Brasil. Em 2009, Lucineia e o pai de Raíssa, Edson Pereira dos Santos, entraram com ação judicial contra a General Motors do Brasil, na 4º Vara Cível de Três Lagoas. A perícia havia sido feita muito antes de a família entrar com a ação.

Quase cinco anos depois do início do processo, eles ainda não conseguiram sequer uma audiência entre as partes. “A GM protela e tenta enganar a Justiça. Usa argumentos infundados para encher o processo e dificultar o encaminhamento. Alegou que o carro teria sido convertido a gás, o que nunca aconteceu. Até ‘bituca’ de cigarro entrando na grade dianteira, com acesso ao motor, eles disseram que poderia ser. O fogo veio de trás do veículo”, questiona a advogada da família, Keyla Lisboa Sorelli.

Os embates que seguem até hoje passam, basicamente, por uma questão. Em 28 de janeiro de 2011, a GM do Brasil pediu uma nova perícia para “garantir o direito à ampla defesa”. No dia 12 de abril do mesmo ano, o pedido foi concedido pelo juiz Márcio Rogério Alves.

Os trabalhos da nova perícia começaram apenas em 13 de fevereiro de 2012, três anos e oito meses depois da explosão. Havia, ainda, outro problema – mais grave. Na época da explosão, o veículo tinha sido recolhido pelo 3º Distrito Policial de Três Lagoas. Dali, foi para um pátio, o Auto Guincho Dori. O estabelecimento ficou como fiel depositário do Vectra levado pela Polícia Civil. No entanto, o carro desapareceu.

Os responsáveis pelo pátio alegam que receberam autuação da Vigilância Sanitária e precisaram enviar veículos a um ferro velho, onde o Vectra teria sido prensado sem a retirada de nenhum componente. E os advogados da GM alegam que, sem o automóvel ou os componentes, não se pode tirar uma conclusão.

O perito do Núcleo de Criminalística da Polícia Civil do Mato Grosso do Sul Milton César Fúrio sustenta, entretanto, a versão de defeito elétrico e afirma ter documentação suficiente para ratificar o laudo. Na ação, a empresa ainda acusa os pais de negligência pela não conservação da prova material. “Foi a polícia, o Estado, que fez a perícia. Agora, além do sofrimento, somos cobrados por não guardar o carro?”, revolta-se Lucineia, que tem ao seu lado o Código de Defesa do Consumidor, que prevê, no artigo 6º, a possibilidade da inversão do ônus da prova. “Se existe segredo no produto, sobre a tecnologia dele, algo inacessível ao consumidor, a Justiça pode determinar que o fornecedor comprove que aquele produto não causa lesões”, observa Christian Printes, advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

A Resolução 331 de 2009 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) garante que “qualquer veículo à disposição de autoridade policial não pode, sequer, ser levado a leilão”.

No entanto, a tragédia causou impactos na família. O casal se separou. O menino Edson, hoje com 12 anos, não apagou da memória o drama vivido pela irmã. Ele, a irmã Larissa, de 14 anos, e a mãe foram morar com a avó em Santo Antônio da Platina (PR). Lucineia jamais se conformou: “Minha filha deveria estar aqui. Foi o carro que a matou. A Raíssa não volta, mas muitas pessoas podem estar passando pelo mesmo que nós”.

Rafael, outra vítima

A Associação Brasileira de Consumidores Automotivos (ABCAuto) identificou registros de 30 casos semelhantes de explosão com modelos Vectra. Um deles surpreendeu um grupo de amigos que ia para uma festa de final de semana pela rodovia ES-060, no Espírito Santo, entre as cidades de Piúma e Anchieta.

Rafael Bonadiman Bisse já era um rapaz tímido. Mas desde 8 de maio de 2009, a timidez cresceu com as cicatrizes das queimaduras de 2º e 3º graus sofridas em 70% do corpo, inclusive no rosto. Às 20h daquela data, a explosão do Vectra 1996 mudou drasticamente a sua vida e dos outros quatro jovens. Repentinamente, os três que estavam no banco traseiro sentiram calor intenso nas pernas.

“Vinha da parte de baixo do carro”, recorda Antonio Mulinari, que estava ao lado de Rafael. “Vi o fogo começar no banco traseiro. Tinha uma chama ao meu lado. Gritei que o carro estava pegando fogo.” O aviso de Antonio foi rápido, mas a explosão foi mais. O estofado pegou fogo. As chamas chegaram no teto e varreram a cabine.

O motorista, Charles William, e Bruno Mulinari saltaram do veículo em movimento. Rafael só conseguiu sair quando o veículo, já com muito fogo, colidiu com um mourão. “Foi tudo muito rápido, como uma bomba”, recorda.

Com queimaduras no rosto, braços e pernas, Charles, Bruno e Antonio foram internados em Anchieta: o primeiro, por 11 dias. Os demais, por quase um mês. Rafael e Mateus Gomes Alves, os últimos a sair do Vectra, ficaram um ano e meio no Centro de Queimados do Hospital Dório Silva, na cidade de Serra.

Para Rafael, veio ainda uma infecção que exigiu a amputação da perna esquerda. Então com 20 anos, ele passava 24 horas por dia deitado. “Não tinha vontade de me alimentar, queria morrer”, relembra. Atualmente, ele não exerce nenhum ofício. Não estuda. Mal sai de casa e não se relaciona com amigos. “Antes, ele tinha uma vida normal, amigos, trabalhava, namorava”, relata a tia Andresa Adelmo. A família entrou com processo contra a GM em dezembro de 2011. Em dois anos e meio de espera, a ação não foi julgada em primeira instância.

Marcados

Bruno tem cicatrizes no tórax, pernas e nos braços. “Fica um trauma, um medo, vergonha. Existe preconceito com quem é queimado”, diz o ex-ajudante de pedreiro e hoje, com 24 anos, dono de um lava-rápido em Piúma. “Faz um ano que retomei um ritmo mais ou menos normal, mas não esqueço o terror. Era final de semana de Dia das Mães. Não pude nem ver a minha”, diz.

A advogada Janine Vieira Paraíso, que representa as vítimas do caso do Espírito Santo, reclama da extrema lentidão dos processos. “Houve perícia indicada pela GM logo após o acidente, a qual, obviamente, excluiu a culpa da montadora. Aguardamos nova perícia, indicada pelo Estado, desde outubro de 2012.”

Na época do incêndio, um engenheiro perito em análise de defeitos veiculares fez uma avaliação, a pedido dos rapazes, e identificou problemas elétricos, mas não entrou no processo porque as vítimas não tiveram condições de arcar com os custos do profissional.

Charles hoje mora na região metropolitana de Recife e evita o assunto. Antonio Mulinari teve poucas sequelas e segue no Espírito Santo. Mas Mateus Gomes Alves teve 70% do corpo queimado. As mãos direita e esquerda ficaram quase incapacitadas. Com 23 anos, está preso, acusado de tráfico de drogas. “Era um rapaz forte, bonito, cheio de energia. No estado que ficou, perdeu a cabeça, se envolveu com coisas que não devia”, avalia Bruno.

Caso emblemático

“Sem fotos nem filmagem”, pede em voz baixa, gentil, Edda Pedemonte Araújo, de 75 anos, 14 deles na luta contra um gigante do setor automotivo. Edda ainda sofre ao lembrar a tarde de 17 de agosto de 1999, quando viajava pela BR-070, de Cuiabá para Barra do Garças (MT). À sua frente, viu um carro explodir sem ter sofrido nenhum impacto. Era um Vectra quase zero-quilômetro, sete meses de uso. Os ocupantes morreram carbonizados.

Edda vinha atrás, em outro automóvel. Viu a cena aterradora: entre os corpos consumidos pelas chamas estavam Heronides de Aquino Araújo, Ítala Pedemonte Araújo e Antonio Salvino Pedemonte Araújo. Seu pai, sua mãe, seu irmão. Meia hora antes, ela mesma estava no carro. “Meu irmão era quem dirigia. Era cuidadoso com nossos pais. Pediu para eu descer, queria diminuir o peso. Como tínhamos um amigo vindo logo atrás, em outro carro, troquei”, conta.

Heronides Araújo e Maria Domitila Pinto Gusmão, a enfermeira que cuidava do pai de Edda, morreram dentro do ­Vectra. Antonio e Ítala conseguiram saltar, mas faleceram ainda na pista. Todos tiveram queimaduras de até 4º grau.

Em 2001, a família acionou a GM na Justiça. Seguiu-se uma verdadeira guerra jurídica. Segundo Heronides Filho, irmão de Edda, a GM sumiu com o carro logo após a ocorrência. “Isso, depois de levá-lo para o pátio da montadora, em Barra do Garças.” Lá, a primeira perícia – produzida pela equipe da Coordenadoria de Criminalística da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Mato Grosso – atestou que a explosão fora causada por uma peça de freio de caminhão perdida na estrada.

A juíza Amini Haddad Campos, da 9ª Vara Cível de Cuiabá, que apreciou o processo, questionou o local e a forma de realização do procedimento. E classificou como “imprestável” a perícia. Pediu outra. Realizada pelo engenheiro mecânico Durval Bertoldo da Silva, a avaliação teve conclusão divergente: “Explosão no compartimento interno do veículo, acima do tanque de combustível e abaixo do banco traseiro”.

Em 11 de julho de 2008, familiares das vítimas conseguiram a condenação da empresa. A Justiça matogrossense determinou indenização de R$ 6 milhões, partilhada entre 12 beneficiários. A juíza concluiu, também, que a GM teria de emitir um comunicado público sobre os riscos ocultos no modelo e realizar o recall.

A GM recorreu imediatamente ao Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Em 2010, os desembargadores condenaram a empresa, por dois votos a um, mas reduziram a indenização de R$ 500 para R$ 200 mil a cada beneficiário, soma de R$ 2,4 milhões. A exigência do recall, porém, foi excluída. No ano passado, já no Superior Tribunal de Justiça (STJ), instância máxima, as partes chegaram a um acordo. A empresa aceitou pagar R$ 6 milhões no total, depois de 13 anos.

O advogado dos familiares, André de Paiva Pinto, acredita que o acordo foi significativo do ponto de vista econômico para as vítimas. Porém, considera que a quantia ficou aquém de causar qualquer efeito inibidor para a indústria automobilística. “Morreram quatro pessoas de forma violenta e o valor ganho individualmente, por autor, corresponde a menos de 20 minutos, num período de um ano, do faturamento da GM. Isso, valendo só o parque industrial de São Caetano do Sul, no estado de São Paulo”, enfatiza.

“Parece mais vantajoso para a empresa pagar indenizações, o que perpetua o desrespeito ao consumidor”, destaca Paiva Pinto. Para dona Edda, a sensação é de impunidade.

Documento da GM cita defeito

Durante a pesquisa para o processo de Mato Grosso, Paiva Pinto e os familiares das vítimas levantaram 30 outros casos em que o Vectra explodiu, sem impacto, nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. A partir desse mapeamento, fundaram a Associação Brasileira de Consumidores Automotivos (ABCAuto).

A associação teve acesso a um boletim de informação técnica sobre o modelo, datado de fevereiro de 1998. O documento, de circulação interna da General Motors do Brasil e distribuído a revendedoras e oficinas autorizadas, alerta sobre um problema no chicote da bomba de combustível do veículo. “A peça, em decorrência do comprimento dos cabos e do balanço do comburente pode tocar os terminais elétricos, provocando o derretimento da proteção e, consequentemente, falha”, descreve.

“O resultado disso é óbvio. Vapores e gases de combustível em contato com faíscas dão em explosão”, explica o engenheiro mecânico João Valentim Bin, especializado em desenvolvimento e testes de motores a combustão interna e combustíveis alternativos e ex-supervisor na Engenharia de Testes e Desenvolvimento da Detroit Diesel Allison do Brasil, divisão da General Motors para desenvolvimento de motores.

A recomendação do boletim era para que, caso os veículos dessem entrada com problema de queima de fusível da bomba de combustível, o chicote deveria ser verificado. No verso, há uma ilustração do procedimento para a correção do defeito e um aviso para que sejam atendidos apenas veículos dentro do período de garantia.

O boletim técnico estava com o Ministério Público em São Paulo. Denúncias contra a montadora haviam sido feitas, principalmente, pela Associação Nacional das Vítimas das Empresas Montadoras e Concessionárias Automotivas (Anvemca), sediada em Caraguatatuba, no litoral norte paulista.

Para o advogado André de Paiva Pinto, o documento é uma prova da omissão da companhia. “A montadora conhecia o defeito pelo menos 18 meses antes do sinistro de Mato Grosso e mais de dez anos antes das ocorrências do Mato Grosso do Sul e do Espírito Santo. Por que não foi obrigada a fazer o recall? Só esse documento bastaria”, diz.

Jaílton de Jesus Silva, fundador da Associação Nacional de Consumidores e Vítimas de Empresas Montadoras e Concessionárias Automotivas (Anvemca) e que pesquisa o tema recall há 20 anos, traduz o que são os boletins técnicos: “São procedimentos repassados aos prepostos, concessionárias, oficinas. Elas ‘passam em branco’ defeitos que chamamos de ‘vícios ocultos ou defeitos surpresa’, de difícil visualização pelo consumidor. Por isso, damos o nome de recall branco a esse expediente. Só as concessionárias são informadas dos defeitos e os consumidores não recebem chamado algum. Não são atendidos os requisitos previstos no CDC. É crime”, defende.

Recall e omissão

Em tradução livre, recall significa “chamada de volta”. O Código de Defesa do Consumidor, de 1990, prevê que produtos defeituosos ou que contenham vícios ocultos, podendo colocar em risco a segurança e a saúde dos cidadãos, devem receber convocações para checar e consertar eventuais problemas.

O caso do Vectra é marcante. O documento interno da GM foi parar em vários órgãos públicos fiscalizadores. A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça, o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), do Ministério das Cidades, e a Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados foram informados, inclusive com relatórios das explosões de Vectra.

A Senacon está há cinco anos em estágio de “averiguação preliminar” – o que serviu de justificativa para negar à reportagem o acesso aos documentos sobre o caso. A secretaria também se recusou a dar informações ou entrevistas. “Em 2008, a Senacon já apurava a situação. Como pode alegar que está em estágio de averiguação preliminar?”, questiona Paiva Pinto, que também teve negado o acesso ao procedimento completo.

Quem resolve?

Em 2008, o engenheiro mecânico João Valentim Bin foi chamado para fazer o laudo sobre o desprendimento da roda traseira de um Fiat Stilo de Brasília, no que ficou conhecido como “caso Carla Barbosa”, nome da proprietária do veículo que capotou com a soltura da peça. Bin teve papel fundamental para que saísse o recall de mais de 52 mil unidades do modelo, em 2010, o que não ocorreu sem dificuldades. A perícia elaborada por ele embasou as ações de consumidores na Senacon e na Justiça.

O engenheiro, com larga experiência na área, afirma que a existência do boletim de informação técnica do Vectra, mais os indícios que relacionam as explosões, deveria ser suficiente para obrigar a GM a convocar o recall.

Um exemplo de trabalho de prevenção baseado em indícios vem da própria companhia, mas na Austrália. Em janeiro de 2008, a GM Holden, filial da montadora no país, anunciou um recall de 86 mil veículos vendidos no Oriente Médio, Oceania e, inclusive, Brasil. O modelo era o Ômega, 2006 e 2007. A convocação foi anunciada por haver risco de vazamento de combustível do motor, o que poderia causar incêndios. Na época, o porta-voz do grupo, John Lindsay, garantiu que a chamada era preventiva. “As chances de isso (as explosões) acontecer são muito baixas, mas, obviamente, estamos optando pelo excesso da precaução”, observou.

Bin ressalta, porém, que o recall no setor automobilístico brasileiro não tem como ser eficiente, pois, além de depender de três entidades de dois ministérios diferentes, os órgãos não contam com recursos humanos suficientes nem competência técnica para cuidar de um assunto tão complexo. Além disso, segundo ele, são órgãos reativos, ou seja, agem apenas se provocados. “São as vítimas das montadoras que precisam levar indícios de vícios e defeitos aos órgãos”, critica.

O Departamento Nacional de Trânsito não revelou as conclusões da investigação à reportagem. “O Denatran desenvolveu estudo sobre os casos de incêndio dos veículos Vectra por demanda da Senacon. O estudo final está em poder do Ministério da Justiça e, por envolver vítimas fatais, só a Senacon pode fornecer informações.” O Denatran não tem especialistas em tecnologia e acidentes veiculares. Contratou para o estudo o Centro de Experimentação e Segurança Viária (Cesvi), sediado em São Paulo.

No entanto, o estudo de 151 páginas não chega a conclusões. No texto, são comuns alegações como “não existem condições técnicas para analisar adequadamente o acidente”, “fica impossível levantar uma hipótese confiável sobre o motivo do incêndio” ou “não é possível precisar exatamente o ocorrido.”

André de Paiva Pinto rejeita essas hipóteses: “Eu mesmo passei ao Cesvi dados das explosões. Eles não foram atrás e produziram um estudo de um absurdo completo”.

A reportagem procurou, por telefone e e-mail, a General Motors do Brasil para obter a posição sobre as denúncias envolvendo o modelo. Depois de um mês de tentativas, a assessoria de comunicação afirmou, por telefone: “Não temos interesse nessa pauta”. Por e-mail, a assessoria prometeu um retorno, nunca cumprido. No dia 25 de abril, houve uma nova tentativa, informando que a edição impressa desta reportagem estava prestes a entrar em gráfica. Sem sucesso.

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A GM e os defeitos ocultos

Desde fevereiro deste ano, a matriz da General Motors, localizada nos Estados Unidos, está em crise. A montadora anunciou um recall envolvendo pelo menos 2,6 milhões de veículos por falhas no controle de ignição que podem afetar o circuito elétrico e desativar o acionamento de airbags. Todos os veículos são produzidos nos EUA e vendidos na América do Norte. De acordo com denúncias apuradas por órgãos reguladores de segurança, dois comitês do Congresso norte-americano e o Departamento de Justiça, a GM esperou 13 anos para trocar as peças: a empresa detectou o problema no ano de 2001, mas só tomou providências de correção em 2014.

Os órgãos públicos já admitem ao menos 13 mortes, ocorridas em 32 acidentes. Contudo, levantamento feito pela empresa especializada Friedman Research Corporation menciona 303 mortos.

Em audiência no Senado norte-americano, no último dia 1º de abril, Mary Barra, atual CEO da empresa, disse que a cultura da montadora estava mudando: “Minhas sinceras desculpas a cada um que tenha sido afetado por este recall. Estou muito aflita. A GM de hoje fará o que for correto”, garantiu. No entanto, questionada, foi evasiva e alegou não ter informações suficientes para responder a várias perguntas. Até mesmo ao ser indagada se a GM indenizaria as vítimas, disse que a fabricante “ainda não havia decidido.”

Não é a primeira vez que a matriz enfrenta uma crise por defeitos de fábrica. Em 1998, na Califórnia, foi condenada a pagar indenização histórica por um acidente sofrido por Patricia Anderson, seus quatro filhos e um amigo às vésperas do Natal de 1993. Eles estavam numa picape Chevrolet Malibu, que pegou fogo. Não houve mortes, mas todos os passageiros sofreram queimaduras graves. A indenização de U$S 1,2 bilhão foi um recorde.

Os advogados da família Anderson convenceram os jurados de que as montadoras sabem que muitos carros não são seguros, conhecem os meios para melhorar projetos, mas optam por reduzir custos em vez de investir em aperfeiçoamentos. Um documento que estimulou a sentença foi o Memorando Ivey. Elaborado em 1973 pelo engenheiro projetista da multinacional, Edward C. Ivey, o memorando demonstrava à empresa que a economia feita nos projetos de milhões de unidades compensaria o gasto com possíveis indenizações.

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Amor ao carro

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Satkunas: “60% dos problemas vêm de peças de fornecedores, 30% de erros humanos de montagem e 10% de projetos”

“O brasileiro ama demais o carro. No Brasil, a cultura em relação às montadoras é de que elas não cometem erros. O Judiciário, a mídia, endeusam as empresas”, critica o engenheiro mecânico e perito João Valentim Bin. Ele defende que o país adote um sistema mais rigoroso do ponto de vista científico e de fiscalização das operações da indústria. Algo nos moldes da National Highway Traffic Safety Administration (NHTSA), agência responsável pela fiscalização da indústria automobilística nos Estados Unidos.

O presidente e fundador da Associação Nacional das Vítimas das Empresas Montadoras e Concessionárias Automotivas, Jaí­l­t­on de Jesus Silva, também questiona a eficácia do recall no Brasil. “Senacon e Denatran poderiam acelerar os recalls se agissem com indícios, como faz a NHTSA. Só que ficam à espera do consumidor, que tem de entregar o trabalho pronto para eles. As seguradoras deveriam ser obrigadas a informar ao governo quando um veículo estivesse envolvido em muitos acidentes com a mesma dinâmica”, defende.

Silva criou formalmente a Anvemca em novembro de 2001 e estuda a indústria automotiva desde 1994. O Grupo de Estudos Permanentes de Acidentes de Consumo (Gepac), criado pelo governo federal em 2010, o convocou para reuniões. “O caso Vectra foi um dos provocadores da criação do Gepac, que poderia ser mais efetivo, caso tornasse públicas as atas das reuniões e ouvisse as vítimas e os assistentes técnicos. O Gepac também não possui engenheiros mecânicos especializados na tecnologia automobilística”, observa. “As montadoras são poderosas perante o poder público. Recebem muitos estímulos e são pouco cobradas.”

A Sociedade dos Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil), associação que congrega pessoas físicas, engenheiros e executivos para disseminar técnicas e conhecimentos relativos à tecnologia da mobilidade, exalta os avanços do setor automotivo nacional.
“Nossos veículos melhoraram. Há muito cuidado nos projetos”, diz o diretor-conselheiro da SAE Brasil, Francisco Satkunas, que foi engenheiro da indústria automobilística por 46 anos. “A indústria tem uma conta de que 60% dos problemas são causados por peças de fornecedores, 30% em erros humanos de montagem e 10% por projetos de engenharia”, diz.

“Montadora é voraz, quer ganhar sempre muito. É empresa com fins lucrativos. Não faz filantropia. Muitas vezes, o erro de produção vem da economia da própria empresa para produzir”, ressalta, em contraponto a Satkunas, o presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM-CUT), Paulo Cayres. O sindicalista não aceita o argumento simplificador das supostas falhas humanas. “A empresa, por exemplo, trabalha com matérias-primas de qualidades diferentes. Não falar disso e apontar que a falha é humana é querer desviar responsabilidades”, salienta.

Análise aprofundada sobre defeitos e recall na indústria automobilística não é algo fácil de encontrar no Brasil. O professor do curso de Engenharia Mecânica da Universidade Nove de Julho (Uninove) de São Paulo, Ivan Luiz Laranjeiras Silva, pesquisou o tema por dois anos para escrever a dissertação que apresentou em 2011. O estudo avalia o período 2000-2010, em que compara o Brasil com Austrália, EUA e Reino Unido em relação a medidas de empresas e órgãos públicos. “Fazemos menor número de recalls que todos os países pesquisados, mas isso não é garantia de que o produto é melhor aqui.”

O promotor de Justiça de Defesa do Consumidor de Minas Gerais, Amauri Artimos da Matta, chegou a conseguir, em 2010, a proibição da venda, em solo mineiro, de um carro com defeito: o Toyota Corolla. A decisão veio depois de alguns modelos apresentarem problema na aceleração e se baseou em relatos de nove acidentes.

Após a medida, o Gepac acordou com a Toyota o recall de 107 mil unidades do Corolla no Brasil. A campanha começou em 3 de maio de 2010 e os veículos voltaram a ser vendidos em Minas.

O promotor defende que é preciso organizar iniciativas que envolvam poder público, montadoras e sociedade civil. “É possível fazer. Em Minas, estamos articulando uma ação entre o MP, o Procon e uma associação de engenheiros especialistas na área automotiva. Temos, inclusive, o projeto de lançar um site específico para dialogar diretamente com a sociedade a respeito”, conta.