ensaio

Cenas do Velho Chico

A relação das populações ribeirinhas com o rio São Francisco em imagens do fotógrafo

Eu vi o rio virar
Um deserto de pedra e pó
A noite se avermelhou
De tão quente o céu e o chão
Meu povo se encomendou
Esperando o fim do sertão
Dê um jeito, meu São Francisco
Foi assim que pedi com fé
De repente, choveu bonito
O rio encheu de fazer maré  São Francisco de Canindé, 
Luiz Gonzaga <span>(João Roberto Ripper)</span>Pesca em Barra, Bahia, na junção do rio São Francisco com o rio Grande <span>(João Roberto Ripper)</span>Barra, BA <span>(João Roberto Ripper)</span>Embarcação leva crianças à escola em Xique-Xique, BA <span>(João Roberto Ripper)</span>Marcos e Indiana Barbosa brincando na travessia de Xique-Xique para Barra, BA <span>(João Roberto Ripper)</span>Matias Cardoso, MG <span>(João Roberto Ripper)</span>Entardecer na cidade de Pirapora, MG <span>(João Roberto Ripper)</span>Júlia, em Floresta, PE <span>(João Roberto Ripper)</span>Lindemberg Passos, 89 anos, pescador da Lagoa do Retiro, MG <span>(João Roberto Ripper)</span>Tamires, da comunidade Ilha Pau Preto, às margens do rio no entorno do Parque Estadual Verde Grande, Matias Cardoso, MG <span>(João Roberto Ripper)</span>Paulo Feitosa, em Floresta, PE: “Sou que nem essas cabras, gosto de viver solto” <span>(João Roberto Ripper)</span>

Na música São Francisco de Canindé, Luiz Gonzaga comunga a importância do rio com a fé. Luta, muito trabalho, o enfrentamento de falsas promessas de se acabar com a seca e a esperança nas formas de se aproveitar a água da chuva fazem ­parte da vida das populações do semiárido brasileiro, dos ribeirinhos e do próprio São Francisco, o único grande rio inteiramente brasileiro. Nascido em Minas Gerais, o Velho Chico se desloca pelo estado da Bahia, molha a divisa deste com Pernambuco e de Alagoas com Sergipe.

Há muito, o rio é alvo de projetos polêmicos, como a construção da barragem de Itaparica (PE) pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), em 1988. Na ocasião, a sede do município foi deslocada para a região que ocupa hoje, causando impactos de ordem ambiental, social e cultural, segundo moradores. Muitos acompanharam a mudança da sede; outros, porém, levados pelas circunstâncias, tiveram de recomeçar suas vidas em localidades vizinhas.

Um desses empreendimentos é o Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional – simplificado em “Transposição do São Francisco”. A ideia é especulada desde o século 19. Começou a virar projeto na era Getúlio Vargas, nos anos 1940. Esteve nos planos dos governos de João Baptista Figueiredo (1979-1985), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). No primeiro governo Lula, em 2003, foram iniciados estudos de impactos ambientais. No segundo, em 2007, a obra começou a sair do papel, com previsão de término em 2012, já ajustada para 2015.

É prevista a construção  orçada em R$ 8,5 bilhões – de mais de 700 quilômetros de canais de concreto em dois grandes eixos (norte e leste) ao longo do terreno de quatro estados (Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte) para o desvio das águas do rio. E não sem polêmica. Opositores argumentam que a água será retirada de regiões onde a demanda para uso humano e dessedentação animal é maior que a demanda na região de destino, onde a finalidade principal seria, na visão dos críticos, atender a agroindústria e o agronegócio.

No município de Floresta (PE), as obras passam próximo da casa do sertanejo Paulo Feitosa, de 67 anos, em localidade próxima do lago de Itaparica. Apesar disso, ele diz que não será beneficiado pelo projeto. “A tal transposição vai passar a 200 metros da minha casa, mas vai estar tudo gradeado e a gente não vai poder pegar uma gota. Os homens dizem que o que vai ter é muito emprego pra fiscal”, brinca. Paulo já experimentou vários tipos de trabalhos pesados. “Trabalhei na roça, quebrei pedra, construí casa. Lutei muito nessa vida, fiquei doente com o trabalho, passei por várias cirurgias e hoje vivo de uma aposentadoria pequenininha, assim como eu, que sou baixinho”, diz, bem-humorado.

O sertanejo mora numa casa simples, com um cercado de madeira. Vive só, com poucos móveis, sem televisão e com uma criação de cabras. Ainda corre como um garoto. “Sou que nem essas cabras, gosto de viver solto e ter o meu canto de sombra pra descansar. Me acostumei com o sol e a falta d’água, mas tenho a vida que Deus me deixou. Pra ser feliz, a gente não precisa de muito, não, né? Agora, água era bom, mas…”

A cerca de um quilômetro da casa de Paulo Feitosa, notam-se trechos destruí­dos, abandonados antes de a obra terminar, carcaças abandonadas de gado vitimado pela seca. Um vaqueiro com roupas de couro, usadas para se proteger dos espinhos da vegetação, cavalga cansado, na esperança de encontrar, ainda com vida, uma rês desgarrada. Indagado sobre a obra, responde: “Ah, uma obra tão grande de Deus o homem não deve se meter a mudar, não. O velho Chico está chorando”, diz.

Não é o que pensam as populações dos 360 municípios na área de confluência dos quatro estados que esperam para poder irrigar seu solo uma água que nem sempre cai do céu. Os defensores do projeto admitem os efeitos listados no Relatório de Impacto Ambiental, mas respondem com a adoção de 38 ações socioambientais compensatórias. E sobretudo com a perspectiva de um desenvolvimento sustentado local – com criação de empregos e renda numa faixa de Brasil onde vivem 12 milhões de pessoas, segundo o Ministério da Integração Nacional.

A peleja entre os prós e contras teve forte repercussão nacional quando o bispo de Barra (BA), dom Luiz Cappio, fez duas greves de fome, em 2005 e 2007, contra a transposição. Ganhou destaque o apoio recebido da atriz Letícia Sabatella. Em artigo endereçado à atriz, o ex-ministro da Integração Ciro Gomes disse que dom Cappio não tinha direito “de fazer a Nação de refém de sua ameaça de suicídio”. Argumentou  que a integração de bacias do rio São Francisco aos rios secos do Nordeste, ao beneficiar 12 milhões de pessoas da região mais pobre do país, “não prejudicará rigorosamente nenhuma pessoa”. E concluiu: “Imagine se um bispo a favor do projeto resolver entrar em greve de fome exigindo a pronta realização do projeto. Quem nós escolhería­mos para morrer?”